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1.11 O DIREITO CIVIL E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE

No documento LIVRO PROPRIETARIO direito civil i (páginas 34-38)

1.11.1. O Personalismo Ético e a Dignidade

Humana

Após a Segunda Grande Guerra Mundial, em razão da consciência em defesa da humanidade provocada pela refl exão quanto às atrocida- des cometidas contra os seres humanos nos campos de concentração nazistas, foi proclamada a DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos (10-12-1948), através da Assembleia Geral das Nações Uni- das, tornando a defesa desses ideais a principal tarefa da ONU – Orga- nização das Nações Unidas, a qual pactuou em consenso com diversos Estados o esforço comum mundial no sentido de tornar claro que a dig- nidade é inerente a todos os membros da família humana, e que todo ser humano tem direitos iguais e inalienáveis à liberdade, à justiça e à paz8.

De acordo com Karl Larenz9, rompe-se assim com o antigo o paradigma

patrimonialista, o qual adotava o contrato e a propriedade como meio para efetivação dos direitos individuais, passando a fi rmar-se o direito das pessoas na sua própria existência, pelo simples fato de se tratar de pessoa humana, de onde decorre o novo paradigma, conhecido como personalismo ético.

Portanto, o ordenamento jurídico deslocou o foco de valores do viés individual patrimonialista, que conservava o Estado Liberal, para o viés da valorização da pessoa humana, passando o Estado Social a garantir a preservação do direito à dignidade da pessoa humana como garan- tia fundamental, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Na visão antiga, sob infl uência do iluminismo, o homem só era compreendido como um indivíduo. Para o homem exercer seus direitos privados, tinha maior relevância aquele que tivesse seu direito ampara- do por um contrato, pela posse ou em razão do direito de propriedade. Esta nova visão do pensamento jurídico pós-Grande Guerra rom- peu defi nitivamente com o modelo patrimonialista. Claus-Wilhelm Ca- naris esclarece que, a partir de então, quase todo ordenamento jurídico do mundo moderno passou a instituir a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos por meio d e Constituiç ões, organizando sua legislação hie- rarquicamente, passando tais valores a incidirem efeitos no Direito Priva- do e em toda legislação infraconstitucional e na jurisprudência.

No personalismo ético, todo homem deve ser percebido como pes- soa, ser da espécie humana, e por isto digno é de atenção do Estado So-

8. UNESCO. Declaração Universal dos Direito Humanos, 1948. Disponível em <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf>. Acesso em 26 fev. 2015.

9. LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Tradução de Miguel Izquierdo y Macías. Picavea. Madri:Ed. Revista de Derecho Privado, 1978. § 2º.

VOCABULÁRIO

Infraconstitucional: é a legislação

que está abaixo da Constituição.

O julgamento de Nu- remberg. O fi lme re-

trata de modo claro, com cenas reais, o motivo que provocou a existência do personalismo ético.

CINEMATECA

KARL LARENZ (1903 a 1993). Jurista alemão

que foi professor nas duas mais importan- tes universidades da Alemanha: Kiel e Munique. Dedi- cava-se ao estudo do Direito Civil, tendo publicado diversas obras jurídicas. Entre suas obras mais importantes, além do estudo da jurisprudência e valores, trouxe o conceito de personalismo ético.

CLAUS-WILHELM CA- NARIS (01-07-1937).

Notável jurista ale- mão, nascido em Liegnitz, que identifi - cou as lacunas na lei. Professor e doutrinador com 16 li- vros publicados em diversos países, além de mais de 180 artigos cientí- fi cos. Por sua destacada atuação e contribuição jurídica e fi losófi ca com o Brasil, recebeu em 2012 o título de doutor honoris causa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Sobre o tema sugerimos a leitura de: CANARIS, Claus-Wilhelm. A infl uência dos di- reitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha, p. 225. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org). Cons- tituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livra- ria do Advogado, 2010, p. 206-207.

cial, independentemente de estar questionando judicialmente proteção de direito contra outra pessoa ou ente privado em defesa de contrato, posse ou propriedade. A pessoa enquanto ser da espécie humana (personalismo ético) prevalece sobre o antigo paradigma do ter (patrimonialismo).

Dentro desta compreensão, emergiu como garantia fundamental a todos cidadãos brasileiros o princípio da dignidade da pessoa humana, através do qual se contempla a evolução social histórica do personalismo ético, um dos pilares básicos de nosso Estado Democrático de Direito (descrito no inciso III do artigo 1º da Carta Magna de 1988).

