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VARIÁVEIS SISTÊMICAS COMO FONTE DA EXPLICAÇÃO DA POLÍTICA DE

CAPÍTULO 1 – ANÁLISES TEÓRICAS SOBRE OS GASTOS COM DEFESA DOS

1.1. VARIÁVEIS SISTÊMICAS COMO FONTE DA EXPLICAÇÃO DA POLÍTICA DE

As principais perspectivas teóricas de Relações Internacionais percebem

6 Waltz (2002) defende essa hipótese.

os Estados como atores racionais8, que calculam seus custos e benefícios ao construírem suas decisões de política externa. Para explicar a atuação dos Estados, essas teorias criaram uma moldura estrutural que é construída sobre a imagem do Estado como um ator unitário, o que significa que os atores domésticos, que agem politicamente com o intuito de influenciar o comportamento do governo, têm sua importância negligenciada por essas teorias, que, devido a simplificações metodológicas, ignoram seu papel.

Essas explicações enfatizam a condição anárquica da estrutura internacional, que leva os Estados a construírem grandes capacidades materiais para aumentar suas chances de sobrevivência em um ambiente hostil e, a partir daí, prevalecer internacionalmente.

A condição anárquica da estrutura internacional constrange os Estados a procurar maximizar seu poder, o que podem alcançar realizando equilíbrios com outros países poderosos, se têm condições de confrontá-los9 ou, se o Estado é pouco poderoso, pela construção de alianças com os países mais relevantes no ambiente internacional. Quando ocorrem, essas alianças são moldadas pelos Estados mais poderosos, comportamento que Waltz define como bandwagoning10.

O autor defende que os sistemas bipolares são mais estáveis, pois há dois países principais equilibrando poder e maior clareza quanto ao comportamento de ambos, o que diminui a incerteza inerente ao sistema. Em um sistema bipolar, as alianças são mais estáveis e bem definidas, enquanto o comportamento não cooperativo é facilmente percebido. Nesse ambiente, o Estado que compõe um dos pólos de poder buscará informações sobre os recursos de poder de seu principal adversário e, a partir daí, planejará a construção dos seus próprios meios.

8 O conceito de decisão racional será discutido com maior profundidade quando forem abordados os

três modelos conceituais de Graham Allison.

9 Para Waltz, Estados poderosos evitam guerras por meio da maximização de suas despesas

militares, que o autor vê como “improdutivas para todos e inevitáveis para muitos” (WALTZ, 2002, p. 150), porque sua principal recompensa é somente a manutenção da autonomia decisória. Mesmo os Estados Unidos, o país mais poderoso do sistema internacional, deve gastar parte de seu PIB com a defesa, pois precisa garantir sua posição relativa e minimizar a possibilidade de constrangimentos externos. Portanto, “o realismo defende que os Estados são posicionais, não egoístas, em essência (GRIECO, 1988, p. 601), o que significa que os investimentos militares, na visão de Waltz, devem ser mensurados pelo mínimo necessário para que o Estado mantenha sua posição relativa aos seus principais adversários. Essa visão é contraposta pela análise de Mearsheimer (2003), que, por meio de uma tese normativa, conhecida como Realismo Ofensivo, defende que os Estados devem investir fortemente no aumento de sua capacidade militar, com o intuito de se prevenirem contra possíveis adversários, que também tenderão a buscar a supremacia global.

10 O termo é utilizado por Waltz para descrever o comportamento de “aliar-se ao mais forte” (WALTZ,

Dessa forma, ao menos teoricamente, na bipolaridade, há um importante indicador sobre como o Estado pode mensurar sua necessidade de gastos militares e o nível de recursos suficientes para a manutenção de sua sobrevivência. A segurança internacional, assim, é fornecida pelas grandes potências, que estão dispostas a arcar com os custos da estabilidade internacional11, já que entendem que o benefício da estabilidade do sistema compensa os custos que pagam por ela.

Waltz argumenta, portanto, que o fim da bipolaridade tornaria essa racionalização mais difícil e, portanto, tenderia a fazer com que o Estado que fosse alçado à condição de único estabilizador do sistema internacional gastasse cada vez mais com defesa. Essa afirmação não encontra suporte nas evidências empíricas quando são analisados os dados relativos ao investimento militar dos EUA durante e depois da Guerra Fria. De 1948, quando o país consolidou sua liderança sobre o hemisfério ocidental e a bipolaridade passou a ser a característica mais importante do sistema, até 1996, quando o fim da Guerra Fria já havia se definido e profundas alterações estruturais haviam ocorrido, não houve alterações expressivas nos gastos com defesa dos EUA.

