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Talvez o grande anatomista de todos os tempos tenha sido Andreas Vesalius (1514-1564). Nascido em 31 de dezembro de 1514, em Bruxelas, Bélgica, como Andreas van Wesele, ficou conhecido como Andreae Versalii. Vindo de uma importante família de médicos da corte imperial, desde a infância de- monstrava interesse pela Anatomia – ele frequentemente dissecava animais mortos. Seus estudos médicos começaram na Universidade de Louvain – Bél- gica. Quando era estudante, encontrou fora dos muros de Louvain, perto da sua nativa Bruxelas, um patíbulo onde balançava um esqueleto completo, dissecado com ligamentos:

Enquanto andava [...] de repente vi um cadáver seco [...] os ossos inteiramente expostos, unidos apenas pelos ligamentos, apenas a origem e inserção dos músculos estavam preservadas [...]. No dia seguinte o levei para casa [...] e construí aquele esqueleto que está preservado em Louvain [...]. (Andreas Vesalius)

Aos 19 anos, Vesalius foi para Paris, onde se tornou pupilo de Jacques Dubois, que tutelou Vesalius na dissecação de cães, e de Johannes Günther, que tornou Vesalius seu assistente pessoal na dissecação de humanos. Dubois, mais conhecido pela latinização de seu nome, Jacobus Sylvius, é considerado o fundador da Anatomia francesa; seu nome está ligado a várias estruturas,

como o aqueduto cerebral de Sylvius e o sulco lateral do cérebro de Sylvius. Sob a influência de Dubois, o Rei Carlos IX mandou construir anfiteatros para uso de médicos, pagando pensões a esses para a manutenção de cursos públicos de dissecação. Dubois conhecia e valorizava mais os ensinos de Galeno do que a Anatomia verdadeira; reconhecia deficiências nos ensinos do mestre de

Pérgamo, mas não tinha coragem de questioná-los.Passou involuntariamente

a semente da contestação para Vesalius.

Figura 3 - O manto do Criador, na pintura de Michelângelo

“Separação da terra e água”, tem a forma de rim.

Fonte: Eknoyan (2000, p. 1192)

Em 1536, Vesalius voltou para Bruxelas para terminar seus estudos em Medicina, após concluir que seus professores franceses realmente não sabiam Anatomia humana; um ano mais tarde, aos 23 anos de idade, ele se dirigiu para o maior centro científico da Europa, a Universidade de Pádua, localizada na Sereníssima República de Veneza. Após expor aos o oficiais desta Repúbli- ca suas habilidades cirúrgicas, comprovando seu ímpeto inovador e sua didáti- ca espetacular, foi graduado em 5 de dezembro de 1537 como médico; no dia seguinte, foi nomeado pelo Senado como chefe do Departamento de Cirur- gia e Anatomia de Pádua. Foi o primeiro a receber salário como professor de Anatomia.

As dissecações públicas de Vesalius no anfiteatro de Pádua eram lotadas por estudantes de Medicina, leigos, clérigos e anatomistas. Vesalius andava com um antigo livro de Galeno onde ele fazia nas margens da página anotações dos erros do autor. Ele também ensinou em Bolonha como professor convi-

Aspectos Históricos

dado. Sua primeira publicação foi um rascunho pessoal com esboços de veias, artérias e sistema nervoso denominado Tabulae anatomicae sex, publicado em 1538; esse foi o primeiro livro que contestou alguns conceitos de Galeno.

Vesalius foi o primeiro anatomista moderno a ter seus estudos baseados em observações próprias, e o primeiro professor a usar cadáveres em sala de aula. Palavras de Vesalius:

Eu não poderia fazer nada de mais útil do que produzir uma nova descrição do corpo humano, [a qual até então era] uma anatomia total- mente errada, uma vez que Galeno, a despeito de seus muitos escritos, muito pouco teve a oferecer sobre o assunto. Não vejo outro meio pelo qual eu poderia ter mostrado meus esforços aos meus aluno. (VESALIUS, 1953, p. 2 apud VASCONCELLOS; VASCONCELLOS, 2004, p. 7, tradução minha)

Como os achados de Vesalius desafiavam os de Galeno, surgiram muitas críticas e reprovações da comunidade científica, resultando em algumas ani- mosidades, tais como as que surgiram de seus orientadores franceses. Sylvius chegou ao ponto de lhe dar o apelido de Vesanus (o louco). Posteriormente, entretanto, Vesalius reestabeleceu um relacionamento de respeito e afeto com seus antigos mestres.

Vesalius era um homem muito a frente de seu tempo. Nem seus alunos o compreendiam plenamente. Certa feita, em Pádua, seu discípulo mais chega- do, Realdo Colombo, ridicularizou Vesalius, dizendo que ele não havia des- crito importantes estruturas achadas por Galeno, como um suposto ducto gastro-esplênico. Vesalius o desafiou a identificar, em uma dissecção pública, o tal conduto; a plateia compareceu em massa para o desafio; naturalmente, Colombo nada identificou porque o canal nunca existiu.

