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CAPÍTULO II QUADRO TEÓRICO

2.7. Práticas de jogo dramático

O jogo dramático, enquanto prática pedagógica inserida no sistema educativo, afasta-se do teatro enquanto prática artística. Esta é uma linha relativamente consensual entre os praticantes desta actividade dramática. Leenhardt (1974) especifica que o jogo

dramático não é teatro. Este parte de um todo que conduz à representação, o que traduz uma acção dramática, que evolui através de situações que serão vividas pelos personagens.

O teatro não é mais que a parte verbal duma comunicação mais alargada. O texto prévio, assim como a representação constituem uma barreira para a criança. O julgamento crítico aplicado ao trabalho do pequeno actor deverá ser efectuado pelas próprias crianças e não por quem quer que seja do exterior.

Apoiando-se na improvisação de situações propostas à criança, como uma exploração de temas, ela terá ocasião de “exprimir uma sensibilidade pessoal, adquirindo os meios desta expressão através duma disciplina do corpo, da voz, da emoção, por uma disciplina social também, enfim, de lhe dar acesso, por uma percepção vivida, à linguagem teatral.” (Leenhardt 1974: 23).

A diferença entre teatro e jogo dramático reside no facto de no ateliê de jogo dramático, como nos diz Monod (1988), todos os participantes são simultaneamente ou em alternância ou potencialmente “jogadores ou fora-de-jogo, passivos ou activos, observadores ou observados, que até ao final de um processo de propostas, de improvisação continuada, que podem ter referências fixas e jogar com a sua memória colectiva, mas que se submete dificilmente à fabricação de um espectáculo como produto ” (Monod (1988: 27).

Considerada como prática fundamental do teatro/educação podemos defini-la como:

[…] uma actividade proposta por um adulto – portanto mais ligada ao quotidiano – através da qual o «como se» é elaborado com a finalidade de estabelecer uma comunicação, não só entre os elementos do grupo, mas também entre estes e os observadores. Na medida em que o jogo dramático comporta regras próprias manipuladas pelos jogadores, que exige a presença do espectador e que implica a consciência do jogo como linguagem empregue para permitir uma comunicação efectiva, ele constitui uma prática precisa, entre o fazer de conta e a finalização do espectáculo teatral. […] (Tavares 1985: 181)

Saint-Jacques (1998) considera que existe nas acções dramáticas (materiais cénicos) desta natureza um «processo de produção em improvisação» em que se estabelece uma relação entre jogadores (produção) e observadores (recepção) tendo por finalidade a

criação de um produto em sentido fictício que se relaciona com uma fábula e um personagem (sistemas significantes).

O jogo dramático desenvolve-se geralmente sob a forma de ateliê, juntando no mesmo espaço o grupo de participantes e o animador, em local adequado que permita com relativa facilidade fazer sucessivas adaptações que vão de encontro à mobilidade dos intervenientes.

[...] De um lado há a referência ao jogo: tudo entra em jogo, o espaço, os objectos, os corpos, as vozes, o que está lá, o que se trouxe de propósito; as pessoas jogam em conjunto, no aqui-e-agora. Do outro há a referência ao teatro: as pessoas jogam umas à frente das outras e umas para as outras «representam» acções ou coisas fictícias, que não estão lá. [...] (Monod 1986: 25)

Esta actividade é um espaço de exploração e descoberta, que faz apelo à criatividade, sendo necessário um acordo entre os participantes quanto aos objectivos e à sua forma de realização. O mesmo autor, considera a educação estética como prioridade na indução do jogo dramático, ao utilizar a obra de arte como proposta de lançamento da acção para a criação, também, de uma obra de arte.

Regra geral existe uma sequência de trabalho, com refere Monod (1984), que tem como ponto de partida uma movimentação colectiva, onde cada participante se desloca reagindo com o corpo no espaço em inter-relação sensorial e afectiva ou jogando e produzindo condutas pouco habituais.

