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01 /.../

02 E: meu deus ((risos))

03 P: meu deus, perdoe eu encher os meus olhos de água / e ter-lhe pedido cheinho de mágoa / pro sol 04 in- in- inclemente se arretirar / desculpe eu pedi a toda hora pra chegar o inverno

05 E1: inferno

06 P: chegar o inverno, então? 07 E1: aqui tem inferno

08 E ((vários juntos)): in-ver-no 09 P: você tá pre-ci-san-do de ó-cu-lus 10 [ ]

11 E2: em cima, doente!

12 P: desculpe eu pedir para acabar com o in-fer-no / que sempre queimou o meu ceará.

Bortoni-Ricardo (2009, 2011) afirma que a correção ou ratificação de respostas fornecida por estudantes é uma questão importante para preservação das identidades individuais no ambiente interacional, pois nem sempre esse aspecto é pacífico ou consiste em uma oportunidade de expansão do conhecimento do estudante. Muitas vezes, as ratificações ou correções são mais frequentes com aqueles estudantes que parecem compartilhar dos mesmos esquemas de crença da professora.

A tentativa de retificação feita por E1 no segmento 2 acabou por expô-lo, e essa exposição teve o aval da professora quando esta fez o comentário (linha 9) e a ressalva da palavra (linha 12). O engano se deu pelo fato de E1 está adiantado em relação à leitura e não ter se dado conta. A observação que E2 faz retrata uma realidade dos estudantes desta comunidade, ou seja, embora a entonação seja sarcástica e até certo ponto agressiva, esse comportamento é comum entre os estudantes e não gera intimidação, uma vez que quando não há represália, há um desprezo representado pela expressão facial. Isso acontece, ao menos, nesta turma. A segunda opção foi a resposta de E1 para E2.

156 Podemos observar, no entanto, que E2, assim como os demais colegas presentes, não se manifestou quando P, na linha 6, não compreendeu a intervenção de E1; chegou, inclusive, a ratificar seu engano. Esse aspecto chama à atenção para a posição de falante institucional ocupada por P que lhe dá status não só em relação ao saber, como também ao poder. Por mais compreensiva, democrática e sensível que a professora se apresente, seu papel social marca o poder que tem sobre os estudantes e sobre a aula.

O discurso, a ação e as ideias que circulam em vários contextos ajudam a compreender o estado das coisas que constituem o mundo, assim como a visão que se tem desse mundo e do ser humano, da mesma forma que criam e recriam as realidades que envolvem os sujeitos e os transformam. Orlandi (2008) declara, entre outros aspectos, o discurso como ação social, ou seja, corresponde a uma produção de sentidos como parte integrante das atividades sociais dos sujeitos. Nesse sentido, ser estudante é saber-se capaz de criar, recriar e produzir conhecimentos, dialogando com seus pares e com o professor, certo de que será ouvido e enriquecido em suas posições e escolhas. É igualmente ser agente de transformação e elaboração de condutas e procedimentos sociais. Esses aspectos, infelizmente, foram desconsiderados no segmento 2.

Antes de apresentar mais um segmento, gostaríamos de esclarecer que por sugestão de uma das turmas de terceiros anos e o acatamento das demais, as aulas de língua materna, no segundo semestre do ano de 2014, foram voltadas para o ensino de Literatura, o de Análise Linguística foi ministrado no I semestre. No I semestre estávamos com a professora dos segundos anos e conhecendo a comunidade escolar em seus diversos segmentos.

