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O estudo da Anatomia tinha se tornado bem estabelecido no final da Re- nascença. Diversos anatomistas eternizaram seus nomes criando uma série de epônimos, particularmente para estruturas do membro superior. No final do século XVIII, o interesse na Anatomia sofreu um arrefecimento. A atenção da maioria dos estudiosos se voltou para a o estudo da Patologia, Embriologia e Anatomia Comparada.

A nova Anatomia do Renascimento exigiu uma revisão da ciência. O mé- dico inglês William Harvey (1578-1657), educado em Pádua, combinou a tradição anatômica italiana com a ciência experimental que nascia na Ingla- terra. Em 1628, publicou Exercitatio anatomica de motu cardis et sanguinis em

animalibus (Um estudo anatômico da movimentação do coração e do sangue em animais). O livro é um tratado de anátomo-fisiologia. Ao lado de problemas

de dissecação e de descrição de órgãos isolados, o livro de Harvey estuda a mecânica da circulação do sangue, comparando o corpo humano a uma má- quina hidráulica. O autor explica como o sangue é bombeado e rebombeado por um circuito endovascular, o qual inicia e termina no mesmo ponto, o

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gue depois da sístole; que o ventrículo direito bombeia sangue para a circula- ção pulmonar, e o esquerdo, para a sistêmica.

Para mostrar que o sistema vascular é um trajeto circular, ele executou uma experiência: garroteou a parte distal do antebraço para que não passasse san- gue arterial; a seguir, afrouxou o laço para permitir fluxo arterial distalmente sem deixar que o sangue venoso retornasse. Durante os momentos em que a amarradura estivera mais apertada, as veias do antebraço apresentavam aspec- to normal, mas depois do afrouxamento elas começam a se intumescer, mos- trando que o sangue passava em sentido distal pelas artérias e retornavam proximalmente pelas veias. Ele também demonstrou a ação das válvulas das veias usando o antebraço como modelo experimental.

A importância do trabalho de Harvey não pôde ser sobrepujada. Os prin- cípios de fisiologia que ele estabeleceu levaram a uma compreensão da pressão sanguínea (primeiramente medida em um cavalo em 1733 pelo clérigo Stephen Habes) e mais tarde o uso clínico de cateterização cardíaca por Werner Forssman, Andreas Cournand e Dickenson Richards, e a prática da cirurgia do coração por Robert Grass, Elliot Cutler, Charles Hufnagel, Alfred Blalock e muitos outros. Harvey passou o resto de sua vida buscando identificar os capilares e, embora não os tivesse visto, previu sua existência. Quatro anos após a morte de Harvey, em 1657, Marcello Malpighi conseguiu ver pela primeira vez os capilares sanguíneos em um preparado de pulmão de rã. Jun- tos, os trabalhos de Vesalius e Harvey promoveram bases intelectuais para muitos avanços na Anatomia Humana, Fisiologia, Clínica e Cirurgia que se seguiram durante o milênio.

Como Vesalius, Harvey foi criticado severamente por sua ruptura com a filosofia Galênica. A controvérsia sobre a circulação do sangue perdurou du- rante 20 anos, até que outros anatomistas finalmente repetissem as experiên- cias de Harvey e concordassem com suas descobertas.

Anton von Leeuwenhock (1632-1723) era um ótico holandês e polidor de lentes que aperfeiçoou o microscópio, alcançando uma ampliação de 270 vezes. Suas muitas contribuições incluíram o desenvolvimento de técnicas para examinar tecidos e descrição de células sanguíneas, músculo esquelético e a lente do olho. Embora fosse o primeiro a descrever os espermatozoides com precisão, Leeuwenhock não entendeu o papel deles na fertilização. De certo modo, ele pensou que um espermatozoide contivesse um ser humano em miniatura e o chamou de homúnculo.

A melhora do microscópio acrescentou uma dimensão inteiramente nova

básicas do corpo. A microscopia ajudou Marcello Malpighi a provar a teoria de Harvey, sobre a circulação do sangue, e também a descobrir a estrutura mais íntima dos pulmões, baço e rins. Gasparo Aselli pôs em evidência os vasos linfáticos com o uso do microscópio. Introduzia-se, assim, o estudo microscópico da Anatomia.

