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5.3. O dispositivo enunciativo: os jogos do locutor

5.3.1. O jogo de formas pronominais e nominais: as máscaras do locutor

5.3.1.1. O uso do pronome “eu”

O locutor, quando explícito, pode se manifestar por meio da forma pronominal “eu” ou “nós”, porém com efeitos de sentido diferentes. O uso do pronome “eu” implica, a princípio, uma tomada clara de posição, um total engajamento em relação ao dito. O indivíduo se propõe como sujeito do discurso e assume, por sua conta, aquilo que diz.

O “eu” agenciado predominantemente pelo locutor no discurso foi, inicialmente, o de um deputado que desejava provar sua inocência65, ou seja, levar o interlocutor à conclusão de que não estava envolvido nas denúncias de corrupção nos Correios: ele é o político honesto e sério. Portanto, se manifestou na cena negando as acusações feitas pela Revista Veja66 de que o PTB era o comandante e ele, o gerenciador do pagamento de propinas nos Correios e de que temia uma CPI. Além disso, ele tentou explicar seu relacionamento com o Comandante Molina67 e com Mauricio Marinho (discurso de justificação). Vejamos o fragmento a seguir:

Primeiro pronunciamento – fragmento 24

Digo (eu) aos companheiros de partido, especialmente desta Casa, que jamais me encontrei, dentro ou fora dos Correios, para conversar sobre negócios com o Sr. Maurício

65 Segundo as denúncias veiculadas na mídia, em especial na Revista Veja, o PTB era o suposto comandante e

Roberto Jefferson, o gerenciador da corrupção nos Correios.

66 Edição 1905, 18 de maio de 2005. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/180505/p_054.html>

67 Molina procurou Roberto Jefferson para negociar a fita. Segundo Jefferson, esse alegou que era comandante

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Marinho. Ele esteve uma vez no meu aniversário. Outra vez, no aeroporto, embarcando, quando se encontrava com um grupo de pessoas da empresa e me cumprimentou. Esteve uma vez com o Dr. Antonio Osório, com certeza na Liderança do partido. Mas nunca integrou nossos quadros e nunca recebeu do PTB ou da minha parte, Presidente do partido, delegação para pedir qualquer recurso a qualquer pessoa [...]

Sr. Presidente, li com carinho a matéria do sério jornalista. Quis saber quem é Policarpo Júnior. Indaguei isso à minha assessoria de imprensa, que me disse: "É um homem sério, correto. Duro, mas um homem correto, que não está livre de se enganar". Li com calma a matéria que produziu, que envolve meu nome e mostra meu retrato embaixo, no momento em que o Sr. Maurício Marinho recebia 3 mil reais, como se eu estivesse envolvido no mar de corrupção que esse funcionário e os supostos empresários - dois arapongas - dizem que existe na Empresa de Correios e Telégrafos.

O locutor se dirigiu aos companheiros de partido (ethos de legitimidade - quem fala é o deputado Roberto Jefferson) e negou, através dos advérbios “jamais” e “nunca” (usado duas vezes no fragmento), qualquer envolvimento político com Mauricio Marinho, tendo em vista construir uma imagem de político idôneo e sério.

Além disso, através de uma modalidade delocutiva, ele negou ter conhecimento da existência de corrupção nos Correios: “[...] esse funcionário e os supostos empresários – dois arapongas – dizem que existe na Empresa de Correios e Telégrafos”, numa tentativa de se reafirmar na cena como um político honesto e sério.

É importante ressaltar que, embora tenha negado as denúncias, implicitamente ele tentou intimidar os adversários ao trazer à cena sua participação, como advogado, na CPI de PC Farias:

Primeiro pronunciamento – fragmento 25

Já passei por uma CPI. Lembro-me de que, quando defendi Collor, o Senador Eduardo Suplicy disse que eu havia levado 1 milhão de dólares do PC Farias para defender o Collor. Fui sacudido de cabeça para baixo nesta Casa. Ao final da CPI, quem me investigou foi o então Deputado Aloizio Mercadante, hoje Senador, que me disse: "Roberto, você desculpe. Não há nada contra você". Mas meu pai teve o sigilo quebrado, assim como minha mãe, todos os meus 6 irmãos, meus filhos, minha esposa, todos. Passei por esse sofrimento e não temo passar de novo.

