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Principais problemas na aplicação da Lei do Orçamento de 1974

CAPÍTULO 2 – A ESTRUTURA DO PROCESSO DECISÓRIO DO ORÇAMENTO

2.3. AS REGRAS QUE REGULAMENTAM A DISCUSSÃO DO ORÇAMENTO DE

2.3.1. A Lei de Orçamento e Controle do Represamento de 1974

2.3.1.2. Principais problemas na aplicação da Lei do Orçamento de 1974

A aprovação da Lei de Orçamento de 1974 se deu em um momento de ascensão do Congresso diante do Executivo. O cenário em que foi aprovada a lei foi fruto de condições únicas, decorrentes da combinação de uma crise político- econômica internacional com uma crise institucional interna. Aproveitando-se dessas condições estruturais, os legisladores buscaram construir um processo orçamentário unificado no Congresso, pois os orçamentos anteriores tinham, como produto final, diversas leis que não se integravam e que não engendravam políticas coerentes, formando peças de um quebra-cabeça que não podia ser montado de modo a criar uma figura compreensível. Em última instância, isso beneficiava o Executivo, que não possuía interlocutores à altura no processo de formulação do orçamento.

Com o passar do tempo, porém, a Lei de 1974 revelou carecer de instrumentos suficientes para atingir os objetivos almejados pelos congressistas. O primeiro problema institucional resultante do novo diploma legal foi a redução da responsabilidade do Executivo, que, desde 1921, era o grande responsável pela aprovação do orçamento. Em decorrência disso, nenhum dos tomadores de decisão que participam da elaboração do orçamento responde pelo produto final.

O atual sistema permite que o presidente submeta estimativas e projeções de déficits pelos quais a Casa Branca não assume responsabilidade [pois a palavra final recai com mais peso sobre o Congresso]. O sistema político,

ao não mais considerar o Presidente responsável pelo orçamento, retirou do Chefe do Executivo o papel de liderança política que a nação precisa (FISHER, 1987, p. 215).

Eis o problema mais grave que essa alteração proporcionou: a dificuldade de responsabilizar um órgão descentralizado reduziu a pressão para se construir orçamentos coerentes. Além disso, o maior peso decisório nas mãos do Congresso facilitou a atuação dos grupos societais, que defendem interesses específicos, pois sua maior proximidade com os legisladores lhes deu mais influência sobre o processo decisório, como será analisado nos próximos capítulos.

O aumento dos déficits orçamentários, relacionado com essa impossibilidade de responsabilizar um ator político específico pelo orçamento, também foi consequência indireta da Lei de 1974. Como não havia mais responsabilização pelo produto final, mas ainda era possível relacionar os congressistas à criação ou manutenção de programas específicos em seus distritos eleitorais, novos gastos eram criados, antigos eram mantidos, e não houve qualquer preocupação com os números totais do orçamento.

A impossibilidade de responsabilização, inerente à Lei de 1974, tornou necessária uma nova regulamentação sobre os déficits, com o objetivo de unificar o processo e criar ferramentas para equilibrar o orçamento106.

Outro problema importante com relação à lei de 1974 é sua complexidade excessiva. O procedimento orçamentário criado é tão complexo que os membros do governo estadunidense discutem, concomitantemente, três orçamentos. O processo todo leva mais de dois anos, sendo que há três procedimentos em discussão quando um orçamento é iniciado. Por exemplo, o orçamento do FY 1990 começou a ser elaborado no Executivo em março de 1988 e foi enviado ao Congresso em fevereiro de 1989. No mês seguinte, enquanto o Congresso discutia esse orçamento, o Executivo já havia iniciado o planejamento do orçamento do FY 1991 e a execução do orçamento do FY 1989. A necessidade de lidar, concomitantemente, com três orçamentos, limita a capacidade analítica dos membros que participam do

106 Essa regulamentação surgiu em 1985, quando foi aprovada a Lei Gramm-Rudman-Hollings, como

consequência de um amplo acordo entre os dois Poderes (LINDSAY; RIPLEY, 1992), com o objetivo de minimizar os déficits sem precedentes que haviam sido criados pelos orçamentos da Administração Reagan. A Lei previa a adoção de um processo de “sequestro” de gastos, quando o déficit anual do orçamento ultrapassasse em US$ 10 bilhões o valor previsto para o déficit no início do processo de discussão orçamentária. Tal sequestro seria projetado pelo OMB e pelo CBO, sendo executado pela Controladoria Geral, que avaliaria as estimativas produzidas e as repassaria ao Presidente, que deveria determinar a ordem de sequestro sem quaisquer alterações.

processo.