De acordo com o Center for Defense Information (1996)12, durante a Guerra Fria (1948-1991), quando a URSS e os Estados Unidos se equilibravam para manter a estabilidade do sistema internacional, o gasto médio anual dos EUA com o aparato militar era de US$ 298,5 bilhões. De 1991 a 1996, a média passou a ser de US$ 293,7 bilhões, como se percebe na tabela abaixo:

TABELA 1 – GASTOS COM DEFESA DOS EUA E SUA RELAÇÃO COM A HIPÓTESE DE WALTZ

Ao contrário do que Waltz argumenta, houve uma diminuição dos gastos

11 Esse argumento é aprofundado por Gilpin (1987), que o contextualiza em discussão relacionada

com a Economia Política Internacional. Para o autor, a existência de um Estado poderoso que arque com os custos relacionados ao provimento de bens coletivos, como a estabilidade sistêmica, é fundamental para o bom andamento da ordem internacional.

12 Os dados utilizados nas tabelas deste capítulo estão convertidos para o valor do dólar de 1996. HIPÓTESE DE WALTZ (2002)

GASTOS COM DEFESA DURANTE A GUERRA FRIA

(> estabilidade) US$ 298,5 bilhões

GASTOS COM DEFESA APÓS A GUERRA FRIA

com defesa no período. A alteração, assim mesmo, foi mínima e, consequentemente, é possível afirmar que as mudanças na estrutura sistêmica no pós-Guerra Fria não levaram a grandes alterações no comportamento dos Estados Unidos quanto aos gastos militares. Continuidade é uma característica mais definitiva que mudança na atitude do país durante o período. Apesar disso, é importante analisar esse processo pela argumentação de Strange (1999), que destaca a possibilidade de redução dos investimentos a partir da percepção de ameaças pelos governantes do país.

A autora, também ligada à corrente realista das Relações Internacionais, concorda com os pressupostos de Waltz. Para ela, um Estado tende a aumentar seus gastos com defesa quando percebe a ampliação das ameaças na arena internacional:

Quanto maior a ameaça à segurança percebida, mais alto o preço que será voluntariamente pago e maior a aceitação do risco de que a força de defesa que dá proteção possa oferecer, por si própria, um outro tipo de ameaça àqueles que alega proteger. Dentre os Estados, foram os que se sentiram mais inseguros, que se percebiam como Estados “revolucionários” que desafiavam a ordem aceita e a ideologia prevalente de seu tempo ou região que estiveram mais preparados para arcar com os custos e aceitar os riscos de um governo militar e forças de “segurança estatal” como uma polícia secreta13 (STRANGE, 1999, p. 29).

Apesar de esta tese não construir uma clara definição de ameaças internacionais, devido aos muitos indicadores estruturais, institucionais e psicológicos que podem influenciar a percepção dos tomadores de decisão com relação à questão, pode-se pressupor que quando um país é atacado ou quando está participando de um conflito armado, sua percepção de ameaça é maximizada.

A partir da presunção de que essas duas condições representam um possível aumento das ameaças, pode-se encontrar evidências empíricas para a tese de Strange em períodos específicos da história estadunidense, mesmo que os investimentos militares tenham sido, a partir da segunda metade do século XX, constantemente altos. Na lógica da autora, essa questão se explica pelo fato de que, desde que se consolidaram como um dos polos de poder do sistema internacional, os EUA se viram constantemente ameaçados pela União Soviética, havendo, como

13 Processo semelhante pode ocorrer mesmo em Estados com uma democracia consolidada, como

se observou nos Estados Unidos após os ataques ao World Trade Center, com o Patriot Act e normas semelhantes.

se verá, momentos em que a sensação de ameaça foi potencializada.

Durante a Guerra Fria, as forças estadunidenses participaram de dois grandes conflitos. De 1950 a 1953, os anos da Guerra da Coreia, o gasto militar médio anual dos EUA foi de US$ 301,5 bilhões. De 1960 a 1975, período marcado pela Guerra do Vietnã e por um aumento das ameaças provenientes da União Soviética, ao menos até 1969 (KEGLEY; WITTKOPF, 1995), o gasto militar anual dos EUA foi de US$ 302,6 bilhões. Nos anos de paz da Guerra Fria, o gasto militar anual foi de US$ 285,4 bilhões.