Mas, ao longo do evento, a intenção do deputado “honesto” (provar sua inocência negando ter conhecimento sobre a corrupção nos Correios) deu lugar a outra, que passou a ser seu objetivo principal: denunciar o esquema do “Mensalão” (ethos de denunciante: o guia supremo na figura do herói e do profeta). Isso ocorreu a partir dos depoimentos. Antes dessa

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denúncia, ele fez saber como se dá o financiamento de campanhas eleitorais no País e assumiu que todos os parlamentares o realizam da mesma forma, inclusive ele. Vejamos:

Primeiro depoimento – fragmento 09

Explico a V.Exa. Não há partido nenhum aqui que faça diferente, nem o de V.Exa. Nenhum partido aqui, recebe ajuda na eleição que não seja assim; nenhum. Eu tenho a coragem de dizer de público aqui: Eu não aluguei o meu partido, não fiz dele um exército mercenário nem transformei os meus colegas de bancada em homens de aluguel, mas eu sei de onde vêm os recursos das eleições e todos sabem. Aqui, todos sabem de onde vêm. Só que nós temos a hipocrisia de não confessar ao Brasil. Eu estou assumindo isso, aqui. E faço como pessoa física, faço como Roberto Jefferson. Os dinheiros vêm dos empresários que, a maioria das vezes, mantêm relação com as empresas públicas. É assim e sempre foi. E essas oligarquias antigas, corrompidas, corrompedoras, acabaram por contaminar até a bandeira que, durante 25 anos, lutou a favor da ética e da moralidade na coisa pública. Infelizmente, Sr. Presidente. Todo mundo sabe de onde vem o recurso aqui. Não há quem não faça eleição assim. Nós precisamos é abrir aqui na Comissão de Ética essa ferida para que o Brasil saiba como é.

No fragmento acima (primeiro depoimento), o locutor declarou que todos os parlamentares agem da mesma forma em relação ao financiamento de campanhas eleitorais e assumiu que o seu partido também age da mesma maneira (ato declarativo de confissão), constituindo-se, assim, na cena com um ethos de humanidade. Mas, negou ter recebido o “Mensalão”.

Além disso, ele denunciou também, na forma de revelação, o “Mensalão”, buscando se constituir com um ethos de denunciante (o profeta e o herói). Em entrevista à repórter Renata Lo Prete, da Folha de São Paulo, Roberto Jefferson contou que o governo do PT dera a parlamentares do PP e do PL uma propina mensal de 30 mil reais em troca de apoio no Congresso. O então deputado afirmou que o chamado “Mensalão” tinha sido pago por Delúbio Soares até o início do ano, quando fora então suspenso:

Primeiro depoimento – fragmento

Desde agosto de 2003, é voz corrente em cada canto dessa casa, que o seu Delúbio, com o conhecimento do seu Zé Genoíno....SIM... tendo como pombo-correio o seu Marcos Valério, que é um carequinha que é publicitário lá de Minas Gerais, repassa dinheiro a partidos que compõem a base de sustentação do governo no negócio chamado mensalão.

Segundo o locutor, o dinheiro público é usado em campanhas eleitorais ao invés de ser utilizado em benefício da sociedade, tentando se constituir como um denunciante: “o crime do dinheiro do imposto”. Ao se manifestar contrário a essa prática (mostrou-se a favor do

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financiamento privado), ele propôs uma solução, “mágica”, para problemas sociais, complexos, como a fome, a saúde e a educação (ethos de demagogo): põe em cena que o dinheiro público usado nas campanhas eleitorais pode resolver todos os problemas sociais do País.