Além disso, como o ciclo todo dura um ano e meio, quando o orçamento é finalmente aprovado, as características da realidade para a qual ele foi desenhado podem ter se alterado. Os próprios índices macroeconômicos utilizados pelo Presidente em sua projeção orçamentária estarão ultrapassados. Essa peculiaridade leva os orçamentos a serem discutidos com base na premissa de que todos os pedidos do orçamento do Executivo que foram enviados ao Congresso serão aprovados, o que não ocorre.

Outro problema inerente à legislação se relaciona com a reestruturação dos comitês do Legislativo dela decorrente. Com a nova estrutura de poder, os comitês de apropriação perderam poder de decisão, devido à criação dos comitês de orçamento e às brechas que a lei concedia aos demais comitês, que passaram a utilizar os chamados entitlements107 sem qualquer critério.

Essas mudanças criaram uma verdadeira disputa de poder entre os próprios comitês e subcomitês das Casas legislativas, havendo, hoje, uma quase sobreposição dos comitês de autorização e de apropriação. Na prática, muitos projetos de apropriação têm conteúdo de lei e vêm sendo aprovados antes mesmo das leis de autorização (SHUMAN, 1992, p. 88).

Embora a legislação fixe que os comitês de apropriação devem atuar com base nas decisões dos comitês de autorização, eles agem simultaneamente. Disso decorre outro problema: os comitês de apropriação, que deveriam apenas aplicar as decisões políticas dos comitês de autorização (os responsáveis por decidir que programas estão ou não relacionados aos interesses do país), acabam agindo politicamente, como observa a própria comissão de segurança nacional do governo estadunidense (U.S. COMISSION ON NATIONAL SECURITY/21ST CENTURY, 2005, p. 176).

Essa sobreposição de funções causou dois problemas graves: em primeiro lugar, a quebra procedimental, decorrente do mau gerenciamento das relações entre os comitês das Casas legislativas, levou, com o tempo, à ausência,

107 Os “entitlements” são, originalmente, benefícios concedidos a grupos determinados de indivíduos

para suprir carências específicas. Trata-se de gastos não controlados pelo processo de apropriação. “Esse fenômeno é produto direto da política do Congresso. Com o intuito de contornar o sistema de apropriações, era necessário, por desenho, evitar o escrutínio anual e os ajustes dos Comitês de Apropriações. A prova final é encontrada na resistência dos entitlements aos cortes orçamentários. O mecanismo de entitlement faz com que seja mais difícil cortar um dólar gasto do que cortar um dólar dos programas que passam pelo processo de apropriação (SHEPSLE; WEINGAST, 1984, p. 349).

no Congresso, de discussões estratégicas sobre as funções do governo estadunidense e de como deve se dar sua atuação com relação ao sistema internacional. Acerca do orçamento de defesa, a análise dos comitês de autorização deveria ser estratégico-militar, com base nos subsídios fornecidos pelos demais comitês das Casas, nas análises dos Departamentos de Defesa e de Estado e na própria percepção dos legisladores, mas, como as funções dos comitês estão, na prática, sobrepostas, essa análise político estratégica não ocorre, pois o comitê de autorização passa se concentrar em questões fiscais e paroquiais, tal como fazem os comitês de apropriação.

Os congressistas, ao analisarem o orçamento dos EUA, preocupam-se preponderantemente com seus ganhos políticos e, em menor escala, com questões fiscais do orçamento, sobre as quais os debates, muitas vezes, podem se alongar além do necessário108. São raríssimos os legisladores que buscam colocar em pauta

questões sobre a inserção estratégica do país nas discussões do orçamento de defesa e realizar uma análise global da política de defesa (ART, 1985). A adequação de um programa militar passa a ser analisada com base nos ganhos políticos que pode trazer aos distritos dos congressistas que o aprovarem (as chamadas preocupações paroquiais) e no montante total dos custos daquele equipamento109.

