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CAPÍTULO IV – QUESTÕES DE ORDEM PÚBLICA

5. Questões de ordem pública de direito material

No comentário ao artigo 2035, parágrafo único, do Código Civil,283 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery explicam que as cláusulas gerais são de ordem pública, implicando seu conhecimento e aplicação de ofício, independentemente de pedido da parte ou do interessado, bastando que haja processo em curso, a qualquer tempo e grau ordinário de jurisdição, mencionando o artigo 303, inciso III, do Código de Processo Civil, não estando sujeitas a preclusão.284

A título ilustrativo, é indicado exemplo emanado do Código de Defesa do Consumidor. Conforme Nelson Nery Junior, “Como as normas do CDC são de ordem pública e interesse social, não se empresta validade à cláusula de renúncia ou disposição de direitos pelo consumidor, por isso enseja quebra do equilíbrio contratual.” Segundo o professor, analisando-se o sistema do Código de Defesa do Consumidor, a cláusula que estipular renúncia do consumidor ao exercício da exceptio non adimpleti

contractus ou da exceptio non rite adimpleti contractus é abusiva, sendo nula de pleno

Opinião intermediária: se a questão decidida era disponível e não houve recurso, transita em julgado, não mais podendo ser reapreciada; se era indisponível, pode ser reapreciada (RT 710/96). “Em se tratando de condições da ação e de pressupostos processuais, não há preclusão para o magistrado, mesmo existindo expressa decisão a respeito, por cuidar-se de matéria indisponível, inaplicável o enunciado n. 424 da Súmula/STF a matéria que deve ser apreciada de ofício” (STJ,-4ª Turma, RESP 43.138/SP, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, j. 19/8/97, não o conheceram, v.u., DJU 29/9/97, p. 48.208). “A preclusão no curso do processo depende, em última análise, da disponibilidade da parte em relação à matéria decidida. Se indisponível a questão, a ausência de recurso não impede o reexame pelo juiz. Se disponível, a falta de impugnação importa concordância tácita à decisão. Firma-se o efeito preclusivo não só para as partes, mas também para o juiz, no sentido de que vedada se torna a retratação” (Galeno Lacerda, citado em RTJ 100/7) (NEGRÃO, Theotonio e GOUVÊA, José Roberto Ferreira. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 35 ed. São Paulo: Saraiva. 2003, p. 342, 343 e 1.850, RISTJ 255, nota 4).

283 Art. 2035. “Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de orem pública,

tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.

284 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil anotado e legislação

direito não obrigando o consumidor. É nula também a cláusula que impedir o consumidor de ajuizar ação de resolução do contrato por inadimplemento.285

Eliane Proscurcin Quintella afirma que, não obstante as matérias de ordem pública relacionarem-se ao interesse público, não possuem o mesmo tratamento jurídico sempre. O tratamento jurídico a ser dado a determinada matéria de ordem pública dependerá diretamente do ramo do direito em que ela está envolvida. Desta forma, matéria de ordem pública de direito administrativo, que é do ramo do direito público, não receberá o mesmo tratamento de matéria de ordem pública de direito civil, que é ramo do direito privado, tendo em vista que cada ramo do direito é influenciado por diferentes princípios. Enquanto no direito público é interessante a preservação dos atos, especialmente se satisfazem o fim para o qual foram designados; no direito privado, ocorre o oposto, porque os fins dos atos particulares, via de regra, estão voltados aos interesses das partes, razão pela qual a nulidade do ato, ditada justamente por conta de ter violado norma de ordem pública, que envolve interesse público, deve prevalecer sobre o interesse particular das partes, assim, a nulidade nesse caso não pode ser convalidada.286

285 GRINOVER, Ada Pellegrini... (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos

autores do anteprojeto. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2000, p. 496 e 497. Cita-se ementa de julgado do STJ sobre normas de proteção ao consumidor:

“DIREITO DO CONSUMIDOR. ADMINISTRATIVO. NORMAS DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR. ORDEM PÚBLICA E INTERESSE SOCIAL. PRINCÍPIO DA VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR. PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. PRINCÍPIO DA CONFIANÇA. OBRIGAÇÃO DE SEGURANÇA. DIREITO À INFORMAÇÃO. DEVER POSITIVO DO FORNECEDOR DE INFORMAR, ADEQUADA E CLARAMENTE, SOBRE RISCOS DE PRODUTOS E SERVIÇOS. DISTINÇÃO ENTRE INFORMAÇÃO-CONTEÚDO E INFORMAÇÃO-ADVERTÊNCIA. ROTULAGEM. PROTEÇÃO DE CONSUMIDORES HIPERVULNERÁVEIS. CAMPO DE APLICAÇÃO DA LEI DO GLÚTEN (LEI 8.543/92 AB- ROGADA PELA LEI 10.674/2003) E EVENTUAL ANTINOMIA COM O ART. 31 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO. JUSTO RECEIO DA IMPETRANTE DE OFENSA À SUA LIVRE INICIATIVA E À COMERCIALIZAÇÃO DE SEUS PRODUTOS. SANÇÕES ADMINISTRATIVAS POR DEIXAR DE ADVERTIR SOBRE OS RISCOS DO GLÚTEN AOS DOENTES CELÍACOS. INEXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. DENEGAÇÃO DA SEGURANÇA.”

(REsp 586.316/MG, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 17/04/2007, v.u., DJe 19/03/2009).

De acordo com Alberto Gosson Jorge Junior, a intervenção do Estado nos contratos, relativizando seus efeitos, balizando a vontade das partes (art. 51 do CDC), em uma constelação de intervenções catalogadas como “dirigismo

contratual”, gerou em princípio o sentimento de extinção dessa modalidade negocial,

atualmente superada, diante da visão mais realista de que a força vinculante dos acordos de vontade prevalece em sua inteireza, desde que não contrarie os bons costumes, a boa- fé e as normas de ordem pública, ou conforme a linguagem do novel legislador, desde que “se cumpra com a função social do contrato”.287

Cita-se Gisele Santos Fernandes Góes ao tratar da aplicabilidade da ordem pública substancial brasileira em sua tese de doutorado. A autora menciona o art. 5º do Código Civil, quando afirma a linha de pensamento do rol de incapacidades, ao estabelecer o que é menoridade para o Brasil, isto é, abaixo de dezoito anos atualmente, no sentido de ordem pública absoluta. Entretanto, ao adotar o instituto da emancipação no parágrafo único, ilustrando-se com o inciso I, em razão da concessão dos pais ou de um deles, na ausência ou por sentença do juiz, mudou para o foco da ordem pública relativa, porque adquiriu a dose de disponibilidade, sem jamais perder o núcleo da ordem pública.

Ainda, Gisele Santos Fernandes Góes aduz que “não é por causa da base da relação privada que os direitos da personalidade não são parcela de atributo de ordem pública, visto que interagem essencialmente com a Constituição de 1988, no que tange aos direitos e garantias fundamentais que se apresentam como imperativos e indisponíveis – ordem pública absoluta a priori”.

O Código Civil, em seu art. 104, dispõe quais são os requisitos fundamentais para a validade do negócio jurídico, inscrevendo-se como ordem pública

287 JORGE JÚNIOR, Alberto Gosson. Cláusulas Gerais no Novo Código Civil. São Paulo: Saraiva. 2004,

absoluta, haja vista que a ausência de quaisquer deles ocasiona a sua nulidade e, assim, há uma regra de formatação imperativa e indisponível. Com relação aos contratos, em função de vigorar como sua razão de ser a liberdade contratual, o art. 421 do CC acentua tal liberdade, porém adverte Gisele Santos Fernandes Góes ser crucial que se identifique o foco de ordem pública, porque o diploma legal de 2002 preocupou-se em dizer que a liberdade é a tônica, entretanto está delimitada de maneira absoluta nos limites da função social do contrato. O direito de família no Código Civil brasileiro é um dos ramos em que há mais acentuado o contexto de ordem pública e afirma a autora que prevalece a absoluta. O Código Civil encaminhou-se na orquestra da Constituição de 1988. Ressalte-se que, antes da CF atual, o Código Civil de 1916 já tinha como linha, em várias passagens, a ordem pública absoluta, como a disposição de impedimentos matrimoniais do art. 1521 (CC anterior art. 183, incs. I a VIII); invalidade do casamento do tipo nulidade do art. 1548 (CC anterior art. 207); legitimidade para propô-la do art. 1549 (CC anterior art. 208); dissolução da sociedade conjugal do art. 1571; e relação de parentesco dos arts. 1591 e seguintes (CC anterior arts. 330 e seguintes).288