Vê-se, portanto, que um aumento é percebido durante os anos de confrontações, mas o crescimento não foi grandioso: a diferença entre os anos de paz e de conflitos durante a Guerra Fria foi de, aproximadamente, 5%, havendo uma manutenção do orçamento básico de defesa mesmo quando as ameaças eram minimizadas. Continuidade, novamente, é uma característica muito mais presente no orçamento de defesa que mudança, como se pode ver pela tabela abaixo:

TABELA 2 – OS GASTOS DE DEFESA DOS EUA E SUA RELAÇÃO COM A HIPÓTESE DE STRANGE (1999)

HIPÓTESE DE STRANGE (1999)

GUERRAS DA COREIA E DO VIETNÃ US$ 302 bilhões

PERÍODO DE PAZ DURANTE A GUERRA FRIA US$ 285, 4 bilhões

A percepção de aumento das ameaças pelos governantes dos EUA, observada durante uma confrontação armada, leva ao aumento dos gastos militares, mas essa observação não é suficiente para explicar as variáveis causais do orçamento de defesa dos EUA.

Uma análise das variações no nível de gastos militares do país pode contribuir para esse debate, pois reflete, em certa medida, as duas características: continuidade e aumento dos gastos em situações de aumento das ameaças:

GRÁFICO 1 – GASTOS MILITARES DOS EUA COMO PERCENTUAL DO PIB E EM VALORES ABSOLUTOS:

Fonte: Stockolm International Peace Research Institute. Disponível em: <http://www.sipri.org/research/armaments/milex>. Acesso em: 10 dez. 2011.

A análise do gráfico mostra que a participação dos Estados Unidos em conflitos internacionais tende a aumentar os gastos com defesa, o que se observa nos períodos da Segunda Guerra Mundial (1942-1945), em especial, quando os investimentos em defesa ultrapassaram os US$ 700 bilhões anuais e representaram mais de 35% do PIB, da Guerra da Coreia (1950-1953) e da Guerra do Vietnã (1960- 1975). Tais elevações podem ser explicadas, em certa medida, pela hipótese de Strange (1999), pois a participação em conflitos implica o aumento de ameaças provenientes do meio internacional. Essa explicação, porém, precisa ser qualificada, pois o aumento do gasto também corresponde aos custos da movimentação das tropas ao combate e, principalmente, à sua manutenção no território inimigo.

A característica mais notável no gráfico, porém, é a continuidade dos gastos dos EUA com defesa. Mesmo nos períodos de paz, os gastos oscilaram para cima e para baixo, mas mantiveram-se em torno de US$ 300 bilhões e, em termos de percentagem do PIB, variaram entre 8% e 4%, mas nunca baixando desse nível.

GRÁFICO 2 – GASTOS EM DEFESA DOS EUA DESDE 2001.

Fonte: The Center for Arms Control and Non-proliferation. Disponível em: <www.armscontrolcenter.org>. Acesso em 14 jan. 2010.

Esse gráfico demonstra que, em 2001, quando os EUA sofreram o ataque terrorista ao World Trade Center, os gastos estavam no nível base de cerca de US$ 300 bilhões, aproximando-se, portanto, do índice médio histórico. A partir do evento, porém, houve um aumento grandioso não somente da conta das guerras do Iraque e do Afeganistão, que se referem à movimentação de tropas e aos investimentos específicos da manutenção dos militares no teatro de operações. O aumento no orçamento base de defesa também é visível, pois foi elevado de US$ 316 bilhões, em 2001, para US$ 536 bilhões, em 2009, o que pode sustentar a argumentação de Strange. Desde 2001, quando as percepções de ameaça do governo e da opinião pública estadunidense foram elevadas ao extremo, o investimento militar do país aumentou rapidamente14.

Apesar de contribuir para a explicação dos momentos de elevação dos momentos de elevação dos investimentos de defesa, a hipótese da autora perde

14 O aumento recente do orçamento de defesa dos EUA pode ser compreendido pelas teorias

realistas mais tradicionais, mas somente se forem consideradas as adaptações mais recentes realizadas por Waltz (2000), que esclarece alguns de seus conceitos anteriores, especialmente com seus argumentos acerca do comportamento domesticamente construído das potências hegemônicas.

força quando são analisados períodos em que há a diminuição de ameaças no meio internacional, pois não se observam, nesses momentos, reduções significantes no orçamento militar. Como já demonstrado, o orçamento continuou elevado no pós- Guerra Fria. Grandes alterações no nível de gasto do orçamento de defesa são raras, havendo poucos períodos em que se observa aumento exponencial (como nos anos 80 e no período pós-2001) e apenas um em que houve uma grande redução: a segunda metade da década de 40. A não redução do gasto militar na década de 90 e o comportamento dos gastos com defesa dos EUA, portanto, dificilmente são explicados pelas teses sistêmicas.

O emprego da premissa da racionalidade consiste em poderosa ferramenta conceitual, especialmente porque permite a produção de modelos teóricos parcimoniosos. Tais molduras, porém, não captam a complexidade do processo de decisão de um Estado, que não pode ser explicada apenas com base em modelos centrados no nível estrutural de análise.