O segundo grave problema dessa sobreposição, relacionado com o primeiro, diz respeito ao fato de que os resultados das discussões orçamentárias no Congresso ficaram muito aquém dos que eram obtidos anteriormente à 1974:

Antes da Lei do Orçamento, era muito improvável que os doze meses de um ano fiscal passassem sem que o Congresso aprovasse leis de apropriação regulares. Agora, isso é uma prática comum. Do ano fiscal de 1968 ao ano fiscal de 1975, somente duas leis de apropriação permaneceram sob uma resolução contínua por todo um ano. Do ano fiscal de 1976 ao ano fiscal de 1985, esse número subiu para vinte e sete. Para os anos de 1986 e 1987, o ano fiscal começou sem que sequer um projeto de lei de apropriação se transformasse em lei (FISHER, 1987, p. 200).

108 Os legisladores, muitas vezes, perdem diversas sessões em discussões intermináveis sobre

questões fiscais e sobre custos de equipamentos menos importantes, com o claro objetivo de desviar a atenção dos demais congressistas dos temas mais relevantes e dos equipamentos mais custosos, que pretendem manter. Essa prática é conhecida como micro-gerenciamento das contas (ART, 1985; DOWELL; BELL, 1994) do Pentágono e objetiva revisar se os gastos do Pentágono estão se dirigindo aos destinos políticos mais importantes para os legisladores e retardar as discussões sobre temas e gastos mais relevantes. Quando esses pontos chegam à pauta das discussões, os congressistas já estão tão atrasados com relação à votação da proposta orçamentária que a tendência passa a ser a aprovação dos gastos de programas que deveriam ser mais bem discutidos.

109 Apesar de ser uma preocupação legítima, pois o gasto dos EUA com defesa é relevante para o

desempenho macroeconômico do país, os custos dos equipamentos aprovados para a categoria pesquisa e desenvolvimento são, muitas vezes, maquiados, como se discutirá oportunamente.

Essa ausência de leis de apropriações formais anuais, exigência que recai sobre o Congresso desde os anos 60 (ART, 1985), ocasiona a aprovação de gastos por procedimentos diferentes dos ordinários, o que traz prejuízos ao sistema110.

Essa ausência de legislação específica sobre apropriações tem origem no fato de que o procedimento aprovado pela Lei de 1974 foi rapidamente flexibilizado pelos legisladores. O primeiro ajuste ao procedimento original foi abandonar a necessidade de adotar duas resoluções conjuntas pelas Casas, prevista originalmente na Lei, que determinava que, anualmente, o Congresso deveria construir duas resoluções orçamentárias (em 15 de maio e em 15 de setembro). A Lei previa que, se a segunda resolução não fosse aprovada, a primeira teria vigência. Devido a essa brecha, na prática, o Congresso passou a ignorar o prazo da primeira e aprovar somente uma resolução conjunta final, o que possibilitou um maior prazo para as discussões temáticas nos comitês e subcomitês.

Dessa forma, diversas etapas procedimentais previstas pela Lei do Orçamento de 1974 não vêm sendo cumpridas: além do fato de que o Congresso, desde meados da década de 70, não aprova duas resoluções de autorização de gastos por ano, as Casas não vêm construindo leis de apropriação relacionadas com diversos temas orçamentários, o que vem trazendo incerteza ao processo.

Apesar dessas graves lacunas legais, pode-se afirmar que a Lei de Orçamento de 1974 teve a virtude de construir um procedimento legal mais previsível, o que proporcionou maior segurança a uma temática cada vez mais complexa e que não era regulada a contento.

