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Capítulo 2 Sentido de número

2.4 O sentido de número nas orientações curriculares

A expressão ‘sentido de número’ é atualmente usada, tanto internacionalmente como em Portugal, em documentos de orientação curricular de referência sobre o ensino da Matemática (National Curriculum Board, 2008; NCTM, 2000/2007; ME, 2007). Tal como referi na primeira secção deste capítulo, este termo surge pela primeira vez num documento desta natureza, em 1989, nos Estados Unidos (NCTM, 1989/1991). Nele advoga-se que o desenvolvimento do sentido de número constitui um objetivo essencial dos primeiros anos de escolaridade, entendendo-o como “uma intuição acerca dos números que se forma a partir dos diversos significados do número” (NCTM, 1991, p. 50). Apresenta-o separadamente do sentido das operações, aspeto que também valoriza e no qual inclui as relações entre as operações, a intuição acerca dos efeitos das operações nos números e a compreensão das suas propriedades.

Cerca de dez anos mais tarde, o NCTM (2000/2007) reafirma a importância do sentido de número, mas de uma forma mais abrangente e eloquente, considerando fundamental o seu desenvolvimento desde o jardim-de-infância até ao final do ensino secundário. Na Norma Números e Operações deste documento, afirma-se que, tal como a compreensão dos números e das operações e a aquisição de destreza no cálculo aritmético, o desenvolvimento do sentido de número deve constituir o cerne da educação matemática para os primeiros anos de escolaridade e, até ao 12.º ano, os alunos deverão adquirir um vasto conhecimento acerca dos números. Concretamente, deverão compreender:

o que são [os números]; de que forma são representados através de objetos, numerais ou em retas numéricas; como se relacionam uns com os outros; como estão integrados em estruturas e propriedades; e como devem ser utilizados para resolver problemas. (NCTM, 2007, p. 34)

Neste documento, a importância do desenvolvimento do sentido de número surge a par da compreensão das operações e a aquisição de destrezas de cálculo, indiciando que os aspetos relacionados com as operações não estão totalmente incluídos no significado atribuído a sentido de número. Ainda assim, os conhecimentos e as destrezas acerca dos números e das operações parecem surgir de forma mais integrada do que no documento de

1989, pertencendo à mesma Norma e dando corpo aos três princípios fundamentais que a constituem: (i) compreender os números, formas de representação dos números, relações entre números e sistemas numéricos, (ii) compreender o significado das operações e o modo como elas se relacionam entre si, e (iii) calcular com destreza e fazer estimativas plausíveis.

Para além dos Estados Unidos, outros países têm atribuído grande importância ao sentido de número, quer através da realização de estudos sobre o seu desenvolvimento, quer pela sua integração no currículo oficial. Um dos exemplos é a Tailândia, onde a reforma curricular que se iniciou em 2001 passou a atribuir uma forte importância ao sentido de número, salientando a relevância de uma aprendizagem da Matemática significativa e ligada a situações do dia-a-dia (Yang et al., 2008a). Também na Irlanda, desde 1999, embora o currículo oficial de Matemática para os primeiros anos de escolaridade não refira explicitamente o termo sentido de número, chama a atenção para diversos aspetos-chave do sentido de número que devem ser contemplados no ensino dos números e das operações nestes anos de escolaridade (Dunphy, 2007).

Existem alguns casos, tais como a Austrália e o Reino Unido, em que os currículos oficiais não recorrem à expressão sentido de número, usando o termo numeracia para designar um conjunto de competências mais alargado na área da Matemática do que as que dizem respeito unicamente ao trabalho com os números e as operações. Contudo, os aspetos que se valorizam no trabalho com os números e as operações não parecem distanciar-se de uma perspetiva de desenvolvimento do sentido de número. Nos programas oficiais atuais dos dois países apela-se à importância da compreensão, da flexibilidade de cálculo e do desenvolvimento do pensamento crítico e criativo dos alunos quando se envolvem na resolução de problemas numéricos (DfEE, 2012; ACARA, 2012).

No nosso país, só muito recentemente a temática do sentido de número tem sido alvo de uma discussão mais alargada no seio da comunidade educativa. Constituiu o foco do projeto de investigação DSN (realizado entre 2005 e 2007) e orientou o trabalho em torno dos números e das operações realizado no Programa de Formação Contínua em Matemática (PFCM) para professores do 1.º e 2.º ciclos. Daqui resultaram vários materiais de natureza didática e curricular que visam apoiar as práticas dos professores de ensino dos

números e das operações numa perspetiva de desenvolvimento do sentido de número, para diferentes anos de escolaridade (Equipa do projeto DSN, 2006, 2007; Brocardo, Delgado & Mendes, 2009; Mendes, Brocardo, Delgado & Gonçalves, 2009, etc.).