A seguir, será visto o tema central da dissertação acerca das questões de ordem pública e dos recursos para os Tribunais Superiores, analisando-se a necessidade do prequestionamento de ditas matérias relevantes para o sistema processual rígido brasileiro, assim como se deparando com a natureza e a finalidade do

288 GÓES, Gisele Santos Fernandes. Proposta de sistematização das questões de ordem pública

processual e substancial. Tese de Doutorado. São Paulo. PUC. 2007, p. 178, 181, 186, 189 e 190.

A respeito do culturalismo e experiência no CC de 2002, Judith Martins-Costa leciona que o Código Civil já não tem, atualmente, o caráter constitucional que tinha na experiência oitocentista, porém “retorna ao centro do sistema para cumprir a função de garantia e assumir a responsabilidade de unificar (melhor diríamos: de harmonizar) o caos irracional dos microssistemas, promovendo a comunicação, racionalmente ordenada, entre os Direitos Fundamentais e as instâncias normativas infra-constitucionais”. A autora conclui que “Na crise instaurada pela globalização – que é imposição política da (des)razão do mercado – o Código se apresenta, enfim, como continuidade da vida civil, continuidade axiológica, porém, continuidade não-linear, porque os valores que encerra – da socialidade, eticidade e operabilidade – estão em permanente referência histórica” (Culturalismo e experiência no novo Código Civil, in DIDIER JR., Fredie e MAZZEI, Rodrigo. Reflexos do novo Código Civil no Direito Processual. Salvador: Edições Podivm. 2006, p. 20).

Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Também será estudada a Súmula 456 do Supremo Tribunal Federal.

CAPÍTULO V

QUESTÕES DE ORDEM PÚBLICA

NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO E NO RECURSO ESPECIAL

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O tema central do presente trabalho refere-se à necessidade ou não do prequestionamento, da matéria haver sido decidida pela decisão recorrida especial e extraordinariamente, para que seja possível o conhecimento de questão de ordem pública no julgamento dos recursos especial e extraordinário, contexto da dissertação.

Desta forma, não são tratadas as demais competências do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Ressalva-se o conhecimento de ofício de questões de ordem pública pelo STF e pelo STJ quando de sua competência originária e dos recursos ordinários que julgam, tais como recurso em mandado de segurança, em que há a incidência do efeito translativo. Não se trata de exceção ao que é tratado neste trabalho, porque, em tais situações, haverá atuação como instância ordinária, em que existe ampla cognição. Aplicam-se a tais hipóteses os arts. 267, § 3º, e 301, § 4º, do CPC.289

289 Neste estudo, cita-se, a título ilustrativo, o julgado do STJ que segue:

“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. ICMS. ENERGIA E COMUNICAÇÃO. CONSUMIDORES. LEGITIMIDADE. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. RECONHECIMENTO DE OFÍCIO.

1. A Associação impetrante representa inúmeros hospitais no Estado do Rio de Janeiro que, para o exercício de suas atividades, consomem serviços de energia e comunicação.

Como visto, as questões de ordem pública são passíveis de conhecimento ex officio, em qualquer tempo e grau de jurisdição ordinário. O grande núcleo do presente trabalho é o questionamento a respeito da possibilidade de exame de tais matérias em sede dos recursos extraordinário e especial, independentemente de terem sido objeto da decisão recorrida.

Serão estudados os panoramas jurisprudencial e doutrinário envolvendo questões de ordem pública no recurso extraordinário e no recurso especial para, em seguida, serem tecidas considerações críticas a respeito da temática. Após, será feita uma breve análise sobre os precedentes da Súmula 456 do Supremo Tribunal Federal, abordando sua atual aplicação.