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No original: “beyond the categories of human understanding (…) a ‘thing in itself’ (Ding an sich).”

Partindo da perspetiva de Abraham Moles (1981), que contribui para uma caracteri- zação fenomenológica dos objetos, salienta-se a artificialidade do universo material do quotidiano, construído pelo ser humano. Deste modo, pensar em objetos significa pensar em artifícios passivos e submissos à vontade e ao desígnio humano, testemunha da evo- lução dos tempos e do processo civilizacional. É, por isso, o Homem que lhes confere sentidos, transformando os contextos no que o autor apelida de “zonas de apropriação” (Moles, 1981, p. 36), cenários compostos por objetos pessoais, como será o caso de locais de trabalho como oficinas ou escritórios.

Suplantando a visão fenomenológica de Moles, Baudrillard considera que, para com- preender os objetos, é necessário ultrapassar a ideia de inventariação ou taxonomia do quo- tidiano, estendendo o seus significados enquanto símbolos e signos. Na linha estruturalista definida por Barthes, Baudrillard (1973) renega a ideia taxonómica de inventariação de objetos, argumentando faltar o vocabulário necessário para a sua classificação, tal a sua proliferação no universo que nos rodeia. No seu Sistema de Objetos (1973), o autor assume focar-se na análise dos processos relacionais entre as pessoas e os objetos (Baudrillard, 1973), desvalorizando uma pretensa divisão ou organização do mundo artificial desenvolvi- do pelo ser humano. Enquanto portadores de significados e mediadores da relação humana, interessa ao autor suplantar a esfera técnica dos objetos e perceber a sua capacidade de ação simbólica, no preciso momento em que este adquire a sua verdadeira funcionalidade como produto e produtor de significados. O autor vai mais longe em afirmar que o Homem contemporâneo é hoje manipulado pelos próprios objetos, “atores de um processo global do qual o homem é simplesmente o papel ou o espectador” (Baudrillard, 1973, p. 62). Assente nas narrativas discursivas sobre o consumo, inspirado pelo legado teórico de Karl Marx (1818–1883) e Adam Smith (1723–1790), o filósofo francês tece elogios aos objetos pré-industriais pela suas potencialidades enquanto detentores de significados da sua era, do seu tempo, enquanto denuncia o mito modernista que concilia forma e função. Estes objetos não-funcionalistas possuem significados particulares no sistema concebido pelo francês, pelas suas capacidades em evocarem o mito do passado, da nostalgia e da memória. Deste modo, o objeto, pelo papel que assume enquanto regulador da vida quotidiana, assume uma alma própria na interação que detém com os indivíduos (Baudrillard, 1973).

Na mesma linha de interesse podemos invocar a posição defendida por Steyerl (2012), que recupera as noções benjaminianas sobre a participação para o universo dos objetos, concebe-os como fósseis de um outro tempo, testemunhas das tensões, mutações sociais e histórias vivenciadas num determinado período. Também Arvatov (1925/1997) alinha a noção de objeto com o entendimento da sociedade de consumo, assumindo que os ob- jetos são escravizados pela burguesia capitalista, que condena o universo material a uma realidade passiva, estática e redundante.

Ao assumirmos que os artefactos “não têm uma vida própria, e não existem evidências de que existe uma lei natural ou seleção mecânica que os oriente na direção do progresso”90

(Forty, 1986, p. 8), podemos intuir que a interpretação dos objetos não pode ser feita sem considerarmos o quadro de referência social, económico e cultural em que estes surgem, uma espécie de linguagem que testemunha as evoluções tecnológicas e serve de reflexo à constituição dos valores emocionais e culturais de uma sociedade (Sudjic, 2009). Posição semelhante parece ser assumida por Marshall Sahlins (1978), para quem “nenhum objeto, nenhuma coisa tem uma existência ou movimento na sociedade humana, excepto pela significação que os seres humanos lhe podem atribuir”91(Sahlins, 1978, p. 170).

Algumas perspetivas mais contemporâneas sobre os objetos colocam uma vez mais a tónica do discurso em torno dos valores máximos inerentes à sociedade de consumo que caracteriza a cultura ocidental, na qual os objetos se tornam “brinquedos” que nos infan- tilizam (Sudjic, 2009). Outra linha de entendimento assume uma proximidade cada vez maior entre as noções de sujeito e objeto, cujas diferenças se minimizam de modo pro- gressivo, e nos quais se reconhecem níveis elevados de materialidade partilhada (Bennett, 2010). Assim, com a célere profusão de novas tecnologias, capazes de reinventarem os arquétipos da relação entre sujeitos e objetos sem que a própria tecnologia estabilize, pa- recemos estar num momento de particular importância da relação entre ambas as partes, numa condição cíclica de interligação e interdependência permanente:

As implicações políticas, éticas e ecológicas desta perspetiva são claras: os dias em que o domínio do sujeito sobre o mundo das coisas e dos objetos, em que este os podia descartar permanentemente, terminaram. Dado que os objetos, desde os dados finan- ceiros até à embalagem dos alimentos, são devolvidos após serem transformados, reciclados e reconsumidos, a outrora fronteira estável entre objecto e sujeito revela-se cada vez menos confiável.92 (Hudek, 2014, pp. 23-24)

O que reside nesta breve incursão sobre os objetos é que estes, como refere o diretor do Design Museum de Londres, são a forma através da qual medimos as nossas vidas e nos representam enquanto indivíduos, sejam estes jóias, mobília, tecnologia ou vestuário (Sudjic, 2009). 90. No original: “do not have a life of their own, and there is no evidence for a law of natural or mechanical selection to propel them in the direction of progress.”

