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5.3. O dispositivo enunciativo: os jogos do locutor

5.3.3. O jogo de posicionamentos enunciativos: a verdade do locutor

Conforme já dissemos, no início do evento da CPMI dos Correios (primeiro pronunciamento) o locutor negou saber sobre a corrupção nos Correios80. Inclusive, negou qualquer vínculo político com Mauricio Marinho (Marinho dizia fazer parte de um esquema de arrecadação de dinheiro para o PTB, do ex-deputado Roberto Jefferson – financiamento de campanhas eleitorais). Portanto, naquele momento foram recorrentes os atos de fala refutativos expressos, principalmente, por meio das subordinadas concessivas e das coordenadas adversativas. No entanto, à medida que o locutor foi sendo exposto aos depoimentos, em um primeiro momento ele assumiu (fez saber) e declarou (e confessou), principalmente através das orações subordinadas comparativas e do agenciamento do pronome “nós” e da “expressão” “a gente”, que o financiamento das campanhas eleitorais no Brasil é irregular, além de ser realizado, da mesma forma, por todos os parlamentares, inclusive por ele, o que constituiu uma forte estratégia, uma vez que colocou os adversários, investidos do papel de inquiridores, no mesmo patamar no qual se encontrava: réu. Vejamos o fragmento:

Segundo depoimento - fragmento 42

Eu trouxe aqui, Srs. Senadores e Srs. Deputados, porque peguei na Justiça Eleitoral, todas as prestações de contas, a minha e a dos senhores; na Justiça Eleitoral. Aí é o princípio da mentira que a gente vive aqui.

Não há, povo do Brasil, cidadã do Brasil, cidadão do Brasil, eleição de deputado federal que custe menos de um milhão, ou de um milhão e meio de reais. Mas a média, aqui na CPI e da Câmara dos Deputados, a prestação de contas é de R$100 mil. Não há eleição de Senador da República que custe menos de dois milhões, R$3 milhões, mas a prestação de contas que exibo...

Não há eleição de Senador que custe menos de dois milhões, R$3 milhões. Eu quero mostrar a V. Exªs e ao povo do Brasil. Porque esse julgamento aqui do Plenário não me preocupa, Senador. Não é pra vocês que eu tou falando. Nenhuma preocupação. É com o povo que me vê lá fora.

Não há uma eleição de Senador com menos de dois milhões, R$3 milhões e a prestação de contas, a média é duzentos e cinqüenta mil. Esse processo começa na mentira e deságua no PC Farias, deságua nos outros tesoureiros de campanha, agora no Sr. Delúbio, agora no Sr. Marcos Valério. Esse afrouxamento é que tem levado ao enfraquecimento da Câmara dos Deputados, do Governo Federal e dos Governos dos Estados.

Fui ao Rio de Janeiro ver a prestação de contas do meu candidato a prefeito e comparei a prestação de contas da candidatura dele com a do ex-candidato José Genoíno para governador de São Paulo. É de deixar a gente perplexo. Ou alguém tem dúvida de que a campanha mais rica de 2002 foi a campanha do PT? A mais milionária, a mais poderosa em todo o Brasil, do Oiapoque ao Chuí, de Leste a Oeste.

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E as declarações à Justiça Eleitoral não traduzem a realidade; nem a minha, porque a minha é igual à dos senhores, não é diferente. E onde enfrentamos esse problema, Deputado Onyx? Eu assistia sábado ao Jornal Nacional e, de repente, entrou uma matéria mostrando que o Coaf, por meio do Ministério Público Federal e a revista Istoé, desvendou as contas do Sr. Marcos Valério. Aí revestiu a realidade a prova que tanto foi cobrada. No início me cobravam: “Provas, provas, provas”! A realidade foi vestida, vestiu o discurso que fiz, as informações que dei.

No fragmento acima, em um primeiro momento, o locutor denunciou (e confessou) que, em relação ao financiamento de campanhas eleitorais, todos os parlamentares vivem uma grande mentira, inclusive ele (reconhecimento de culpa que invoca um ethos de humanidade), tendo em vista se colocar no mesmo patamar de seus colegas parlamentares e, de certa forma, intimidá-los.

É importante observar que, através da inserção81 “porque peguei na Justiça Eleitoral” (a palavra Justiça Eleitoral foi usada repetidamente no fragmento), ele buscou dar mais força à intimidação, uma vez que se referia a documentos oriundos de um órgão que tem credibilidade perante o povo: a Justiça Eleitoral. Além disso, por meio do dêitico “aí”, referindo-se à Justiça Eleitoral, constatou também o lugar de origem da mentira vivida pela classe política brasileira, o que, a nosso ver, também reforçou a intimidação82.

Nessa perspectiva, ele se dirigiu ao povo brasileiro e, através de atos de refutação retificadores83, denunciou as reais práticas de financiamento eleitoral no Brasil (ethos de denunciante), fazendo saber, primeiramente, sobre as contas de deputado federal. Através do aposto “na CPI”, que ampliou a dimensão do dêitico “aqui”, e da adjunção “a prestação de contas”, ele tentou desqualificar a CPI e a Câmara dos Deputados. Em seguida, o locutor fez saber sobre a prestação de contas dos Senadores, repetindo o ato de refutação que denunciava essas contas.