Além disso, outro ponto positivo a ser ressaltado é que, ao menos teoricamente, um procedimento com alto grau de complexidade, marcado por controvérsias, propicia a criação de alternativas que podem levar a meios menos custosos de se chegar aos fins pretendidos. Essa ressalva, porém, é importante somente em termos teóricos, já que, como foi amplamente observado, os tomadores

110 A maior parte dos gastos com as guerras do Iraque e do Afeganistão, por exemplo, não foi

financiada por meio de leis regulares de apropriação, mas por leis de apropriação suplementares e emergenciais, as denominadas “emergency supplemental appropriations bills”. Tais legislações deveriam ser utilizadas somente quando o país passasse por situações que envolvessem risco à soberania e à segurança, mas vêm sendo aplicadas em muitos outros casos. A utilização excessiva desses projetos de apropriação emergenciais prejudica o andamento da política externa dos Estados Unidos, devido à quebra do sistema constitucional de “checks and balances”.

de decisão acabam por se preocupar, preponderantemente, com seu próprio interesse, e não com o que poderia ser associado ao interesse nacional:

O fato de que a divisão do orçamento é um jogo de soma zero assegura que os participantes irão apresentar alternativas e que as propostas originais e alternativas serão julgadas a partir de um escrutínio rigoroso. Consequentemente, aos tomadores de decisão nos Poderes Executivo e Legislativo são apresentadas uma ampla margem de opções e análises que as apoiam, o que deveria resultar em melhores análises no longo prazo. Ainda assim, há excesso de paroquialismo nos procedimentos do orçamento (U.S. COMISSION ON NATIONAL SECURITY/21ST CENTURY, 2005, p. 172).

Com relação ao equilíbrio de poder entre Executivo e Legislativo, apesar de a razão principal para a aprovação da Lei de 1974 ter sido a percepção do Legislativo de que precisava retomar as rédeas do processo de elaboração do orçamento, pode-se afirmar que, ao invés de aumentar o poder do Congresso, a Lei acabou por enfraquecê-lo, pois o aumento da complexidade do procedimento em um órgão extremamente multifacetado e que, dificilmente, chega a um consenso, fez que a necessidade de um projeto orçamentário do Presidente se tornasse ainda mais evidente. Esse fato ampliou o poder de agenda, o que transmitiu ao chefe do Executivo maior capacidade de moldar o orçamento final. A administração Reagan potencializou essa possibilidade, ao perceber como a nova lei poderia ser favorável ao Executivo quando o Legislativo enfrentasse dificuldade para chegar a um consenso e fosse necessário aplicar o processo de reconciliação111.

Outro fator que facilitou a preponderância do Presidente sobre o Congresso foi a centralização do poder de decisão nas mãos dos membros dos comitês de orçamento, pois o novo procedimento acabou por concentrar as discussões no Congresso e, a partir daí, os representantes da Presidência puderam identificar seus interlocutores no Legislativo.

O objetivo de aumentar o poder do Congresso diante do Executivo logrou êxito durante a Administração Carter, que, apesar de ter alcançado importantes vitórias políticas pela utilização do processo de reconciliação, não conseguiu conduzir o processo orçamentário como seus antecessores. Porém, o equilíbrio de

111 “Ronald Reagan tirou proveito da reconciliação em 1981 e 1982, fazendo com que a Câmara dos

Representantes Democrata concordasse em votar a resolução do orçamento sem emendas que reconciliassem suas diferenças entre as estimativas orçamentárias, as leis de apropriação e as medidas de arrecadação. Dessa forma, ele foi capaz de obter muitos dos seus objetivos políticos pelo mecanismo de um orçamento” (EDWARDS III; WAYNE, 1994, p. 404-405).

poder entre os órgãos governamentais rapidamente pendeu, de novo, para o Executivo, pois Reagan encontrou, na nova estrutura decisória, meios de moldar uma agenda própria e interpretar o procedimento de modo a convencer os legisladores da necessidade de uma revolução do orçamento (HECLO, 1984, p. 261).

Apesar de que os anos entre 1974 e 1981 marcaram uma ascensão do Congresso, Reagan, mesmo que rapidamente, alterou a lógica. A prevalência do Legislativo, porém, logo voltou a ser evidente, o que foi possibilitado por um reequilíbrio de poder que ocorreu ainda nos anos 80 e que culminou com o domínio dos debates pelo Legislativo a partir do final da Guerra Fria.

O equilíbrio de poder entre Executivo e Legislativo é assunto complexo, cuja discussão se aprofunda no apêndice desta tese, que também faz ressalvas à aplicação de cada variável. Aos leitores que se interessarem pelo debate sobre essas características estruturais recomenda-se sua leitura.

O próximo capítulo tratará dos agentes do processo. A conclusão da primeira parte da tese encontra-se no capítulo subsequente.