As hipóteses de Waltz e Strange são similares, pois estão baseadas na interpretação de que alterações na percepção dos atores governamentais acerca da insegurança do Estado com relação às ameaças internacionais interferem em suas decisões sobre os gastos com defesa. A vantagem da visão de Strange sobre a de Waltz quando as hipóteses são testadas empiricamente reside no fato de que a noção de ameaça/insegurança da autora não é associada ao conceito de polaridade sistêmica e tem um viés muito mais complexo que a de Waltz.

Como se defende que a simples releitura dos conceitos de insegurança e ameaça não é suficiente para sanar as lacunas explicativas deixadas pelas hipóteses sistêmicas, entende-se que essas visões somente permitem a análise de momentos bastante específicos da política de defesa dos Estados Unidos, como a redução inicial dos gastos com defesa após a Segunda Guerra Mundial ou o aumento do gasto com defesa após 2001, se for considerada a hipótese de Susan Strange (1999), mas falham ao não compreender a manutenção de gastos elevados com programas que não se adéquam às necessidades das Forças Armadas. Se for analisado o comportamento dos Estados Unidos ao longo do último século, especialmente depois de o país ter se tornado a maior potência do sistema internacional, a continuidade de altos investimentos em armamentos é a mais importante característica de sua política.

essas teses apresentam outras dificuldades quando testadas empiricamente. Mesmo a tese de Strange, que tem maior capacidade explicativa, não dá conta da continuidade dos investimentos de defesa ao longo do tempo de modo satisfatório, pois, mesmo que fosse possível afirmar que os EUA sejam ameaçados desde o início da Guerra Fria, essa afirmação não levaria a uma explicação definitiva sobre a questão.

Os investimentos de defesa são decorrência da percepção de ameaça constante relacionada à União Soviética ou as ameaças, durante e após a Guerra Fria, são criadas artificialmente para possibilitar maiores investimentos em defesa? Na obra “American Foreign Policy and the Politics of Fear: threat inflation after 9/11”, editada em 2009, por Trevor Thrall e Jane Cramer, são apresentados argumentos que podem levar a essa segunda explicação.

Somente a associação desses conceitos sistêmicos com a análise do ambiente doméstico do processo de elaboração do orçamento estadunidense, que comporta disputas de poder entre o Executivo e o Legislativo, além da participação de atores societais que procuram moldar as decisões dos governantes pode minimizar as incoerências dos modelos sistêmicos.

Um dos objetivos desta tese é buscar meios de combinar os modelos sistêmicos apresentados com modelos que contemplem o ambiente doméstico na análise dos processos de elaboração do orçamento de defesa estadunidense. Somente pela associação de variáveis sistêmicas e domésticas, a partir da análise das estruturas decisórias e dos agentes que participam da tomada de decisão, é possível construir uma análise mais completa dos processos orçamentários.

Mesmo Waltz percebe a necessidade de considerar o ambiente doméstico dos Estados na explicação de suas decisões políticas. Ao responder às demandas teóricas construídas por autores que defendem a superação da visão do Estado unitário, o autor afirma que a condição anárquica do sistema internacional leva os países a procurarem a sobrevivência, mas aqueles que ultrapassam esse objetivo mínimo podem iniciar um processo de maximização de poder para além de sua necessidade de sobrevivência. Tais Estados o fazem com o intuito de poder formular livremente suas políticas, pois o aumento de poder é inversamente proporcional à existência de constrangimentos externos: quanto maior a capacidade do Estado, maiores suas chances de atingir seus objetivos internacionais, que são definidos domesticamente quando o país adquire capacidade para defender suas decisões:

A ausência de ameaças externas sérias à segurança estadunidense dá aos Estados Unidos mais latitude ao fazer suas escolhas de política externa. Uma potência dominante age internacionalmente somente quando o espírito a move […] A política estadunidense não foi gerada por interesses de segurança externos, mas pelas pressões políticas internas e pela ambição nacional (WALTZ, 2000, p. 29).

Dessa forma, o próprio formulador do Realismo Estrutural passa a considerar a necessidade de compreensão do ambiente interno na análise das políticas de defesa dos Estados.

A teoria de Relações Internacionais vem procurando desenvolver molduras teóricas que captem essa realidade complexa: atualmente, diversos modelos procuraram conceber meios de combinar variáveis sistêmicas e domésticas na análise dos processos de decisão dos Estados. Passa-se, agora, a uma rápida análise das principais construções nesse sentido.

1.2. AS ANÁLISES TEÓRICAS QUE ASSOCIAM NÍVEIS DE ANÁLISE