Através de um período explicativo refutativo complexo84, ele continuou a intimidar os parlamentares e se mostrou preocupado com o bem estar do povo (não admite que o povo seja enganado), buscando se construir na cena com um ethos de chefe: “Porque esse julgamento

81 Esse “fenômeno” é conhecido na Gramática Normativa por oração intercalada/interferente.

82 Segundo Jefferson, todos os políticos fazem caixa 2, uma vez que a legislação eleitoral que nós temos ainda é

a do Marechal Castelo Branco (JEFFERSON, 2006, p. 182).

83 No ato de fala refutativo retificador o foco da negação incide sobre o conteúdo posto em seu conjunto

(NAGAMINE, 1998, p. 91).

aqui do Plenário não me preocupa, Senador85. Não é pra vocês que eu tou falando. Nenhuma preocupação. É com o povo que me vê lá fora”.

É importante ressaltar que o locutor levou uma pasta vermelha repleta de “documentos” – segundo ele, prestação de contas eleitorais de deputados e senadores – no momento em que discursava, retirava os referidos “documentos” da pasta, o que por si só já caracterizava um gesto de intimidação86.

O locutor refutou a tese de que estava preocupado com o julgamento dos colegas parlamentares, alegando que falava para o povo e não para os parlamentares. É importante observar que no ato de justificação ele referiu-se aos parlamentares por “vocês” e usou um lexema da norma não padrão “tô”, a nosso ver, no sentido de mostrar desprezo. Além disso, ele parafraseou esse ato refutativo, tendo em vista reforçar a intimidação.

Segundo ele87, o financiamento irregular é operado sempre da mesma forma, pela mesma gente, isto é, através de um operador e/ou um tesoureiro, citando PC Farias, tesoureiro de Collor, Delúbio e Marcos Valério, com o intuito de defender a reforma política e culpar o próprio sistema pelos escândalos de corrupção – ressaltou, através de um tema marcado, que o afrouxamento é o responsável pela corrupção: “Esse afrouxamento é que tem levado ao enfraquecimento da Câmara dos Deputados, do Governo Federal e dos Governos dos Estados”. Roberto Jefferson se referia à forma como as campanhas eleitorais no Brasil são financiadas, uma prática que vem, segundo ele, desde o governo do Marechal Castelo Branco. Nesse sentido, todos os parlamentares são iguais, pois praticam, ainda segundo Roberto Jefferson, caixa 2.

Ele denunciou que todos os parlamentares financiam suas campanhas da mesma forma, mas enfatizou as contas do PT, tendo em vista desqualificá-lo. Segundo ele, comparou as contas

85 Ele se dirigia ao Deputado Saturnino que tentava tomar-lhe o turno para protestar.

86 Com mais de duas horas de atraso, Jefferson chegou à CPI com uma maleta vermelha de rodinhas, levantando

burburinhos sobre a possibilidade de ter trazido “provas”. Dentro da pasta vermelha, porém, estavam pastas de documentos, inclusive as prestações de contas eleitorais dos integrantes da CPI (FOLHA ON-LINE, 01/07/2005, p. 1).

87Toda classe política brasileira compartilha a culpa pelo afrouxamento moral nas regras de financiamento das

campanhas eleitorais – esta mentira que, no governo Lula, desaguou em Delúbio Soares e Marcos Valério, como tinha desaguado, no passado, em PC Farias. É isso que tem levado ao enfraquecimento do Congresso Nacional, do governo federal e dos governos estaduais. Nessa culpa somos todos iguais (JEFFERSON, 2006, p. 22).

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do ex-candidatado a governador de São Paulo, José Genoíno (PT)88, com as de seu candidato a prefeito e ficou perplexo. Através de uma interrogativa e depois de uma comparação, ele dirigiu-se aos interlocutores para mostrar sua consternação e revelou que as campanhas do PT em 2002, especificamente na derrota de José Genoíno para o governo de São, tinham sido milionárias e não estavam representadas nas contas eleitorais oficiais: “Ou alguém tem dúvida de que a campanha mais rica de 2002 foi a campanha do PT? A mais milionária, a mais poderosa em todo o Brasil, do Oiapoque ao Chuí, de Leste a Oeste. E as declarações à Justiça Eleitoral não traduzem a realidade; nem a minha, porque a minha é igual à dos senhores, não é diferente”. Finalmente, ele revelou que as declarações feitas à Justiça Eleitoral são fantasiosas.

É importante salientar que o ato de fala declarativo, tanto de confissão quanto de denúncia e de revelação, ocorreu no domínio da verdade e contribuiu para a constituição do ethé de identificação (ethos de denunciante na figura do herói e do profeta). Consideramos denúncia diferente de revelação, embora essas palavras se encontrem dicionarizadas com o mesmo sentido. A nosso ver, a revelação é da ordem do profeta, do divino e diz respeito à divulgação de coisa ignorada, como o esquema do “Mensalão”, por exemplo. Já a denúncia é da ordem do herói e se refere à evidência de algo não ignorado pelo outro (por isso se diz delatar). Em nossa opinião, o herói denunciou o financiamento ilegal de campanhas eleitorais no Brasil. O profeta revelou a verdade sobre o esquema do “Mensalão”.

