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Utilidade: Economia tradicional, economia comportamental e Neuroeconomia

1. Neuroeconomia

1.3 Utilidade: Economia tradicional, economia comportamental e Neuroeconomia

Nos primeiros anos de existência da ciência económica de uma forma geral, a busca pelo entendimento de questões como felicidade, bem estar e utilidade esteve frequentemente no centro dos debates. Contudo foi-se verificando ao longo do tempo um desinteresse natural de forma que estes estudos acabaram por ser esquecidos. Depois de algum tempo sobrevivendo

na inércia, estes estudos voltariam entretanto aos artigos, discussões académicas, fóruns e congressos. Recentemente, graças a uma nova roupagem, com as técnicas de mapeamento cerebral e alguns testes revalidando os antigos testes de utilidade, a Neuroeconomia emergiu e o ressurgimento daquelas questões fez-se com bastante fulgor. Neste ponto iremos ver um pouco sobre cada tipo de “utilidade” chegando aos principais conceitos e exemplos baseados na Neuroeconomia.

O foco deste tópico se limitará primeiro a uma abordagem económica, depois psicológica e, por fim, neuroeconómica. A razão para isso não é de difícil explicação. Os economistas deram uma abordagem quantitativa à utilidade que antes era subjetiva e não mensurável. Tratava-se de uma visão mais romântica da utilidade. Estes economistas pretendiam assim abandonar a subjetividade acerca da utilidade e transformá-la passando-a de medida de felicidade para “preferências do consumidor”.

Assim, nesta base, comecemos por referir que, a princípio, se deve destacar o conceito de “utilidade ordinal”. Neste caso, os esforços se concentravam em saber ou descobrir sobre qual cesta de bens tem mais utilidade em comparação com outra. Portanto, tratava-se de um ordenamento das utilidades, daí o nome de “utilidade ordinal”.

Para Varian (2006, p. 56) “no início definia-se as preferências em termos de utilidade: dizer que a cesta X = (x1, x2… xn) era preferida à Y = (y1, y2… yn) significava que a cesta X tinha uma utilidade maior que a Y”. Matematicamente:

(x1, x2… xn) ≻ (y1, y2… yn) (1),

se e somente se

U(x1, x2… xn) > U(y1, y2… yn) (2).

Entretanto o que importa de verdade na utilidade é o facto de que as preferências do consumidor contribuem para a análise da escolha, sendo a utilidade somente uma maneira de descrever a preferência.

Também importa referir o conceito de “utilidade cardinal”. Este conceito de utilidade sugere que existe uma importância relativa à diferença de valor entre a utilidade dos bens. Segundo Varian (2006, p. 59), “várias definições poderiam ser propostas para esse tipo de atribuição:

gosto de uma cesta duas vezes mais do que de outra se eu estiver disposto a pagar por ela duas vezes o que estou disposto a pagar pela outra”.

Um bom exemplo acerca da construção de uma função de utilidade através da resolução de um problema económico pode ser observado em Ferreira e Andrade (2011).

Considere-se um Universo com n mercadorias 𝑥1, 𝑥2, … , 𝑥𝑛 e um consumidor individual com Y de renda. Suponha-se que esse consumidor procura maximizar a função de utilidade

𝑈 = 𝑈(𝑥1, 𝑥2, … , 𝑥𝑛) (3), sujeita a uma restrição orçamental.

A formulação matemática do problema é, evidentemente, 𝑀𝑎𝑥. 𝑈(𝑥1, 𝑥2, … , 𝑥𝑛)

𝑠. 𝑎: 𝑥1𝑃𝑥1+ 𝑥2𝑃𝑥2 + ⋯ + 𝑥𝑛𝑃𝑥𝑛 = 𝑌

(4),

sendo 𝑃𝑥𝑖 o preço do bem 𝑖, 𝑖 = 1, 2, … , 𝑛.