91. No original: “No object, no thing, has being or movement in human society except by the significance men can give it.” 92. No original: “The political, ethical and ecological implications of this view are clear: gone are the days when the subject’s mastery over the world of objects and things could allow her or huim to cast it off permanently. As objects, from financial data to food packaging, increasingly return transformed, endlessly recycled and reconsumed, the once stable bounday between object and subject proves increasingly unreliable.”

Perante as construções teóricas apresentadas, podemos intuir que o espaço se cons- titui por um conjunto de objetos potenciadores e mediadores de inter-relações. Ao inter- pretarmos o universo do ateliê como um sistema coextensivo do líder projetual, partindo dos pressupostos da perspetiva de aquisição lançada por Moles, assumimos que este uni- verso se traduz na essência dele mesmo e o configura como “centro geométrico das suas possessões” (Moles, 1981, p. 177). Todavia, afastamo-nos da conceção fenomenológica de entendimento dos objetos que o autor sugere, incapaz de retratar a complexidade de sistemas nos quais vivemos. De igual modo, não partilhamos da visão niilista que dá uma visão utilitarista aos objetos: “são úteis, nada mais” (Sartre, 1938, p. 19). Seguimos, deste modo, pelo percurso ditado pelas movimentações recentes na dialética sujeito/objeto, que dão conta da necessidade de encontrar explicações na perceção do mundo que nos rodeia:

(…) numa cada vez mais densa e volátil rede de objetos, parecemos preparados para lhes pedir lições sobre como devemos viver, socializar e organizar-nos, quer na esfera pública quer na privada. Talvez estejamos preparados, por outras palavras, para aceitar que somos definidos pelos objetos.93 (Hudek, 2014, p. 24)

Conscientes da importância que o universo material detém para a cultura estabelecida do ateliê, avançamos para uma análise compreensiva sobre os objetos, território de “disfar- ces, enganos, subterfúgios, provocações e desencadeadores de ações”94 (Hudek, 2014, p.

14) e, como pudemos constatar, inesgotável sujeito de estudo. 2.3. O valor das coisas no ateliê

Identificar a presença de agentes no ateliê implica pensar a sua condição material no seio daquela realidade social. Para tal, optamos por aportar noções intrínsecas da cul- tura material. Não sendo concreta a sua existência enquanto corpo disciplinar, com as vantagens e desvantagens que isso possa acarretar (Miller, 1998), os estudos em cultura material têm vindo a contribuir de um modo relevante em áreas-chave das Ciências Sociais, como a Antropologia, a Etnografia ou História da Ciência e Tecnologia. Apesar das diferenças de interpretação na abordagem teórica dos estudos em cultura material (Dant, 2005; Miller, 1998), neste género de abordagem surge a necessidade de “(...) seguir as próprias coisas, pois os seus significados estão inscritos nas suas formas, nos seus usos, nas suas trajectórias. Só através da análise destas trajectórias conseguiremos 93. No original: “in increasingly dense and volatile networks of objects, we seem ready to turn to them for lessons on how to live, socialize and organize ourselves publicly and privately. We may be ready, in other words, to accept that objects define us.” 94. No original: “(…) disguises, misconceptions, subterfuges, provocations and triggering of actions”

interpretar as transações e os cálculos humanos que tornam as coisas mais interessan- tes”95 (Appadurai, 1986, p. 5).

A preocupação com a componente material é um aspeto fulcral na análise dos atri- butos formais dos artefactos de comunicação gráfica. Para além do seu enquadramento estilístico, as raízes do seu equilíbrio formal ou os seus desígnios construtivos ao nível da cor, forma e tipografia, o valor do artefacto de comunicação gráfica assenta nas suas características enquanto matéria transformada em objeto. Numa interpretação mais dis- tante destes objetos, dizemos, talvez até com alguma displicência, que são concebidos em ateliês, simplesmente, transformando em caixa negra aquele que é, eventualmente, o cenário primordial da criação dos objetos de comunicação gráfica.

Enquanto cenário comum para a feitura do design gráfico, o ateliê é representativo de um género de cultura grupal e profissional. São cada vez mais frequentes as publica- ções que nos dão a conhecer uma visão interior destes espaços, obcecados que estamos com os pressupostos da criatividade e com o ser criativo. E, ainda assim, quão longe estamos de compreender a tecelagem do social naquele quotidiano. De quando em vez, damos conta de tentativas honrosas de invasão desses mesmos espaços, transformados em verdadeiros símbolos de estatuto e poder criativo. O lugar de geração das ideias de arquitetos, artistas e designers há muito que vem sendo documentado, registado e observado, mas quase sempre de forma demasiado fechada para compreendermos a realidade daquele cenário.

Motivados pelo interesse em abordar o ateliê num ângulo de observação que siga para lá das imagens ou retratos, que tendem a ossificar as memórias do ateliê, constatamos que o discurso veiculado na literatura quase sempre se alicerça numa dicotomia que consi- deramos, em si mesma, falaciosa: a de que o mundo dos seres humanos e o mundo dos objetos são duas realidades distintas, dois contextos fechados e circunscritos à inexorabi- lidade das suas formas. Veremos, em momentos distintos, que uma análise mais próxima e focada, recolhida a partir de dentro e no decurso do quotidiano daquele território, nos permite desvendar outro tipo de ligações e redes. É essa visão de dentro, tanto quanto possível, que nos permite ir para lá das armadilhas orquestradas pelo senso comum que nos comunicam que o processo de design – em particular sobre o processo de design gráfico – é uma troca entre seres humanos que utilizam ferramentas como catalisadores ao serviço do seu génio criativo. Não podemos, no entanto, compreender o papel que a cultura material detém no contexto específico do ateliê sem antes considerar alguns dos principais pressupostos teóricos que abordam o tópico.

95. No original: “(…) follow the things themselves, for their meanings are inscribed in their forms, their uses, their trajec-