No fragmento a seguir (já no primeiro depoimento), o locutor combinou atos refutativos com constatativos e com declarativos (confissão, denúncia e revelação), tendo em vista denunciar e revelar:

Primeiro depoimento – fragmento 09

Explico a V.Exa. Não há partido nenhum aqui que faça diferente, nem o de V.Exa. Nenhum partido aqui, recebe ajuda na eleição que não seja assim; nenhum. Eu tenho a coragem de dizer de público aqui: Eu não aluguei o meu partido, não fiz dele um exército mercenário nem transformei os meus colegas de bancada em homens de aluguel, mas eu sei de onde vêm os recursos das eleições e todos sabem. Aqui, todos sabem de onde vêm. Só que nós temos a hipocrisia de não confessar ao Brasil. Eu estou assumindo isso, aqui. E faço como pessoa física, faço como Roberto Jefferson. Os dinheiros vêm dos empresários que, a maioria das vezes, mantêm relação com as empresas públicas. É assim e sempre foi. E essas oligarquias antigas, corrompidas, corrompedoras, acabaram por contaminar até a bandeira que, durante 25 anos, lutou a favor da ética e da moralidade na coisa pública. Infelizmente, Sr. Presidente. Todo mundo

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sabe de onde vem o recurso aqui. Não há quem não faça eleição assim. Nós precisamos é abrir aqui na Comissão de Ética essa ferida para que o Brasil saiba como é.

Constatou que todos os parlamentares agem da mesma forma em relação ao financiamento de campanhas eleitorais e assumiu que o seu partido também age da mesma forma (ato declarativo de confissão), constituindo-se, assim, na cena com um ethos de humanidade. Mas, negou ter recebido o “Mensalão”.

Concomitantemente a essas constatações e confissões, ele denunciou também, na forma de revelação, o “Mensalão”, buscando se constituir com um ethos de denunciante (o profeta e o herói). Em entrevista à repórter Renata Lo Prete, da Folha de São Paulo, Roberto Jefferson contou que o governo do PT dera a parlamentares do PP e do PL uma propina mensal de 30 mil reais em troca de apoio no Congresso. O então deputado afirmou que o chamado “Mensalão” tinha sido pago por Delúbio Soares até o início do ano, quando fora então suspenso:

Primeiro depoimento – fragmento 10

Desde agosto de 2003, é voz corrente em cada canto dessa casa, que o seu Delúbio, com o conhecimento do seu Zé Genoíno....SIM... tendo como pombo-correio o seu Marcos Valério, que é um carequinha que é publicitário lá de Minas Gerais, repassa dinheiro a partidos que compõem a base de sustentação do governo no negócio chamado mensalão.

Além disso, ele denunciou irregularidades na Diretoria de Informática dos Correios e na Valec Engenharia, Construções e Ferrovias S.A, na Ferrovia Norte-Sul (FNS) e no Departamento Nacional de Infra-estrutura e Transportes (DNIT).

Nesse sentido, ele se manifestou como um indivíduo que detinha um saber, ou seja, um segredo (o governo petista pagava uma mesada de 30 mil a parlamentares do PP e do PL para que esses aprovassem projetos no governo), portanto detinha também determinado poder. Em algum aspecto, ele se assemelha a Édipo Rei: detém um segredo, portanto detém dado poder: “[...] pessoas, um soberano, um povo - ignorando uma certa verdade, conseguem [...] descobrir uma verdade que coloca em questão a própria soberania do soberano” (FOUCAULT, 2003, p. 31).

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No entanto, na trama da CPMI dos Correios, o povo e o soberano não descobrem a verdade, mas esta lhes é oferecida, de presente e, como em Édipo Rei, ela também põe em perigo a soberania do soberano. Na trama, a verdade é como em Édipo: ela é prescritiva e profética, embora aquele que traz a verdade (o profeta) aponte o passado e o presente:

Segundo depoimento – fragmento 16

“Se PC “faria” - e fez -, hoje, Delúbio e Marcos Valério fazem e outros que virão continuarão a fazer se não mudarmos essas práticas de financiamento eleitoral”

A verdade, conforme ressalta Foucault (2003), não vem completa, embora, diferentemente da perspectiva do filósofo, ela tenha a dimensão do presente, da atualidade, da designação de alguém (Delúbio Soares e Marcos Valério) e o testemunho do que realmente aconteceu (PC Farias).

O locutor via-se como portador de uma verdade que deveria ser revelada ao povo (ele era a própria verdade), tendo em vista salvá-lo das garras do mal, o PT: ele é o guia supremo na figura do profeta e do herói. Mas a verdade completa precisa de testemunhas. Portanto, ele agenciou o discurso direto, as máximas, os provérbios, as citações e as narrativas religiosas, além das narrativas infantis.