Em 1543, aos 28 anos, Vesalius se mudou para a Basileia. Lá trabalhou intensamente, dissecando, escrevendo e desenhando por três anos, até a pu- blicação de seu livro De humani corporis fabrica liber septem (Sete livros sobre a

estrutura do corpo humano). Devido à metodologia científica empregada, bem

como as correções propostas nos conhecimentos anatômicos previamente exis- tentes, A fabrica tem sido considerado de grande valor por especialistas em história da Medicina. Descrita por Sir Wiliams Osler como “o maior livro já impresso, a partir do qual a moderna medicina se originou”, De humanis

corporis fabrica é o referencial a partir do qual as contemporâneas ilustrações

Uma característica marcante desse livro é que, nos seus desenhos, o cadáver dissecado é representado como se estivesse vivo e posando para fotografias. Pela primeira vez, foi possível ver as estruturas do corpo humano em ilustrações belas e exatas. Via-se os corpos esfolados e os músculos abrindo-se como pétalas de uma flor. Os capítulos retratam a genialidade de Vesalius. As ilustrações, em preto e branco, são excelente, com padrões técnicos e artísticos de alto nível, semelhantes aos das melhores ilustrações atuais. Vesalius também mostrou sua erudição ao usar o idioma hebraico e o árábe no texto de A fabrica.

Figura 4 - Frontispício de De Humani corporis fabrica.

Fonte: <zttp://www.stanford.edu/class/history13/earlysciencelab/body/body.html>

Livros de A fabrica: O primeiro volume abordava ossos e articulações.“Era

necessário estudar antes a natureza dos ossos e cartilagens e depois analisar os ligamentos e músculos”, disse o mestre. No segundo livro, foram apresenta-

Aspectos Históricos

dos todos os ligamentos e músculos em uma série de ilustrações anatomicamente corretas. Os detalhes fornecidos são surpreendentes: a ori- gem e inserção dos tendões, a morfologia e o movimento das articulações. O leitor vê e aprende sobre todos os músculos, desde aqueles próximos à pele e pálpebras até aqueles mais profundos.

O terceiro e quarto volumes abordam os vasos sanguíneos e o sistema nervoso, enquanto que os volumes restantes tratam das paredes e o conteúdo do abdome, tórax e o crânio. Com a publicação desse livro, a ciência médica entrou no período moderno.

Em A fabrica, são descritos e classificados os ossos do crânio como grandes, longos ou redondos. Pela primeira vez é descrito o forame de Vesalius no esfenóide. A presença da pré-maxila como uma peça isolada, como ocorre em cães, não foi aceito por Vesalius. A mandíbula é representada como um único osso, em vez de dois, contradizendo novamente o que já tinha sido estabeleci- do por Galeno; o disco de articulação de temporomandibular é ilustrado pela primeira vez. O osso hióide foi apresentado erroneamente, de um modo se- melhante ao encontrado em cães.

As características gerais, funcionais e regionais das vértebras são bem reproduzidas. As costelas e escápula são representadas com erros e com figuras de má qualidade. Uma citação provocativa de Vesalius: “Não faltam costelas nos filhos de Adão; portanto, Eva deve ter saído de outro lugar”. (VESALIUS, 1953 apud VASCONCELLOS; VASCONCELLOS, 2004, p. 6, tradução minha) A clavícula e os ossos pélvicos foram precisamente ilustrados. O esterno foi o osso melhor desenhado, sendo sua divisão identificada em três peças ao invés de sete, como se acreditava.

Os ossos longos do braço e dos membros inferiores foram desenhados em uma proporção muito menor do que a real, mas os da mão foram com mais precisão. A identificação de um osso supranumerário na base do 5º metacarpal, e de medula óssea no carpo geraram controvérsias, uma vez que os ensinos de Galeno não identificaram estas estruturas. Um desenho mostra um osso pe- queno e redondo, que foi denominado osso de Vesalio, se projetando no ângu- lo entre a eminência articular do 5º metatarso e o cuboide. A existência desse osso tem sido questionada.

Concernente à miologia, uma contribuição impressionante de Vesalius é que ele representa os músculos “cheios de vida”, como se estivessem contraí- dos, dando à representação um aspecto funcional.

O músculo reto abdominal é mostrado se alongando excessivamente sobre as costelas. Um músculo do pescoço, existente somente em símios, é mostrado

como se pertencesse à espécie humana. O músculo choianoides é descrito como o 7º músculo ocular; posteriormente, Casserius (Giuliuo Casserius Piacenza; 1561-1616) mostrou que este músculo é encontrado apenas em alguns ani- mais. O músculo escaleno anterior está acima do serrátil anterior e adiante das costelas – outro aspecto da Anatomia comparada, agora relativamente a cães. Estas representações evidenciam a influência persistente do estudo da morfologia de animais sobre as concepções de Vesalius.

