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6. PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS

6.5 O rompimento com a Fundação Mato Grosso

A Fundação Mato Grosso (FMT) foi instituída em 1993, possui a natureza jurídica de fundação de direito privado sem fins lucrativos e tem sede no município de Rondonópolis, Estado do Mato Grosso. Foi constituída por empresas especializadas na produção de sementes e produtores de grãos.

Os empresários que lideram as empresas instituidoras da FMT têm perfil empreendedor e sempre estiveram abertos à adoção de tecnologias inovadoras, modernos processos de produção de sementes, beneficiamento e armazenagem, na busca de padrões crescentes de qualidade e produtividade. Muitos deles se qualificam como grandes produtores de grãos e pluma. Além disso, são também proprietários de empresas vinculadas às cadeias produtivas da soja e alguns se classificam entre os maiores exportadores individuais de soja do mundo.

A parceria com a Embrapa teve início em 1994 e tinha por objetivo a obtenção de cultivares de soja e algodão especialmente adaptadas às condições de clima e solos da Região Centro-Oeste.

Com amparo na cooperação formalizada contratualmente, a Embrapa remetia à Fundação Mato Grosso germoplasma com grande valor agregado de pesquisa pela

Embrapa Soja e Embrapa Algodão, respectivamente, para avanço de gerações e testes de linhagens de soja e de algodão, em diferentes áreas do Estado. A quantidade de material genético enviado para testes na FMT justificou colocar dois pesquisadores lotados nos quadros da Embrapa Soja sediada em Londrina-PR, e na Embrapa Algodão, sediada em Campina Grande-PB, para acompanharem in loco o avanço dos experimentos instalados em Rondonópolis e em outros municípios do Estado do Mato Grosso. Muitas cultivares resultaram dessa parceria, algumas das quais conquistaram largas faixas de mercado, como é o caso da cultivar de soja Uirapuru.

Logo após a aprovação da política de propriedade intelectual, a Embrapa convidou a FMT para uma rodada de negociações, visando encerrar os contratos de cooperação então vigentes e firmar novos contratos, em outras bases. As negociações tiveram início em 1996 e se arrastaram por três anos. Na primeira fase a Embrapa logrou êxito parcial, apesar de ter sido obrigada a efetuar concessões para encerrar os trabalhos de cooperação então em andamento sob as regras antigas, cedendo à FMT a co-titularidade de algumas cultivares já acabadas. No entanto, certamente com vistas às cultivares transgênicas, cuja obtenção se avizinhava com o avanço da biotecnologia no país, a FMT não aceitou os novos princípios e conceitos que a Embrapa adotara quando da implantação de sua política e utilizou seu prestígio para continuar a desfrutar do compartilhamento da titularidade das novas cultivares.

A Embrapa não concordou. Não poderia abrir exceção nem mesmo em razão do tamanho e da qualidade técnica da FMT, sob pena de desmoralizar-se junto aos demais parceiros com quem mantinha o mesmo tipo de negociação em outras regiões do país. O impasse foi agravado pelo fato de os mesmos instituidores da FMT terem constituído, em meados de 1998, duas empresas privadas distintas, ambas com sede em Rondonópolis- MT, com o objetivo social de executarem pesquisa em melhoramento genético vegetal de soja e algodão, respectivamente, além de pesquisas em biotecnologia.

Esse fato abortou a possibilidade de prosseguimento da parceria por contrariar a premissa exigida pela Embrapa como único impedimento à constituição de cooperação com o setor privado: a manutenção pelo parceiro privado de programa próprio de melhoramento genético vegetal da mesma espécie objetivada na cooperação técnica, para evitar a mistura e extravio de materiais genéticos com alto valor agregado de pesquisa.

O rompimento ocorreu em 1999. As partes negociaram o ponto de corte a ser aplicado sobre os materiais genéticos em poder da FMT, que se encontravam nos estágios mais avançados de experimentação e testes. Foi estabelecida consensualmente a data de

entrega à Embrapa da parte dos materiais que lhe coubera por força do acordo. No primeiro plantio posterior foi constatado que a FMT devolvera à Embrapa sementes de soja sem valor para o prosseguimento das pesquisas. O material devolvido era completamente distinto das progênies e das linhagens sob estudo e avaliação, cujas características, felizmente, encontravam-se registradas na base de dados que controlava a parceria.

A Embrapa ajuizou duas ações judiciais perante a Justiça Federal reivindicando a devolução do germoplasma de soja e de algodão que lhe pertencia. As provas periciais produzidas nos autos, por meio de testes DNA, comprovaram que a FMT efetivamente devolvera à Embrapa materiais diferentes dos que haviam sido objeto do acordo e se apoderara, indevidamente, do germoplasma da Embrapa, com alto valor agregado de pesquisa. Os dois processos judiciais foram encerrados por acordo, após a Embrapa recuperar o germoplasma que lhe pertencia.

O episódio ilustra com muita precisão a definição de oportunismo como a busca do auto-interesse com avidez. E o conceito de oportunismo, por sua vez, traz à tona uma conotação ética e comportamental dos indivívuos (Williamson, 1985, apud Zylbersztajn, 1995, p.18).

O setor especializado acompanhou com interesse as negociações entre a Embrapa e a FMT. Se o rompimento dessa parceria, amplamente noticiado pela imprensa, representou na época uma ameaça ao sistema de cooperação que a Embrapa adotara com o setor privado, a recuperação de seu germoplasma, por decisão judicial, acabou por fortalecê-lo.