Quando retornamos em 2015, no I semestre, além de fazermos alguns ajustes, tivemos o intuito de verificar o ensino de Análise Linguística da mesma professora, ainda que não estivéssemos com a turma que observamos inicialmente; porém, constatamos que os conteúdos trabalhados eram os das normas gramaticais, refletindo, infelizmente, a falta de discernimento entre o ensino de Análise Linguística e o de Gramática. Predominaram práticas pedagógicas em que as normas gramaticais eram escritas na lousa e depois a professora elaborava exercícios com frases descontextualizadas, visando a memorização de regras. Existiram basicamente duas condições nessas aulas: o silêncio imperava, particularmente, quando a aula era no primeiro horário e os estudantes ainda encontravam-se bastante sonolentos ou havia um excesso de conversas paralelas, enquanto eles copiavam, cessando apenas na hora da explicação. Logo, os fragmentos selecionados versarão sempre sobre

157 Literatura. O segmento abaixo foi extraído da mesma aula do segmento 2, porém com um enquadre diferente.

Segmento 4: transcrição de aula 11/08

01 /.../

02 P: se a gente... oh, vamos fazer basta:::nte silêncio, aí a gente... desliga o celular, por favo:::r! 03 [ ]

04 P: se todo mundo colaborar, consegue ouvir, eu ouvi em outras salas, aí a gente vai acompanhando 05 devagarzinho

06 ((toca a música na voz do grupo o rapa)) 07 [ ]

08 ((risos baixo))

09 P: psi::::u! vamos cantar pra gente. Psiiu, vou botar pra fora da sala, viu! 10 ((acaba de tocar a música))

11 E: já pode trazer o baseado 12 ((risos))

13 P: psi:::u, vamos ouvir! gente... vocês querem cantar sozinhos? 14 E ((todos)): é:::

15 P: quem puxa? vocês querem tentar cantar sozinhos? mas sem fazer bagunça... 3º a:::, psiu, 16meninas... vamos todos começar juntos? então vamos... tem mais barulho do que música

17 ((risos abafados)) 18 [ ]

19 P: vou recolher, pronto! filipe ajuda a recolher... já encerrei, se é pra tirar onda, a gente encerra... 20 obrigada!

Os processos de construção conjunta dos objetos de discurso e de conhecimento relacionados às cenas acadêmicas têm na interação face a face da sala de aula um lugar onde ocorre grande número de descontinuidades que dizem respeito às ações iniciadas tanto pelo professor, como pelo estudante, às inserções de tópicos, às repetições iniciadas pelo professor que visam fazer com que os estudantes entendam o tópico em andamento, entre outros aspectos.

Goffman (2012) afirma que nas interações face a face os interactantes estão constantemente mantendo ou propondo enquadre, ou seja, além de situar a metamensagem contida no enunciado, sinaliza o que dizem ou fazem ou ainda como interpretam o que é dito e o que é feito. Os enquadre são responsáveis pela organização e orientação do discurso em relação à situação interacional. Como desdobramento do conceito de enquadre no discurso, Goffman (2013b) introduziu o footing, passando a caracterizá-lo como o aspecto dinâmico do enquadre, isto é, representa o alinhamento, a postura, a posição, a projeção do ―eu‖ de um participante durante sua relação com o outro, consigo próprio ou com o discurso em

158 construção. Os footings podem ser sinalizados através do modo como os interactantes gerenciam a produção e a recepção dos discursos e podem indicar aspectos pessoais e sociais.

Na linha 13 a professora assume um enquadre de cordialidade. No entanto, na linha 19 ela opera um footing e passa a agir como uma pessoa autoritária, colocando um ponto final inesperadamente a essa etapa da aula. Com essa atitude, ela apresenta um enquadre de mulher autoritária e controladora, invertendo o comportamento demonstrado na linha 13. Essa mudança no enquadre tem como fim restabelecer a ordem da sala e dá continuidade à aula e para isso, a professora se valeu do poder que sua posição institucionalizada lhe oferece (linha 19).

O ofício do professor, isto é, ensinar abarca dois enfoques: o da intenção de ensinar e o da efetivação de seu propósito, pois de nada adianta o professor abordar certo tema em suas aulas e o estudante não aprender os aspectos trabalhados por eles. Essas duas dimensões do ensinar evidenciam também a inerente relação entre a atuação do professor e todos os demais elementos que permeiam o âmbito da educação. Tanto a atuação do professor intervém no cenário escolar, quanto os outros componentes presentes na escola influenciam o modo como o professor desempenha seu papel.