De seguida, passa-se aos indutores de jogo, introduzidos pelo animador e pelos participantes e que incluem temas, textos, das relações com o local, da situação, das personagens, das imagens, dos objectos, etc.

Escolhe-se um indutor ou um conjunto de indutores e passa-se à constituição de sub-grupos. As escolhas podem fazer-se por votação, por escolha aleatória, ou por negociação.

Os vários grupos estabelecem um programa ou uma estrutura de improvisação, seguindo-se a apresentação do trabalho de cada grupo.

Segue-se um período de críticas e de sugestões dos espectadores (eles também jogadores), com a possibilidade de voltar a jogar novamente, tendo em conta as indicações recebidas.

Algumas regras podem enquadrar a improvisação com acentuações na voz, no não-verbal, no espaço, na narração, géneros ou estilos.

Podem também ser utilizadas determinadas técnicas, com o decorrer dos trabalhos, usando a maquilhagem, as máscaras, o mimo, a iluminação.

Quanto aos objectivos, eles devem ultrapassar a simples aprendizagem do jogo, podendo situar-se na dinâmica de grupo, na análise institucional ou na abordagem de objectos de estudo como a imprensa, a publicidade, a mitologia, o mundo animal, como exemplo.

Os objectivos de trabalho devem ser sempre negociados com o grupo a par de um clima de confiança e escuta mútua, para que um trabalho neste domínio possa evoluir, segundo Ryngaert (1985), sendo necessário proceder a uma boa organização do tempo, seja de cada ateliê, seja do conjunto de todas as sessões de trabalho, para que ele seja eficaz.

As possibilidades de estruturar uma improvisação são múltiplas. Ryngaert (1985) faz algumas propostas de trabalho neste sentido. Assim uma das possibilidades consiste em trabalhar sobre tentativas de improvisação e confrontar essas tentativas. Não se trata de chegar a uma improvisação mas a um processo de produção de tentativas o que representa uma experiência para o jogador à escuta do seu próprio funcionamento.

A improvisação que resulta da confrontação com um objecto exterior (situação, espaço, texto, música), com ou sem acentuação de estereótipos, estabelece uma relação com a realidade, produzindo no grupo abundante matéria para reflexão.

A aprendizagem faz-se pelo sujeito na confrontação com novos dados, que lhe são desconhecidos, variando entre zonas mais ou menos familiares. A confrontação com os objectos artísticos, dá ao interveniente em situação de jogo dramático acesso a uma variedade de possibilidades, das quais nem sempre se tem consciência, como refere Ryngaert (1985). O aspecto fundamental é a capacidade de jogo dos participantes, não tomando como prioridade o resultado em si, mas o movimento de construção do jogo, ele

mesmo, através do qual o indivíduo experimenta a sua criatividade, a capacidade de observação, a tomada de consciência, a capacidade de reagir a novas situações.

Ryngaert (1987) revela também a importância das indicações, regras ou recomendações, que o animador vai dando ao longo do jogo. As indicações podem ser abertas ou fechadas o que permite obter várias respostas, todas consideradas boas ou aceitáveis, mesmo se só uma aparece. A «boa resposta» não é pedida, sugere-se pelo contrário, o aparecimento de várias soluções para o desenrolar do jogo.

O professor deve conhecer uma quantidade apreciável de propostas de jogo, reinventando-as frequentemente, expondo-as de forma clara ao grupo. “A forma como as propostas são formuladas e chegam ao grupo fazem parte da capacidade de jogo do formador” (Ryngaert 1985: 148).

A utilização de indicações precisas ou imprecisas pode favorecer a abertura do jogo, produzindo efeitos de surpresa, quer para os jogadores quer para o animador, seguindo um caminho imprevisível.