Com a constitucionalização ocorrendo em diversos países, obser- va-se que as normas buscam uma natural reorganização, em razão da mudança dos seus valores fundamentais, no sentido de repor a pessoa humana como centro do direito civil; esta trajetória de emancipação hu- mana, chamam os doutrinadores de repersonalização dos direitos civis. Desse modo, o Estado Social passou a dar maior relevância à soli- dariedade e à função social dos institutos (propriedade, contrato, res- ponsabilidade civil, família e empresas) para atender melhor à tutela dos mais fracos, delimitando a autonomia privada por meio da intervenção estatal com aplicação direta e dos direitos fundamentais às relações pri- vadas, sempre que necessário. Por força dessa influência da Constituição sobre as relações civis, o legislador passou a criar diversas outras nor- mas infraconstitucionais específicas, que tratam com certa autonomia de questões de ordem pública envolvendo direitos transindividuais (O Estatuto da Criança e Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso, etc.).

Paulo Luiz Netto Lobo explica que esta atividade intervencionista do Estado em defesa dos direitos constitucionais dos cidadãos foi res- ponsável por subtrair do Código Civil matérias inteiras, em alguns casos transformadas em ramos autônomos do direito, como, por exemplo: o direito do trabalho, o direito agrário, o direito das águas, o direito da habitação, o direito da locação de imóveis urbanos, como já citamos, o estatuto da criança e do adolescente, o direito do consumidor, os direitos autorais, entre outros. Este movimento legislativo que de certo modo provocou algum esvaziamento das matérias e do campo de incidência do Código Civil, movido pelo impulso dos novos valores sociais, na pro- teção dos direitos da pessoa humana, alguns juristas chamam também de descodificação do direito civil. Então, este fenômeno também citado como constitucionalização do direito civil poderia ser visto como uma elevação dos princípios fundamentais do direito civil, ao plano constitu- cional, condicionando-os à observância de todos os cidadãos e à aplica- ção, pelos tribunais, da legislação infraconstitucional.

Nota-se com facilidade que existe de fato um esforço por acomodar estes novos valores que se pautam na defesa da pessoa humana, o que tem provocado uma verdadeira reconstrução da regulação das relações civis, impondo uma nova leitura do Código Civil à luz da Constitui- ção Federal de 1988. São inúmeros os nomes que podem retratar este fenômeno, entre eles: repersonalização do direito civil, despatrimo-

Teoria da eficácia horizontal ou irradiante dos direitos funda- mentais.

Os direitos são transindividu- ais por zelarem por uma classe específica de cidadãos, indepen- dentemente de exprimirem sua vontade. Por exemplo: o Ministé- rio Público tem legitimidade para intervir quando existir interesse das crianças e adolescentes, dos idosos, dos consumidores etc. A organização dessas leis infracons- titucionais, quando apresenta conjunto complexo e capaz de lhe conceder certa autonomia, chama a doutrina de microssiste- ma jurídico.

CURIOSIDADE

NETTO LOBO, Paulo Luiz. Cons- titucionalização do direito civil. Revista de informação legislativa. Senado Federal. Brasília, ano 36, n. 141 jan./mar. 1999.

nialização do direito civil, constitucionalização do direito civil. A doutrina cogita inclusive a criação de uma nova disciplina ou ramo metodológico do direito, denominada Direito Civil Constitucional, a qual estuda o direito civil à luz da Constituição Federal, tendo como eixo norteador os princípios constitucionais (a dignidade da pessoa humana, Art.1.º, inciso III; a solidariedade social, Art. 3.º, inciso I; a igualdade substancial, Arts. 3.º, inciso IV, e 5.º, caput; a erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais, Art. 3.º, incisos III e IV) (DE FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 19). Nessa linha, temos no elenco quatro categorias de temas da Constituição Federal que ir- radiam efeitos sobre os direitos civis, sendo que os três primeiros se tornaram princípios constitucionais, conhecidos por: a) princípio da dignidade da pessoa humana; b) princípio da solidariedade, e c) prin- cípio da isonomia ou igualdade. Convém informar que existe projeto no Senado Federal para erigir a erradicação da pobreza a um princí- pio também; quando isto ocorrer, poderemos afi rmar que o Direito Civil Constitucional estuda a infl uência dos princípios constitucio- nais sobre o direito civil. Isso porque a erradicação da desigualdade social, de certo modo, já estaria sendo aplicada através da efetividade do princípio da igualdade substancial.