A aula deste dia foi marcada, particularmente, pela ausência de se pôr em prática o exercício da cidadania, lembrando que este conceito está relacionado à ideia de que o exercício da cidadania equivale não só a fazer parte da sociedade, mas também a tomar parte dela, pois a participação traz direitos e deveres para todos. Moreira (2006) afirma que o processo de construção do conhecimento deve ser mediado, levando-se em consideração o contexto em que o estudante está inserido, por isso há situações de aprendizagem quando o sujeito mobiliza uma ou mais capacidades, fazendo com que entrem em interação com outras competências.

Os estudantes estavam inquietos porque no dia anterior eles foram alvo de deboche no

facebook e a turma toda estava revoltada, inquieta e ansiosa por encontrar uma solução para a

situação. A professora estava ciente da questão antes de entrar em sala de aula; porém, teve uma reação em relação à mesma que pareceu deixar os estudantes decepcionados, pois em diversas situações, que presenciei, ela se mostrou solícita para com eles. Transcrevo a seguir uma parte de sua reação após perceber o quão difícil estava fazer os estudantes ficarem atentos e participativos neste dia.

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Segmento 5: transcrição de aula 11/8

01 P: 3º a presta atenção! eu estou entendendo, só que eu não vou resolver isso em minha aula... é:: 02 se vocês estão sentindo assim, que estão invadindo um direito de vocês

03 E: a privacidade

04 P: privacidade... sei lá... a honra, isso aí vocês tem de resolver com gestão, tá certo? porque se a 05gente ficar em minha aula tratando disso, eu não trabalho /.../ se for o caso de tomar algumas 06providências jurídicas até, elas vão tomar, ok? /.../ porque aí eu não posso invadir esse espaço e 07ne- nem tenho o direito, nem tenho habilitação para isso... não sei fazer isso... não sei resolver nada 08juridicamente essa questão e termina atrapalhando a aula /.../ encerrou, encerrou, isso aí é questão 09de ges-tão... leva pra gestão, a gestão vai resolver ou não, não sei! mas não compete a mim... /.../ 10eu não sei resolver isso e nem tenho competência para tal... não tenho competência pra isso, e nem 11é o momento adequado, agora é a aula, ok?!

12 E1: ok!

13 P: gente, vamos ou-vir... vocês hoje estão impossíveis! eu vou embora e deixo a turma! (+) 14 já fiz isso uma vez e faço de novo... prestem atenção... vocês estão no 3º ano de ensino médio, 15precisam amadurecimento... estamos trabalhando um texto, texto esse que pode até vir a cair no 16vestibular... independente de enem, vestibular ou não, aprendizado pra vida... (+) e tá tendo

17 uma discussão super interessante aqui e a conversa não para... (+) presta atenção! eu já saí

18 dessa sala por conta de barulho excessivo e eu saio novamente, eu peço a permissão da professora 19 ((referindo-se a mim)) e vou para outra turma e boto outro professor aqui... não dá não... essa aqui 20 é a melhor turma que eu tenho, vocês sabem disso... vocês são bons, mas vocês conversam muito! 21(+) então vamos prestar atenção, vamos amadurecer, né?! peraí... o que é que é mais interessante 22 pra mim? essa conversa paralela... eu sei que vocês estão agitados porque vocês foram 23caluniados... isso mexe, eu sei que mexe... (+) mas nesse momento a gente tem que saber

24 deletar... deleta o que passou... estão mexidos ou não, estão incomodados ou não, eu fui 25desmoralizado ou não, minha escola também foi desmoralizada em plena internet, pela internet /.../ 26 vestibular tá batendo na porta de vocês e isso é que é interessante... é importante... /.../ ou vocês 27não concordam com o que eu estou falando. Vocês concordam?