Todas as ilustrações presentes em A fabrica são de alta qualidade. No pri- meiro desenho do livro, por exemplo, um corpo está exposto frontalmente. No segundo, o lado de um corpo pode ser observado mostrando uma sequência de músculos dissecados. Neste mesmo quadro, podemos ver músculos superfi- ciais e profundos in situ. Chama a atenção o fato de os desenhos serem feitos como se o corpo estivesse em movimento.

Os dois primeiros volumes do livro apresentam ideias inovadoras e dese- nhos de qualidade superior, provavelmente porque eles foram feitos por um especialista contratado por Vesalius, Johann Stephan von Kalkar (1499–1546), pintor pupilo de Titian. O artista enriqueceu todos os desenhos usando paisa- gens localizadas entre duas cidades vizinhas, Pádua e Albano, como pano de fundo.

A heresia e a blasfêmia persistiram como disfarces pomposos para oprimir a liberdade da palavra, a qual sempre escolhe assuntos que provocam implicita- mente nos opressores um mal estar secreto. Aos 30 anos, após sete anos como professor de Pádua, Vesalius ficou tão nervoso pelos ataques implacáveis que recebia da Igreja e dos colegas que parou de dissecar e foi ser médico. Antes de sair de Pádua, queimou seus livros (uma ação impulsiva nunca compreendida) e rasgou alguns manuscritos não publicados. Ele foi trabalhar na corte do imperador romano Carlos V, de 1546 a 1556, ano em que o monarca abdi- cou. Servindo a Felipe II da Espanha, dissecou um nobre espanhol, que se moveu alarmantemente sob o bisturi. Vesalius foi denunciado por isso e, pos- teriormente, condenado à pena de morte pela Inquisição. A pena foi trocada pelo Rei por uma peregrinação expiatória para Jerusalém. O navio naufragou na volta e ele morreu de fome ou de alguma infecção na ilha grega de Zante, aos 50 anos.

Vesalius abordou a Anatomia diferentemente de seus predecessores, pois dissecava pessoalmente em vez de aprender ouvindo exposições de ensinos dogmatizados de Galeno, como era costume em sua época. Vesalius tem sido considerado pai da Anatomia moderna porque sua principal contribuição foi revolucionar o ensino e superar os ensinos galênicos arraigados havia séculos.

Aspectos Históricos

Ele mostrou que as teorias de Galeno eram baseadas exclusivamente em disse- cações de animais. Apesar de alguns de seus conceitos terem sido errôneos, é inegável a contribuição de Vesalius para a Anatomia moderna. Se hoje ainda temos muitas dúvidas sobre a biomorfologia, pior seria se um gênio como Vesalius não tivesse existido. Sua grandeza e modernidade intelectual também repousam na sua recusa em interpretar filosoficamente as estruturas que ob- servava; ele recomendava que as observações deveriam ser descritas com acurácia, sem interpretações.

Na única imagem disponível de Vesalius, ele aparece vestido de anatomista segurando um antebraço dissecado, desproporcionalmente grande, para enfatizar a importância da dissecação (figura 5). Vesalius também acreditava que a mão e o antebraço eram evidências dos desígnios da natureza, e não do acaso. Como ele disse: “a maravilhosa estrutura [o corpo humano] criada pelo Supremo Criador e Divino Artista, a Natureza”. (SHIN; MEALS, 2005, p. 214)

Figura 5 - Andreas Vesalius. Fonte: Versalius (1543, p. 3)

Depois que Vesalius deixou Pádua, a cadeira de Anatomia foi ocupada por cinco eminentes anatomistas. O primeiro deles foi seu assistente Realdo Colombo. Vieram depois Gabriello Fallopius (1523-1562), famoso pelas trom- pas na pélvis feminina; Hieronymus Fabricius (1533-1619); Giulio Casserio

(1561-1616) e Adrian van der Spigelius (1578-1625). Após o último, Pádua foi gradativamente perdendo sua influência na área da Anatomia.

Nomes importantes seguiram ou foram contemporâneos de Vesalius. Em Bolonha, Jacopo Berengario de Carpi contribuiu para o conhecimento do apêndice e do timo. Giulio Aranzio estudou o coração e Constanzo Varoli descreveu o cérebro (pons Varolii). Em Roma, Bartolomeu Eustachio fez mui- tas descobertas. Sua fama, aliás póstuma, adveio de seus magníficos desenhos anatômicos; foi um dos primeiros a reproduzi-los em cobre ao invés de em madeira. Jacobus Sylvius, professor de Vesalius, fez alguns acréscimos ao

conhecimento de ossos da cabeça e à reforma da nomenclatura anatômica. Na Suiça, Felix Platter escreveu um magnífico trabalho sobre o olho. Na Inglaterra, Thomas Vicary publicou, em 1548, um pequeno livro, Anatomie

of the bodie of man (Anatomia do corpo humano), talvez o primeiro em língua

inglesa.