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O processo recente de mundialização financeira

3. A MUNDIALIZAÇÃO FINANCEIRA E A PREVIDÊNCIA SOCIAL

3.1 A MUNDIALIZAÇÃO FINANCEIRA NA PERSPECTIVA DA ECONOMIA POLÍTICA

3.1.2 O processo recente de mundialização financeira

Após a abordagem anterior das análises de conceitos marxista sobre as diferentes categorias do capital, em especial do capital portador de juros e do capital fictício, essenciais para entender a crise financeira como elemento inerente ao sistema de produção capitalista, torna-se possível avançar para a análise dos processos mais recentes de financeirização da economia e de seus elementos de instabilidade.

Durante um período de aproximadamente cinqüenta anos, fundamentalmente durante os “30 anos gloriosos” da economia mundial, o capitalismo foi marcado pelo desaparecimento passageiro da dominação da finança no interior do capital como um todo. Nesse período, o capital financeiro esteve contido e a dominância era a do capital produtivo (industrial). Isso foi resultado de uma determinada configuração que passou pela específica correlação de forças entre o capital e o trabalho existente no período pós-Segunda Guerra, particularmente devido à ascensão da União Soviética; aos interesses americanos em rapidamente fazer a Europa retomar seus fluxos comerciais e financeiros; e ao reconhecimento de que a crise dos anos 1930 devia-se à liberdade do capital financeiro, sendo que uma das consequências da crise de 1929 e de seu prolongamento até a Segunda Guerra Mundial foi a desintegração do capital fictício.

Os entraves foram resultados das condições políticas e sociais do imediato pós Segunda Guerra mundial, quando os trabalhadores estavam na iniciativa da luta de classes e por isso puderam impor condições de remuneração, de emprego e de proteção social, mas também, dos controles que passaram a existir sobre o capital monetário, este entendido por muitos, inclusive por representantes da classe dominante, como o responsável pela crise que se instala a partir de 1929 (MARQUES e NAKATANI, 2008).

A partir dos anos 1970, a situação começou a se modificar progressivamente. A retomada de acumulação de capital-dinheiro (sedento de preservação e multiplicação), em função da acumulação efetuada na produção real e dos estoques de dinheiro de sistemas privados de pensões e de outras formas de poupança, reconstituiu o capital portador de juros. Dessa forma, a partir dos anos 1980, os Estados Unidos e a Inglaterra passaram a liderar o processo de desregulamentação monetária e financeira.

A mudança de poder que abriu o caminho à hegemonia financeira foi, nesse período, a "revolução" neoconservadora de Reagan e de Thatcher, consolidada por Clinton e pela "terceira via" de Blair. Sua ideologia era a mistura de globalização com liberalização. Globalização entendida como unificação em escala planetária dos mercados, sobretudo para as finanças. Liberalização no sentido de eliminar tudo que pudesse limitar as oportunidades de negócios. A fiscalização ficaria por conta da suposta capacidade auto-regulatória dos mercados (RICUPERO, 2008).

Os defensores do livre mercado perceberam que a economia teria novamente liberdade para desenvolver todo seu suposto potencial. Depois de mais de trinta anos, o capital portador de juros retornou com força total e se colocou no centro das relações sociais e econômicas do mundo contemporâneo. Esse processo culminou na mundialização financeira.

A ampliação do processo de desregulamentação pelos países industrializados, e por todos os mercados emergentes, e a interpenetração dos vários mercados nacionais, propiciada pela liberalização dos fluxos internacionais de capitais, levou ao processo de internacioanalização financeira, o que ficou conhecido como globalização financeira (CARCANHOLO, 2000).

Chesnais (2005), que chama essas alterações do sistema financeiro internacional de mundialização financeira, destaca os principais acontecimentos que exacerbaram esse processo a partir de meados da década de 1960.

O processo se inicia ainda na fase de controle rigoroso do câmbio, antes da década de 1970, com o surgimento e o desenvolvimento do mercado de eurodólares na City, Londres, onde os lucros de multinacionais não reinvestidos começaram a buscar valorização como capital de empréstimo.

Já nos anos 1970, o colapso de Bretton Woods, marcado pelo fim do padrão ouro- dólar e do sistema de taxas de câmbios fixas, deixa o mercado cambial extremamente volátil, sendo o primeiro compartimento a entrar na mundialização financeira contemporânea, por meio dos mercados de derivativos sobre moedas com o objetivo de realizar cobertura cambial sobre a volatilidade das cotações, mecanismo que também se desenvolveu para as taxas de juros.