A formulação das indicações pela parte do animador é também um aspecto fundamental, como nos diz Ryngaert (1987), na forma como estão previstas para desencadear o jogo, o que inclui a preocupação com a verbalização das mesmas de acordo com os objectivos das actividades, o momento em que são propostas e a evolução do grupo de trabalho.

A criação de condições que facilitem o empenhamento no jogo, como espaço de criação e de pesquisa, são consideradas como indispensáveis ao acto criador, pois é necessário que o indivíduo “encontre a energia para romper com aquilo que já sabe fazer e se empenhe nos caminhos que ainda lhe são desconhecidos” (Ryngaert 1985: 137).

De acordo com o mesmo autor, o jogador numa situação de jogo é estimulado para a prática de riscos, que o fazem oscilar entre o desejo de se ultrapassar a si mesmo ou de agir em zonas já exploradas, como reacção às situações insólitas com as quais se encontra confrontado.

A capacidade de jogo é definida pela aptidão do indivíduo “a assumir totalmente a sua presença real a cada instante da representação, sem a memória aparente do que se

passou antes, e sem antecipação visível do que se produzirá no instante seguinte” (Ryngaert 1985: 29).

O mesmo autor, considera que a presença é fundamental para o jogador e está intimamente ligada com a sua capacidade de concentração, tendo em vista a criação da disponibilidade sensorial e motora necessária para se entrar em «acção». O estímulo à capacidade de observação e sentido de escuta entre os participantes, assim como a relação com o espaço, são também factores essenciais que podem influenciar a qualidade do jogo. 2.8. Teatro do oprimido

As correntes pedagógicas associadas ao jogo dramático foram também influenciadas pelo Teatro do Oprimido que tem como referência o trabalho desenvolvido, a partir de 1956, por Augusto Boal no Teatro Arena de São Paulo, no Brasil, tendo sido posteriormente desenvolvido noutros países da América Latina como teatro de intervenção ou teatro popular, em resposta à sucessiva implantação de regimes políticos ditatoriais.

Para Boal (1977) o Teatro do Oprimido é necessariamente político, porque políticas são todas as actividades do homem. O seu trabalho baseia-se na criação de condições para que o homem, descobrindo o actor que existe em si, se prepare para agir e transformar, utilizando a linguagem teatral como forma de lutar contra a opressão, considerando que o espectador

[...] não delega poderes ao personagem para que actue nem para que pense em seu lugar: ao contrário, ele mesmo assume um papel «protagónico», transforma a acção dramática inicialmente proposta, ensaia soluções possíveis, debate projectos modificadores (…) preparando-se para a acção real. [...] (Boal 1977:126)

Partindo da origem do teatro, Boal (1977) refere o exemplo dos Gregos para demonstrar como o teatro se transformou num instrumento ao serviço das classes dominantes. O povo divide-se entre actores e espectadores, negando-se a estes últimos a capacidade de agir ao mesmo tempo que se verifica uma separação entre os próprios actores, divididos entre os protagonistas e o coro, como representação da aristocracia reinante.

No sistema trágico de Aristóteles, segundo Boal (1977), a empatia é a relação emocional que se estabelece entre personagens e espectadores, colocando estes na dependência dos outros, e onde se encontram duas emoções: a piedade e o terror. A primeira aproxima-nos de um personagem que sofre um destino não merecido e a segunda refere-se ao facto de um personagem sofrer as consequências de possuir uma fraqueza que nós também temos. O que é importante, como afirma o mesmo autor, é que, com empatia, o espectador assume uma atitude passiva delegando a sua capacidade de acção.

Reagindo à passividade do espectador Boal (1978) propõe-se, através do teatro do oprimido, proceder à sua transformação em protagonista da acção dramática, criador e transformador, não reflectindo exclusivamente o passado mas, pelo contrário, preparando o futuro.

