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O jogo de “vozes” enunciativas: as testemunhas do locutor

5.3. O dispositivo enunciativo: os jogos do locutor

5.3.4. O jogo de “vozes” enunciativas: as testemunhas do locutor

A verdade necessita de testemunhas. O discurso do locutor da CPMI dos Correios é, portanto, marcado por uma importante multiplicidade discursiva. Lá estão as enunciações que nem sempre pertencem ao campo político como, por exemplo, os aspectos religiosos e os populares (as máximas, os provérbios, as narrativas infantis), além do discurso direto, postos em cena como testemunhas de suas revelações.

Os provérbios, segundo Maingueneau (2001, p. 169), são fundamentalmente polifônicos, uma vez que o enunciador apresenta sua enunciação como uma retomada de inúmeras enunciações anteriores, as de todos os locutores que já proferiram aquele provérbio. Proferir um provérbio, na concepção do autor, significa fazer com que seja ouvida, através de sua própria voz, outra voz, a da “sabedoria popular”, à qual se atribui a responsabilidade pelo enunciado. O

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enunciador não explicita a fonte desse enunciado: cabe ao co-enunciador identificar o provérbio como tal, apoiando-se, ao mesmo tempo, nas propriedades lingüísticas do enunciado e em sua própria memória. Na perspectiva de Aristóteles (2005, p. 151), “os provérbios são testemunhos em causas jurídicas [...]”.

Durante o evento da CPMI dos Correios, os provérbios foram usados pelo locutor para testemunhar sua verdade. Para sustentar a tese de que o esquema do “Mensalão” era de responsabilidade da cúpula do PT (segundo o locutor, o PT roubou mais que qualquer outro partido - e roubou sozinho), o locutor agenciou, num tom sentencioso, o provérbio: “Quem nunca comeu mel quando come se lambuza”. Vejamos o fragmento:

Segundo pronunciamento – fragmento 43

O PT não tem projeto de governo. Quero dizer o PT nesse Campo Majoritário e essa cúpula que assaltou o Brasil. Rato magro. Quem nunca comeu mel quando come se lambuza. Rato magro. PC Farias é aprendiz de feiticeiro ante essa gente que assaltou o Brasil. Rato magro. Mas nunca bati no peito para dizer que sou o paladino da ética e o campeão olímpico da moralidade.

Já o discurso direto, segundo Maingueneau (2001), não se satisfaz em eximir o enunciador de qualquer responsabilidade, mas ainda simula restituir as falas citadas e se caracteriza pelo fato de dissociar claramente as duas situações enunciativas: a do discurso citante e a do discurso citado. O discurso direto foi usado pelo locutor geralmente para criar um efeito de autenticidade, distanciar-se do que foi dito ou apresentar-se objetivo e sério.

Através desse recurso, o locutor retratou os diálogos que teve com seus interlocutores, principalmente, com o Presidente Lula, tendo em vista trazer mais autenticidade e dar mais credibilidade ao seu discurso, conforme podemos ver a seguir:

Primeiro pronunciamento – fragmento 44

Noutro dia, o Presidente Lula me perguntou: "Roberto, com o que você sonha, o que você quer?" Eu respondi: "Sonho em construir um grande partido. Não quero ser Ministro, não quero ser Governador de Estado, não sonho em ser Senador da República. Quero construir um grande partido, o grande PTB.

No fragmento acima, o locutor, tendo em vista “provar” que era um político sério e idealista, amigo íntimo do Presidente Lula, agenciou o discurso direto do então presidente, autoridade política máxima do País. Ele fez falar o presidente, atribuindo-lhe a responsabilidade da fala,

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dando a conhecer não só o que o presidente dizia, mas, sobretudo, como dizia (“tom” de amizade entre os interactantes).

Quanto às citações religiosas (também bastante agenciadas pelo locutor), ocorre um distanciamento entre o discurso citado e o que cita. Conforme ressalta Maingueneau (2001), é como se o locutor dissesse: o que eu digo é verdade porque não sou eu que o digo, como também o contrário. O locutor citado é um não-eu em relação ao locutor que cita, ele constitui também uma autoridade que protege o discurso do locutor que cita. No caso do discurso religioso, esse distanciamento e essa ambigüidade devem ser apagados, uma vez que, para o interlocutor desse discurso, a única palavra que se deve presentificar é a do locutor (o divino). Vejamos o fragmento a seguir:

Segundo depoimento – fragmento 08

Enfrento uma luta aqui como cidadão, como homem, como chefe de família, como pai, como avô, que sai daqui do Congresso Nacional da maneira que entrou: pela porta da frente. Ninguém vai me botar de joelhos e de rabo entre as pernas. Ninguém. Ninguém vai me acanalhar. Ninguém.

Sou um homem, com erros e acertos; defeitos e virtudes. E vou sair daqui de cabeça erguida. Lendo Mateus eu vi lá escrito: “Não temais aquele que pode matar o corpo, temei o que pode matar a sua alma e o seu espírito”. Um homem que não tem honra não tem alma. O homem desonrado é um zumbi, não tem espírito.

No fragmento acima, o locutor agenciou um texto da Bíblia Sagrada, tendo em vista passar para o interlocutor a imagem de autenticidade e fidelidade para com a palavra citada: a honra é a maior virtude de um homem (o locutor tentou se construir durante o evento como um cidadão honrado). Uma instituição religiosa se vale, portanto, da autoridade do discurso bíblico para pregar suas verdades. O locutor se anulou diante do enunciador posto em cena (Mateus), pois as palavras do discurso bíblico não podem ser atribuídas a um locutor comum. Sendo divinas, emanando de Deus, elas constituem a verdade eterna e incontestável.

Acreditamos que as citações e as narrativas religiosas, postas em cena pelo locutor durante o evento da CPMI dos Correios, auxiliaram também na constituição do ethos de homem de religiosidade e de profeta, no sentido de ser aquele que conhece a palavra sagrada.

O locutor fez alusão a várias narrativas infantis, as quais também foram importantes na constituição das imagens de si e do outro (dimensão representacional) e na patemização (dimensão emotiva). Dentre essas narrativas merece destaque a referência ao conto maravilhoso “A roupa nova do imperador”, de Hans Christian Andersen (1837), posto em

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cena pelo locutor para comparar o Presidente Lula ao monarca da história: um rei ingênuo e omisso. Discutiremos essa questão na subseção denominada “Lula: de homem do povo a rei ingênuo e omisso”.

Na seção seguinte, analisaremos a história do “Mensalão” contada na ótica de Roberto Jefferson.