Mas, no que se refere a documentos de orientação curricular, podemos encontrar referências a sentido de número em A Matemática na Educação Básica, publicado, em 1999, pelo Ministério da Educação (Abrantes, Serrazina & Oliveira, 1999). Este documento salienta a importância de todos os alunos adquirirem:

uma compreensão global do número e das operações a par da capacidade de usar essa compreensão de maneira flexível para fazer julgamentos matemáticos e desenvolver estratégias úteis de manipulação dos números e das operações. (p. 46)

Este entendimento de sentido de número, para além de ser muito próximo do de McIntosh et al. (1992), é apresentado como uma competência genérica que se desenvolve, não só, durante o percurso escolar de cada aluno, mas também, ao longo da sua vida. Em 2001 surge o Currículo Nacional do Ensino Básico (ME, 2001) que, apesar de não referir a expressão ‘sentido de número’, afirma que uma das competências matemáticas a ser desenvolvida no domínio dos números e do cálculo é “a compreensão global dos números e das operações e a sua utilização de modo flexível para fazer julgamentos matemáticos e desenvolver estratégias úteis de manipulação dos números e das operações” (p. 60), que praticamente corresponde ao entendimento de sentido de número apresentado por Abrantes et al. (1999). Ao enunciar as restantes competências integra aspetos que estão incluídos em algumas das componentes apresentadas por McIntosh et al. (1992) para examinar o sentido de número. Refere, por exemplo, competências relacionadas com: (i) a sensibilidade da ordem de grandeza dos números, (ii) o uso de representações adequadas e das propriedades das operações, (iii) a aptidão para efetuar cálculos mentalmente e para decidir os métodos de cálculo apropriados às situações que são propostas e (iv) a aptidão para estimar valores aproximados de resultados das operações e de decidir da razoabilidade dos resultados.

O desenvolvimento do sentido de número constitui uma orientação explícita do trabalho com os números e as operações no PMEB (ME, 2007), publicado em 2007 e generalizado no ano letivo de 2010/11. Este programa constitui um reajustamento do anterior programa de Matemática para o ensino básico, vigente desde 1990 para o 1.º ciclo

e desde 1991 para o 2.º e 3.º ciclos, sendo, neste último, inexistentes as expressões ‘sentido de número’ ou ‘desenvolvimento do sentido de número’. O PMEB (ME, 2007), e relativamente ao tema Números e Operações, afirma que, nos três ciclos do ensino básico, o principal propósito de ensino é “desenvolver nos alunos o sentido de número, a compreensão dos números e das operações e a capacidade de cálculo mental e escrito, bem como a de utilizar estes conhecimentos e capacidades para resolver problemas em contextos diversos” (p. 13). Explicita, ainda, o significado que atribui a sentido de número:

a capacidade para decompor números, usar como referência números particulares, tais como 5,10,100 ou 1/2, usar relações entre operações aritméticas para resolver problemas, estimar, compreender que os números podem assumir vários significados (designação, quantidade, localização, ordenação e medida) e reconhecer a grandeza relativa e absoluta de números. (p. 13)

Analisando globalmente as indicações do PMEB (ME, 2007) para o 1.º ciclo no tema números e operações, podemos evidenciar uma valorização da estruturação dos números, o cálculo mental e o desenvolvimento de estratégias que apoiem este tipo de cálculo, a resolução de problemas que incluam diferentes sentidos das operações e a aprendizagem gradual e com compreensão dos algoritmos. Neste documento, os objetivos específicos e as notas de explicitação de abordagem dos tópicos revelam preocupação com a compreensão de múltiplas representações dos números, com a identificação e o uso das regularidades dos números, com a compreensão do efeito das operações, das suas propriedades e das relações entre elas e com o desenvolvimento da capacidade para relacionar o contexto e os cálculos. Estas preocupações acompanham o trabalho com os números e com as operações ao longo dos três ciclos e enquadram-se numa perspetiva de desenvolvimento do sentido de número, tal como é definido por McIntosh et al. (1992).

No início do ano letivo de 2012/2013, foram publicadas, pelo Ministério da Educação e Ciência (MEC), as Metas Curriculares do Ensino Básico – Matemática (MEC, 2012). Este documento assume o objetivo de descrever “o conjunto das metas curriculares da disciplina de Matemática que os alunos devem atingir durante o Ensino Básico, tendo-se privilegiado os elementos essenciais que constam do Programa em vigor” (p. 1). Contudo, uma análise mais cuidada deste documento revela que parece existir uma tendência de valorizar a destreza na aplicação dos algoritmos desde os primeiros anos de escolaridade.

Efetivamente, no que respeita ao tema Números e Operações, e em particular ao 1.º ciclo, este documento sublinha que “É fundamental que os alunos adquiram durante estes anos fluência de cálculo e destreza na aplicação dos quatro algoritmos, próprios do sistema decimal, associados a estas operações” (p. 2). Neste documento a expressão ‘fluência de cálculo’ surge apenas nesta frase e as expressões ‘sentido de número’ e ‘cálculo mental’ são inexistentes. No final do ano letivo de 2012/2013 o PMEB (ME, 2007) é revogado e é promulgado um ‘novo’ Programa de Matemática para o Ensino Básico, integrado num documento único, com as respetivas Metas Curriculares – Programa e Metas Curriculares de Matemática (MEC, 2013). Este Programa é constituído, essencialmente, por uma listagem de conteúdos sem referência a sugestões metodológicas para a sua abordagem. Nele é inexistente a expressão ‘sentido de número’ e a importância da fluência de cálculo surge associada à aplicação dos quatro algoritmos. Estes aspetos parecem indiciar que, atualmente, em Portugal, as orientações curriculares oficiais não valorizam o trabalho em torno dos números e das operações numa perspetiva de sentido de número, contrariando as tendências e sugestões de documentos de natureza curricular internacionais e nacionais (entre os quais o próprio PMEB (ME, 2007)) e os resultados da investigação focada na aprendizagem dos números e das operações.