Na sua passagem por Portugal, tivemos a oportunidade de conhecer de perto o seu trabalho, tendo sido seu aluno na Escola Superior de Teatro do Conservatório Nacional de Lisboa, no ano lectivo de 1977/1978. Homem de formação humanista, pedagogo da actividade dramática, reunia um conjunto de qualidades que deixaram uma marca profunda na nossa formação pessoal e profissional. Ainda hoje o seu trabalho é considerado uma referência fundamental para a área da Expressão Dramática e do Teatro.

Tendo por base a prática de um conjunto de actividades expressivas, em que os exercícios corporais têm um papel fundamental, desenvolve-se um trabalho de alteração das rotinas musculares que precede a exploração de determinadas práticas dramáticas, para estimular nos participantes uma atitude actuante e interventiva.

O «teatro estátua», praticado com regularidade por Boal na Escola Superior de Teatro de Lisboa, consistia na produção de imagens fixas pelos participantes de acordo com os temas propostos pelo orientador ou pelo grupo de participantes.

Um dos exemplos consistia em mostrar visualmente o pensamento colectivo sobre um dado tema. Cada participante era convidado a produzir uma imagem individual sobre o tema escolhido apresentando-se um de cada vez. Quem assistia, estando em desacordo com a imagem produzida, poderia propor uma nova imagem. O grupo podia intervir, modificando ou completando as imagens produzidas, chegando-se por fim à «imagem real» que seria aquela que o grupo concordaria ser a representação do tema.

A segunda fase consistia na construção de uma «imagem ideal» que correspondia à imagem que se desejava construir para ultrapassar os problemas revelados.

Na terceira fase voltava-se de novo à «imagem real», cada elemento do grupo podia fazer novas modificações, propondo visualmente uma realidade desejada.

A quarta fase funcionava depois de todos terem manifestado a sua opinião. Na sequência da construção pelo grupo de participantes do conjunto de imagens fixas reproduzindo a «imagem real», é então proposto a realização de um movimento lento que conduza a uma imagem fixa que é a «imagem ideal».

O contacto com outras técnicas características do teatro do oprimido era também desenvolvido. O «teatro invisível» tinha como ponto de partida a escolha e representação de temas que pudessem interessar espectadores ocasionais de uma determinada situação, que para além de assistir, tinham a possibilidade de intervir na mesma, não tendo conhecimento que estavam a participar numa actividade teatral.

O «teatro fórum», como refere Boal (1978), é uma proposta de jogo artístico e intelectual entre artistas e espectadores, na qual as soluções propostas pelo protagonista têm um erro político ou social, apresentando-se a primeira parte do espectáculo como um teatro convencional.

Na segunda parte a peça é apresentada de novo, o público é informado que qualquer espectador pode substituir o protagonista, bastando para isso, que se aproxime do local da representação e faça sinal de paragem. Os actores suspendem a representação, o protagonista é substituído pelo espectador e a cena continua. O actor substituído não se afasta, estimulando o espectador ou corrigindo a sua acção.

Qualquer elemento da audiência que não esteja de acordo com a nova representação pode intervir, substituindo o novo protagonista ou, progressivamente, qualquer outro actor segundo as regras estabelecidas.

Um dos actores deve exercer as funções de jogo explicando as regras, corrigindo erros e mantendo o ritmo de representação.

Com a representação terminada, deve partir-se para um modelo de acção futura que deverá ser representada pelos espectadores.

Outras técnicas fazem parte do teatro do oprimido, como o «teatro jornal» e o «teatro legislativo», conhecidas por nós mas da qual não tivemos uma prática efectiva. De um modo geral têm um discurso ideológico como ponto de partida, sendo atribuído ao grupo de participantes a tarefa de encontrar as soluções possíveis para os problemas, soluções que permitam « transformar o mundo».

[...] Vendo o mundo além das aparências, vemos opressores e oprimidos em todas as sociedades, etnias, géneros, classes e castas, vemos o mundo injusto e cruel. Temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com as nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida. (…) Actores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma! [...] (Boal 2009: s/p).