28 E ((todos)): sim ((alguns falam sim com tom de voz abafada, outros concordam com a cabeça e 29piscam lentamente os olhos))

Gumperz (2013, 1982) declara que as convenções de contextualização correspondem a pistas sociolinguística que são utilizadas pelos interactante a fim de sinalizar as intenções comunicativas ou ainda inferir as intenções conversacionais do interlocutor. Esse conceito refere-se aos traços existentes na estrutura da superfície dos enunciados, eles possibilitam aos interactantes uma interpretação da atividade em processo, como também elucida como o conteúdo semântico deve ser entendido e como cada elocução se relaciona com a que precede ou segue.

Na visão de Gumperz (2013, 1982) o processo de inferenciação baseia-se em construções hipotéticas, uma vez que os conhecimentos de mundo são reinterpretados nas interações face a face e construídos social e interacionalmente, ou seja, é situado culturalmente.

160 No segmento 5, apesar da turma sinalizar desde o início da aula que algo a incomodava, a professora insiste em não querer parar a aula para refletir sobre o problema (linhas 1 e 2). Essa postura da professora sinaliza uma omissão no que tange à formação cidadã que ela precisa oportunizar aos estudantes. Além da desatenção para o problema da turma, ela transfere a responsabilidade para a gestão escolar (linha 4) como se esta fosse a única responsável pelo desenvolvimento crítico dos estudantes. Essa transferência é ratificada com a silabação da linha 9 e no restante da mesma e nas linhas 10 e 11.

Em uma abordagem de ensino com cunho transformador a atuação do professor caracteriza-se por ser um ato dialógico, em que ele e os estudantes constroem um conhecimento de mundo por meio da reflexão e da ação em prol da emancipação e da libertação. O problema que a turma estava vivenciando deveria ter se tornado fonte de temas geradores que, sistematizados, desencadeariam aprendizagens que provavelmente iriam integrar saberes. Se a professora acolhesse a questão sugerida pela turma, provavelmente estaria exercitando habilidades democráticas da discussão, da participação e do questionamento, uma vez que estaria propiciando momentos para que os estudantes observassem, levantassem hipóteses, argumentassem e tivessem condições de transformar a realidade, demonstrando assim, que tanto a professora quanto os estudantes possuem papel de ensinar e aprender. Nessa perspectiva, a caracterização da professora seria a de um intelectual transformador.

O dizer da professora da linha 13 a 27 são recheadas de ameaças e autoritarismo, corroborando com o que Orlandi (2008) declara sobre esse tipo discurso, ou seja, procura-se impor um só sentido e o objeto do discurso, que é o referente, fica dominado pelo próprio dizer, o objeto praticamente desaparece. As longas pausas entre alguns enunciados sugerem tanto uma discordância como uma resignação dos estudantes, uma vez que eles estavam perdendo a oportunidade de aprender a lidar com conflitos e saber gerir situações-problema que constituem o mundo físico e social. Essa postura é certificada nas linhas 28 e 29.

É preciso esclarecer que embora o exercício da cidadania tenha sido negligenciado nesta aula em particular, ou seja, embora P não tenha sido muito feliz em seus comentários, essa foi a única aula em que presencie ao longo dos seis meses em que a acompanhei algo dessa espécie por parte dela, pois a mesma busca dá exemplo de respeito, tem muito cuidado ao formular orações e selecionar o vocabulário quando se dirige a um estudante e evita fazer julgamentos, mostrando sempre o outro lado da questão aos estudantes.

161 No próximo segmento será apresentado o fragmento de uma aula em que os estudantes tinham como objetivo apresentar uma pesquisa sobre o livro ―A hora da estrela‖ de Clarisse Lispector. Havia sido solicitada a leitura da obra alguns meses atrás, ficando marcada a exposição para a presente data. Os estudantes haviam assistido anteriormente ao filme baseado na mesma obra.

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