Nesse sentido, ele buscou sensibilizar o povo através de um encadeamento de imagens que se contrastavam e comoviam como, por exemplo: o político com a camiseta no corpo, mas o velho no hospital sem remédio; o carro do político com a corneta de som, mas a criança fora da escola; o político na faixa, no outdoor, mas o pobre sem comida. Vejamos o fragmento:

Segundo depoimento – fragmento 26

Eu não quero vestir amanhã uma camiseta “Roberto Jefferson, Deputado Federal”, sabendo que a camiseta que coloco no meu corpo tira do velho no hospital o remédio de que ele precisa. Eu não quero botar uma corneta de som no meu carro, Sr. Presidente, Sr. Relator, sabendo que vou tomar de uma criança a vaga na escola. Eu não quero estender uma faixa,um outdoor, sabendo que o dinheiro público que vai para a minha campanha vai tomar o prato de comida do pobre que não tem. Se fôssemos um país rico, tudo bem. Se viesse o financiamento público para impedir o caixa dois, tudo bem. Ele não vem. Ele vai somar crimes. O crime do dinheiro do imposto. Roubar do pobre em favor do Governador, do Senador, do Deputado, do Vereador e do Prefeito e o crime do caixa dois, que vai continuar a existir.

É importante salientar que, ao construir a imagem de denunciante (proposta a partir dos depoimentos), o locutor pôs em cena que “falava” na condição de cidadão honrado e ser humano “comum” (veja estruturas sintáticas subordinadas modais). Inclusive, ele negou o papel social de deputado (como também o de advogado), conforme podemos ver na análise das estruturas sintáticas coordenadas aditivas. Vejamos o fragmento:

Segundo depoimento– fragmento 09

“Enfrento uma luta aqui como cidadão, como homem, como chefe de família, como pai, como avô, que sai daqui do Congresso Nacional da maneira que entrou: pela porta da frente”

Sou (eu) um homem, com erros e acertos; defeitos e virtudes. E vou sair (eu) daqui de cabeça erguida. Lendo Mateus eu vi lá escrito: “Não temais aquele que pode matar o corpo, temei o que pode matar a sua alma e o seu espírito”. Um homem que não tem honra não tem alma. O homem desonrado é um zumbi, não tem espírito.

No fragmento acima, ele ressaltou “falar” na condição de cidadão honrado, ser humano “comum” (com erros e acertos, defeitos e virtudes), tendo em vista sensibilizar o povo e angariar sua confiança e admiração.

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Essa imagem de ser humano “comum” parece estar atrelada ao discurso religioso: é um homem de religiosidade. Podemos observar que o locutor agenciou uma citação bíblica com o objetivo de reforçar o papel recém assumido (durante o evento, o locutor manifestou-se também como um homem de religiosidade, tanto através da invocação do nome de Deus quanto das citações e narrativas religiosas).

Podemos dizer que ocorreu uma mudança de estratégia no decorrer do evento: a imagem de político honesto e sério, construída no primeiro pronunciamento, deu lugar a do denunciante (depoimentos). O locutor negou os papéis sociais de parlamentar e advogado e assumiu os de cidadão honrado e ser humano “comum” (depoimentos).

No entanto, o locutor não conseguiu se manter nesses papéis. Quem “disse” predominantemente no evento foi o parlamentar: um representante do povo que denunciava o esquema de pagamento de propina, pelo governo petista, a parlamentares do PP e do PL, em troca de fidelidade aos projetos do governo, e propunha reformas políticas. Assim, prevaleceu a imagem do denunciante na figura do herói e do profeta. Vejamos:

Segundo depoimento - fragmento 27

Eu vim dizer aos meus iguais, às minhas iguais, que quero contribuir para que esse assunto possa ser discutido e debatido. Estamos às vésperas de reformas. Tenho ouvido falar em financiamento público de campanha. Digo ao meu Partido, de que me afastei como Presidente: é um escândalo o financiamento público, é um escândalo. Hoje, um bilhão, pelos R$2,00 por voto que estamos vendo serem colocados a partir de agora no Orçamento da União. Mas, lembrem-se, o senhor e a senhora que estão em casa, que quem faz o Orçamento é o Congresso Nacional. Um bilhão hoje com o voto a R$2,00. Amanhã, dois bilhões com o voto a R$4,00. Depois de amanhã, 3 bilhões vai custar a eleição com o voto a R$6,00, porque quem faz o Orçamento somos nós, os que vamos nos beneficiar do financiamento público.

Conforme podemos ver no fragmento acima, a maneira como o locutor dirigiu-se aos interlocutores bem como outros índices lingüísticos põem em cena a imagem do parlamentar: “Eu vim dizer aos meus iguais, às minhas iguais”; “Digo ao meu partido”.