Depois de 1974, a City também passou a receber os petrodólares em busca de valorização. A maior parte desses recursos se transformou em empréstimos para países subdesenvolvidos, principalmente da América Latina. Neste período, começou a abertura de mercados para as firmas dos países capitalistas avançados que buscavam valorização através

das exportações ou pelo investimento direto, além da ampliação das relações entre credor e devedor, reacendendo os traços usurários do capital de empréstimos, com consequências dramáticas para os países periféricos, que se viram diante de dívidas impagáveis e crescentes, devido o aumento simultâneo das taxas de juros e da taxa de câmbio do dólar, a partir de 1975 e 1979, respectivamente (CHESNAIS, 2006).

“Mas foi nos países centrais que a dívida pública fez o capital portador de juros apresentar um crescimento quantitativo e qualitativo” (CHESNAIS, 2005, p. 40). Com as medidas de liberalização e de desregulamentação, entre 1979 e 1981, nasceu o sistema de finança mundializada vigente na atualidade. A primeira consequência foi a expansão muito rápida dos mercados de obrigações públicas e a difusão do financiamento dos déficits pela emissão de títulos negociáveis. Dessa forma, os mercados de obrigações liberalizados atenderam às necessidades de financiamento dos déficits orçamentários pela aplicação de bônus do Tesouro e outros compromissos da dívida pública, com pagamento de juros reais positivos ou, em momentos de juros muito baixos, garantindo a segurança das aplicações.

Esse período de liberalização de capitais e a securitização das dívidas públicas está relacionado à dificuldade de pagamento das obrigações dessas dívidas, o que levou à entrada em cena de aplicadores financeiros em títulos de dívidas emitidos pelos Tesouros dos países, colocando os governos dos Estados devedores sob ameaça de especulação financeira, fundamentalmente as nações periféricas.

Nos países da OCDE, como nos países periféricos, a dívida pública alimenta continuamente a acumulação financeira por intermédio das finanças públicas. A necessidade de recorrer ao financiamento mediante empréstimos torna-se permanente por causa da desoneração do capital e das rendas elevadas, a qual foi ainda facilitada pela mundialização financeira, pela impunidade da evasão e pela multiplicação dos paraísos fiscais. Deu-se um duplo presente às rendas elevadas: beneficiam-se da redução de impostos e emprestam a taxas elevadas (CHESNAIS, 2005, p. 41).

Aos poucos, os mercados financeiros e as instituições não-bancárias tornam-se instituições dominantes, e não exclusivamente os bancos, como na etapa anterior. Com isso, os bancos tiveram que compartilhar com os mercados de obrigações de títulos privados (fundos de pensão e de aplicação) a atividade de empréstimos. O crescimento da participação de fundos de pensão e fundos mútuos (fundos de aplicação financeiros coletivos) no mercado financeiro mundializado foram ainda amplamente responsáveis pelo processo de securitização dos títulos das dívidas públicas, possibilitando a explosão dos déficits orçamentários. Trata-se do que Marx já apontava como a soma das pequenas finanças que, em massa, são capazes de

agir com força financeira. Dessa forma, os investidores institucionais não-bancários retiraram dos bancos a primazia enquanto lugar de centralização financeira.

Mais uma vez, o exemplo é indicado pelas economias anglo-saxãs, que tiveram a “interessante” idéia de acabar de vez com os sistemas de aposentadoria por repartição, de modo a captarem enormes massas de poupança salarial, injetadas nos mercados por intermédio dos sistemas de aposentadoria privada (LORDON, 2008).

Dentro desse processo, as aposentadorias com prestações definidas foram maciçamente convertidas em fundos de previdência privada, onde são os assalariados que suportam os riscos das aplicações financeiras (CHESNAIS, 2007).

No que vem a ser um charme particular da “universalidade financeira”, são todos os assalariados que pagam o pato quando os mercados afundam. O fato de encontrar um substituto ao salário direto – cujo aumento todos entenderam agora que não está mais na ordem do dia – já caracteriza por si só uma manobra fraudulenta. Mas efetuá-la expondo diretamente os assalariados às instabilidades do mercado financeiro, e ainda por cima tentando torná-los solidários daquilo que os escraviza, é algo muito sério. (...) A meta de envolver os assalariados no mercado financeiro representa a sua estratégia – e ela é muito perigosa. Como melhor consagrar os mercados de capitais do que tornando os assalariados solidários? Afinal, reconstruir seus interesses por meio das finanças não equivale a reconstruir o salariato como apoio objetivo da “financiarização”?

(...) É evidente que essa “solidariedade” não passa de uma fraude: algumas migalhas de participação financeira contra uma servidão adquirida para a eternidade. Além disso, a servidão procede de mecanismos abstratos, remotos, e que sabem se fazer esquecer, ao passo que as migalhas, mesmo sendo migalhas, exercem um peso concreto que pode ser suficiente para deixar acreditar que “mexer com as finanças” equivale a “mexer com os interesses dos assalariados” (LORDON, 2008).