Então, embora muito mais jovem que o Código Civil, a Constitui- ção Federal de 1988 passou a infl uenciar diretamente toda a legislação brasileira, garantindo o exercício dos direitos fundamentais dos cida- dãos. No direito de família, consolidou-se a família núcleo natural e fun- damental da sociedade; o princípio da isonomia (igualdade) extirpou as diferenças que haviam entre homem e mulher, entre os fi lhos havidos no casamento e fora dele.

Por força e infl uência da Constituição Federal de 1988, também o direito passou a estabelecer a função social (da propriedade, do contra- to etc.) como meio de controle do Estado Social, garantindo sua inter- venção imediata nas relações privadas.

A função social deve ser respeitada e, neste sentido, exige determi- nadas condutas dos sujeitos nas relações civis, sob pena de invalidação do negócio jurídico. A função social permite ao juiz seguir as regras ou cláusulas gerais para resolver a questão através da equidade.No que diz VOCABULÁRIO

equidade: traz consigo a ideia

de distribuição de modo justo, proporcional e razoável, sob análise do caso concreto.

respeito aos contratos, por exemplo, o Código Civil estabelece no Artigo 421 que as partes devem contratar, obedecidos a razão do contrato e os limites da sua função social. Isto quer dizer que não pode uma parte contratar em prejuízo da outra, ou da coletividade, sob pena de abuso de direito. Logo mais à frente, no Artigo 422, isto se demonstra claramente, quando o Estado impõe aos contratantes a obrigação de guardar na exe- cução e conclusão do contrato os princípios da probidade e da boa-fé. Miguel Reale explica que a função social do contrato no Código Civil existe por derivar da Constituição Federal de 1988, que, em seu Artigo 5.º, incisos XXII e XXIII, descreve que o direito de propriedade atenderá sempre a sua função social.

As cláusulas gerais do Código Civil, conforme já estudamos, podem ser a) restritivas; b) regulativas e c) extensivas. Ainda com estas categorias em mente, examinemos os artigos 112, 113, 114, 421, 422 e 423 do Có- digo Civil. Tais artigos fornecem critérios interpretativos ao magistrado para que lhe permitam, ao julgar o caso concreto, conservar os princípios da intencionalidade, da probidade e da boa-fé nas relações negociais.

CLÁUSULAS GERAIS DO CÓDIGO CIVIL

Art. Texto PALAVRAS-CHAVE

112

Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem.

PRINCÍPIO DA IN- TENÇÃO

113

Os negócios jurídicos devem ser interpreta- dos conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

PRINCÍPIO DA BOA -FÉ OBJETIVA E COSTUMES

114 Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia

interpretam-se estritamente. INTERPRETAÇÃO RESTRITA negócios gratuitos, doação e renúncia 421

A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do con- trato.

FUNÇÃO SOCIAL

422

Os contratantes são obrigados a guardar assim na conclusão do contrato como em sua execução os princípios da probidade e da boa-fé.

PRINCÍPIO DA PROBIDADE E DA BOA-FÉ OBJETIVA

423

Quando houver no contrato de adesão cláu- sulas ambíguas e contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.

INTERPRETAÇÃO BENÉFICA AO MAIS FRACO

A aplicação imediata pelo Judiciário dos direitos fundamentais às relações privadas, a doutrina denomina eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

A influên-

cia dos direitos f u n d a m e n t a i s garantidos pela C o n s t i t u i ç ã o sobre o Direito Privado recebe vários nomes si- nônimos pela doutrina, tais como: constitucionalização do direito civil ou direito privado; descodi- ficação do direito civil; reperso- nalização do direito privado ou dos direitos civis, despatrimoniali- zação etc. Alguns doutrinadores cogitam ainda o surgimento de um outro ramo do direito: o Direi- to Civil Constitucional.

CURIOSIDADE Personalismo Ético: Teoria ins- pirada no pensamento iluminista de Kant, desenvolvida por Karl Larenz, na qual a pessoa deve ser considerada o fim e não o meio, pois não possui um preço. Base fundamental para a construção do princípio da dignidade da pes- soa humana adotado pela Cons- tituição Federal de 1988.

REALE, Miguel. Função Social do Contrato, 2003. Disponível em http://www.miguelreale.com.br/ artigos.

SAIBA MAIS VOCABULÁRIO

abuso de direito: ocorre quan-

do o titular de um direito, ao exercê-lo, excede manifesta- mente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons cos- tumes, conforme descreve o Art. 187 do Código Civil.

No documento LIVRO PROPRIETARIO direito civil i (páginas 34-38)