Além de se manifestar como político honesto e sério, cidadão honrado, ser humano “comum”, guia supremo (herói e profeta), o locutor se manifestou também como advogado competente, embora tenha negado também esse papel social (veja estruturas sintáticas coordenadas aditivas). Vejamos:

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Segundo pronunciamento – fragmento 28

“Exmo. Sr. Presidente, Srs. Deputados, Sras. Deputadas, cidadão do Brasil que me ouve, cidadã do Brasil que me ouve, começo percorrendo esta defesa em causa própria por uma via não muito comum aqui na Casa. Confesso a dificuldade de fazê-lo, viu, Laurinha? Sou bom advogado para os outros. Para mim...”.

A imagem do advogado apareceu no início do primeiro pronunciamento, ao se referir a PC Farias, no sentido de causar temor nos adversários. Depois, ela foi sendo retomada em alguns momentos do evento, com ênfase à competência do advogado: era um advogado “competente”.

Em nossa opinião, ocorreu uma “dispersão” do “eu”, um esfacelamento dele em diversas imagens, ou seja, o locutor foi enunciando, ao longo da CPMI dos Correios, vários ethé, conforme seu projeto de fala: “o sujeito não é um” (NIETZSCHE68), “ele é fragmentado” (LACAN, 1992)

Assim, disperso, mas constituindo um mosaico de imagens, ora ele era o cidadão honrado; ora ele era o ser humano “comum”; ora era o político honesto e sério; ora era o advogado competente; ora ele era o guia supremo (herói e profeta). No entanto, conforme dissemos, predominou a imagem do guia supremo (herói e profeta), embora o locutor tenha tentado se construir, principalmente, como cidadão honrado e como ser humano “comum” (ethé de identificação). Vejamos o quadro 4:

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QUADRO 4

Principais imagens agenciadas pelo locutor durante a CPMI dos Correios

Forma pronominal

(subjetividade e unicidade)

“Caracteres” do “eu” (ethé) Gêneros discursivos Político honesto e sério:

ethé de credibilidade -

dominação legal69 Primeiro pronunciamento Cidadão honrado: ethé de

identificação

Ser humano “comum”:

ethé de identificação

Advogado competente:

ethé de credibilidade “EU”

Guia supremo (herói e

profeta): ethé de

identificação - dominação carismática70

Depoimentos e segundo pronunciamento

Apesar do uso acentuado do pronome “eu” ser passível de indicar ausência de credibilidade, as estratégias referentes ao ethos nas quais o pronome se engajou foram de fundamental importância na intenção de tornar o discurso crível e legítimo e fazer com que povo se identificasse com as imagens produzidas. Além disso, em nossa opinião, o uso exarcebado do pronome “eu” indica também personalização do discurso face ao embricamento com a mídia. Embora em alguns momentos do evento o locutor tenha instituído explicitamente a mídia ou os parlamentares como interlocutores, as marcas de primeira pessoa predominaram quando ele se dirigia ao povo (o povo é seu principal interlocutor). O locutor tencionava o povo brasileiro feliz e desejava que essa felicidade se concretizasse com o fim da corrupção cuja raiz, segundo ele, está no financiamento público das campanhas eleitorais.

69 Subordina tanto o dominado quanto o dominante a um mesmo estatuto, evitando, assim, abusos de poder. Ela

supera a obediência tradicional (de cunho aristocrático) e a subordinação personalizada (carismática ou sultânica) tendo em vista promover menor probabilidade de decisões arbitrárias. Ela acarreta maior estabilidade na relação dominante/dominado, uma vez que os direitos deste já estão previamente garantidos. Todavia, o exercício legal/racional de dominação também envolve certa dose de força. Esta pode ser “ativa”, através de agentes sociais, e estrutural, isto é, já implícita na situação (WEBER, 1982).

70 Esta dominação está fundamentada em uma devoção afetiva à pessoa e aos seus dotes sobrenaturais –

carismas, bem como a faculdades mágicas, revelações ou heroísmos, poder intelectual ou capacidade de comunicação (WEBER, 1982).

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