Muitos outros indivíduos fizeram contribuições significantes à Anatomia durante este período de 200 anos. Em 1672, o anatomista holandês Regnier de Graaf descreveu os ovários do sistema genital feminino; e, em 1775, Lazzaro Spallanzani mostrou que o óvulo e os espermatozóides eram necessários para a concepção. Francis Glisson (1597-1677) descreveu o fígado, o estômago e os intestinos, e sugeriu que os impulsos nervosos causavam o esvaziamento da vesícula biliar. Thomas Wharton (1638- 1686) e Niels Stensen (1638-1686) separadamente contribuíram para o conhecimento das glândulas salivares e linfonodos no interior do pescoço e nas regiões faciais. Em 1664, Thomas Willis publicou um resumo do que era até então conhecido sobre o sistema nervoso.

Os ensinos de Giovanni Battista Morgagni (1682-1771) reergueram a fama da Escola de Pádua após anos de decadência. Ele foi o primeiro o unir os conhecimentos de Anatomia com os de clínica: apresentava sintomas e acha- dos anatômicos e fazia uma correlação lógica entre ambos. Ao longo de seus sessenta anos de ensino, é virtualmente impossível listar todas as suas desco- bertas nas áreas de morfologia e patologia; ventrículo e cartilagens cuneiformes da laringe, seio uretral, lobo piramidal da tireóide e colunas verticais do reto são algumas contribuições de Morgagni para a Anatomia.

O estudo do ser humano foi originalmente chamado de história natural do corpo (HNC). Era o registro de todas as informações sobre o organismo, incluindo morfologia, estrutura e funcionamento, que permitia ao leigo apren- der sem dificuldade. A HNC incluía a Anatomia e a Fisiologia em senso largo. Assim, a Anatomia se iniciou como abordagem holística. Entretanto, os estu- dos de Harvey desencadearam um processo de separação entre Anatomia e Fisiologia que dura até os nossos dias; esta começou a se especializar na análise de estruturas moles e aquela no estudo da estruturas duras. O conceito de

água corpórea, o elo de ligação entre partes moles e rígidas, que confere aos

seres vivos características especiais (elasticidade, flexibilidade, maciez, “deslizabilidade” e umidade), foi eliminado de ambos os campos. Após esse período, a Anatomia tornou-se uma ciência segmentada que estuda apenas estruturas desidratadas.

Galeno, Mondino, da Vinci, Sylvius e Vesalius figuram entre os pioneiros que exploraram o corpo sob a ótica do todo. Este era o estilo original da

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Anatomia. Porém, com a invenção do microscópio e o estabelecimento da histologia por Malphighi e a descrição da célula por Robert Hooke (1635- 1703), a estrutura da Anatomia como descrição da HNC foi abalada. A explo- ração do corpo se desviou para as pequenas partes. A tendência à divisão foi reforçada pelas concepções espiritualistas de filósofos como René Descartes (1596-1650). Desde então, a onda para a subdivisão e dissecção extremas se estabeleceu de modo autoproliferativo.

O terceiro período da história da Anatomia, especialmente no século que sucedeu à fase de Harvey, se tornou a idade heróica da anatomia microscópica e da embriologia. Esse período se caracterizou pela fundação de sociedades científicas e filosóficas, publicações de textos, atlas, construção de museus e escolas de Anatomia.

A exploração macroscópica do corpo humano foi concluída ao longo do século XIX. Hermann Braus combinou a descrição helenística e funcional de Galeno com a renascentista e arquitetônica de Vesalius de maneira reflexiva e metódica.

Os anatomistas gravaram seus nomes em nós com o mesmo amor com que os namorados gravam os seus em árvores. Nós abrigamos as criptas de Lieberkühn no envoltório dos intestinos, o círculo de Willis (junção das arté- rias na base de crânio), ao forame de Winslow, a fossa de Rolando, a bainha de Schwann, e o fundo-de-saco de Douglas. Esse egoísmo exuberante fez de nós gloriosos panteões ambulantes para os maiores médicos dos últimos cinco séculos.