O passo seguinte do processo de mundialização das finanças ocorre com a abertura e desregulamentação dos mercados de ações, embora a interligação entre os mercados acionários seja menos extremada do que a dos mercados de câmbio e títulos (CHESNAIS, 1998, p. 29). Nesse momento, o movimento de baixa das taxas dos títulos públicos nos anos 1990, principalmente nos países centrais, incentivou a busca de valorização do capital de aplicação através dos mercados de ações e dos seus dividendos amplificados sob a forma de exploração do trabalho mediante a extração intensificada da mais-valia, oriundos da exploração dos assalariados em âmbito internacional e da flexibilização do trabalho. Essa fase foi marcada ainda pela maior incorporação dos mercados emergentes dentro da circulação internacional do capital; por choques financeiros e cambiais de maior intensidade; e pela

criação dos produtos financeiros derivativos capazes de provocar mais instabilidade financeira20.

Chesnais aponta que o processo de financeirização da economia mundial acabou por se configurar mediante três elementos constitutivos: a desregulamentação ou liberalização monetária e financeira, a descompartimentalização dos mercados financeiros nacionais e a desintermediação (abertura) das operações de empréstimos a todo tipo de investidor institucional.

São os três “D” (...). A mundialização financeira remete tanto à “descompartimentalização” interna entre diferentes funções financeiras e diferentes tipos de mercados (de câmbio, de crédito, de ações e obrigações) quanto à interpenetração externa dos mercados monetários e financeiros nacionais e sua integração nos mercados mundializados. A descompartimentalização externa se apóia sucessivamente na liberalização de mercados de câmbio, na abertura do mercado de títulos públicos aos operadores estrangeiros e na abertura da Bolsa às empresas estrangeiras. A

descompartimentalização interna abriu caminho para uma

(des)especialização progressiva dos bancos em nome da concorrência e da liberdade de empreendimento. É o terceiro “D”, a “desintermediação”, que permite às instituições financeiras não bancárias ter acesso aos mercados como emprestadoras. Foram elas que tiveram um crescimento particularmente espetacular desde o início da desregulamentação financeira. Enfim, o movimento de liberalização e descompartimentalização foi igualmente marcado pela criação de numerosas formas novas de aplicação da liquidez financeira (o que se chama de novos produtos financeiros), à medida que a remoção das regulamentações e controles nacionais anteriores abriu caminho para as “inovações financeiras” (CHESNAIS, 2005, p. 46).

Como resultado de todo processo de mundialização do capital analisado até agora temos o reforço dos direitos da propriedade mediante a intensificação da exploração do trabalho e pela arrecadação rentista, praticamente livres de qualquer mecanismo de regulação. Mediante o aqui exposto, é possível retomar algumas categorias de análise já expostas por Marx e que se intensificam na atualidade. Chesnais (2006) aponta que a acumulação de títulos que possuem o caráter de capital fictício, isto é, de pretensões em participar da partilha do valor e da mais-valia ainda não produzida, nutre o fetichismo do dinheiro no modo de produção capitalista, pautado no enriquecimento individual como objetivo último. Fazendo a análise sob esse viés, passa a ser inevitável concluir que a acumulação do capital fictício, que tem em seus títulos um objeto de transações em mercados descolados da produção, é responsável pela geração constante de crises financeiras. Trata-se de crises motivadas pela diferença entre o total de créditos sobre a produção e a capacidade real do capital investido na

20 Inovações financeiras criadas pelos mercados, em função das desregulamentações financeiras, levaram a uma

maior concorrência bancária, obrigando os agentes financeiros a adotar estratégias agressivas e de risco na composição de seus ativos mediante novas maneiras de captação de recursos.

produção em honrar essa dinâmica insustentável do mercado financeiro. Ou seja, a raiz das crises financeiras se encontra na propensão do capital regido pelo movimento D – D’ (CHESNAIS, 2005 e 2006). Isso confere ao capital fictício o agente responsável pela fragilidade financeira sistêmica, mediante a exposição ao risco dos bancos após a liberalização e desregulamentação financeira.

No caso do capital dinheiro, trata-se de a emergência de uma situação onde é o movimento próprio desta forma do capital que tende a imprimir sua marca sobre o conjunto das operações do capital, onde há então a afirmação pelo capital dinheiro de uma autonomia frente ao capital industrial como jamais vista antes: “autonomia” na qual os limites estão fixados, contudo, pela viabilidade de médio ou curto prazo de um regime de acumulação rentista (MARQUES e NAKATANI, 2008).

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