A partir desse episódio, houve o reconhecimento incondicional do setor privado quanto ao direito da Embrapa à titularidade exclusiva sobre suas cultivares. Essa premissa passou a ser aceita porque o êxito da ação, na Justiça, sinalizara que o germoplasma bruto intercambiado pela Embrapa com instituições de pesquisa sediadas em muitos países, conservado nas câmaras frias dos bancos mantidos pela estatal, e enriquecido com valor agregado de sua pesquisa, possui valor inestimável.

A manutenção da titularidade das novas cultivares em nome da estatal e a valorização do germoplasma como fonte original de pesquisa são de importância estratégica para o país. Ainda que o lançamento comercial das primeiras cultivares transgênicas venha sendo efetuado com o emprego de construções gênicas patenteadas em nome de multinacionais, por meio de licenças de uso, essa dependência se prolongará somente até que a Embrapa, as universidades brasileiras e outras entidades de pesquisa

pública venham a obter e a patentear suas próprias construções gênicas. O fato é que o Brasil detém competência técnica na área da genética, da biotecnologia e a potencialidade dos trabalhos de melhoramento produzidos no país são reconhecidos para a faixa tropical do mundo.

Os avanços tecnológicos nessa área são em parte responsáveis pela posição do Brasil como um dos maiores produtores e exportadores de commodities, que garantem saldo favorável na balança comercial. Além disso, o país conquistou performance invejável no que concerne ao abastecimento do mercado interno com a oferta de produtos agropecuários de qualidade a preços baixos, fato que contribuiu para o equilíbrio da economia e controle da inflação.

Apesar dos resultados expressivos dos programas de melhoramento vegetal conduzidos no país dos quais resulta a obtenção de novas variedades de plantas adaptadas a todas as regiões do país, é forçoso reconhecer que as construções gênicas derivadas da biotecnologia, de interesse para a agricultura nacional, ainda se encontram patenteadas em nome de empresas multinacionais.

Caso a Embrapa tivesse cedido às pressões da FMT e concordado em compartilhar a titularidade de suas cultivares convencionais, abriria precedente perigoso para, em seguida, ser compelida a compartilhar a propriedade intelectual das cultivares transgênicas com a própria FMT, mas também com as multinacionais detentoras dos genes de interesse. Dessa forma, tanto as cultivares como também o germoplasma avançado do qual se derivam, mais cedo ou mais tarde, acabariam em poder de terceiros. Mais do que a titularidade de algumas cultivares a Embrapa perderia sua hegemonia para negociar as construções gênicas de interesse e os materiais genéticos mais indicados para recepcioná- los. Em conseqüência, as linhagens promissoras, resistentes a pragas e doenças e de alta competitividade resultantes do enorme esforço que o país realizara nos últimos cinqüenta anos com recursos da sociedade brasileira para desenvolver a genética nacional, passariam ao controle das empresas multinacionais. Na posse desses produtos tecnológicos essas empresas passariam a ditar estratégias com foco no lucro e oportunidades comerciais que nem sempre coincidem com o papel regulador que a Embrapa vem exercendo ao longo das últimas décadas: distribuição das novas tecnologias visando, muitas vezes, o desenvolvimento regional.

Por outro lado, a Embrapa perderia espaço para negociar licença de uso diferenciado de algumas construções gênicas, objetivando a transformação de plantas de espécies vegetais de importância para grupos de agricultores de pequena expressão no

mercado. Exemplo que bem ilustra essa atuação é o desenvolvimento de cultivares transgênicas de batata, mamão e feijão, resistentes a doenças provocadas por vírus, que terão enorme repercussão social quando disponibilizadas, comercialmente, pela Embrapa. Tanto por evitar perdas na produção dessas variedades contra as quais se defrontam, anualmente, os pequenos agricultores familiares, quanto por representar aumento de qualidade no produto final, o lançamento de variedades transgênicas dessas espécies certamente trará impacto positivo na organização de suas cadeias produtivas, com vistas ao atendimento do mercado interno e à exportação, acarretando acréscimo de renda aos seus produtores.

Com a plena consciência sobre a importância estratégica de controlar esse processo, pelo menos até conquistar produtos da biotecnologia e poder prescindir das construções gênicas atualmente patenteadas em nome de multinacionais, a Embrapa resistiu à pressão e optou pelo rompimento com a FMT.

Após o rompimento, os principais conceitos integrantes da política de propriedade intelectual passaram a ser aceitos sem resistência pelos demais parceiros que, com raras exceções, haviam apostado, equivocadamente, que a Embrapa se submeteria às exigências formuladas pelos dirigentes da FMT que tinham influência dentro do sistema político brasileiro.

Outra decorrência da crise foi o reconhecimento da necessidade de reforçar as parcerias antigas e o esforço extraordinário para viabilizar a constituição de novas parcerias, notadamente no próprio Estado do Mato Grosso, o que ocorreu logo em seguida. Naquele momento, o objetivo mais premente da Embrapa era dar prosseguimento aos testes de desenvolvimento das progênies e de avaliação das linhagens adaptadas à Região Centro-Oeste que haviam sido recuperadas, com grande dificuldade, por força da decisão judicial.