É um problema de otimização condicionada. O método de multiplicadores de Lagrange pode ser aplicado na sua solução (por exemplo, ver Ferreira e Amaral, 2002). A função de Lagrange é,

𝐿(𝑥1, 𝑥2, … , 𝑥𝑛, 𝜆) = 𝑈(𝑥1, 𝑥2, … , 𝑥𝑛) + 𝜆(𝑌 − 𝑥1𝑃𝑥1 − 𝑥2𝑃𝑥2− ⋯ − 𝑥𝑛𝑃𝑥𝑛) (5).

As condições de primeira ordem são

𝜕𝑈 𝜕𝑥1− 𝜆𝑃𝑥1 = 0 𝜕𝑈 𝜕𝑥2− 𝜆𝑃𝑥2 = 0 ⋮ (6). 𝜕𝑈 𝜕𝑥𝑛− 𝜆𝑃𝑥𝑛 = 0 𝑥1𝑃𝑥1+ 𝑥2𝑃𝑥2 + ⋯ + 𝑥𝑛𝑃𝑥𝑛 = 𝑌. (7).

𝜕𝑈 𝜕𝑥1− 𝜆 ( 𝑌 𝑥1− 𝑥2 𝑥1𝑃𝑥2− ⋯ − 𝑥𝑛 𝑥1𝑃𝑥𝑛) = 0 (8). Ou 𝑥1 𝜕𝑈 𝜕𝑥1+ 𝜆𝑥2𝑃𝑥2+ ⋯ + 𝜆𝑥𝑛𝑃𝑥𝑛 = 𝜆𝑌 (9). Como 𝜆𝑃𝑥𝑖 = 𝜕𝑈

𝜕𝑥𝑖, 𝑖 = 1, 2, … , 𝑛, a equação anterior fica como segue,

𝑥1 𝜕𝑈 𝜕𝑥1+ 𝑥2 𝜕𝑈 𝜕𝑥2+ ⋯ + 𝑥𝑛 𝜕𝑈 𝜕𝑥𝑛 = 𝜆𝑌 (10). E observando que 𝜆 = 1 𝑃𝑥1 𝜕𝑈 𝜕𝑥1 (11),

ela assume a forma (𝑥1− 𝑌 𝑃𝑥1 ) 𝜕𝑈 𝜕𝑥1+ 𝑥2 𝜕𝑈 𝜕𝑥2+ ⋯ + 𝑥𝑛 𝜕𝑈 𝜕𝑥𝑛 = 0 (12).

É uma equação de primeira ordem homogênea às derivadas parciais (Ferreira e Amaral, 2005). Resolvendo-a temos, 𝑈(𝑥1, 𝑥2, … , 𝑥𝑛) = 𝐹 ( 𝑌 𝑃𝑥1 + 𝑃𝑥2 + ⋯ + 𝑃𝑥𝑛 ) (13). Note-se que:

- 𝐹(. ) é uma qualquer função diferenciável; - 𝑌 = 𝑥1𝑃𝑥1 + 𝑥2𝑃𝑥2 + ⋯ + 𝑥𝑛𝑃𝑥𝑛 é o rendimento;

- É fácil de ver que (13) é uma solução de (12), substituindo directamente;

- A expressão (13) evidencia a dependência funcional da utilidade de todos os bens e da renda.

Uma concretização particular de (13) pode ser dada por 𝑈(𝑥1, 𝑥2, … , 𝑥𝑛) = 𝛼

𝑌

𝑃𝑥1+𝑃𝑥2+⋯+𝑃𝑥𝑛 (14).

onde U(1, 1, … , 1) = α. Isto é, α é uma utilidade padrão: o valor da utilidade quando são utilizadas quantidades unitárias de cada bem.

Outro exemplo é

𝑈(𝑥1, 𝑥2, … , 𝑥𝑛) = 𝛽𝑃 𝑌

𝑥1 + 𝑃𝑥2 + ⋯ + 𝑃𝑥𝑛

(15), sendo agora β a utilidade padrão.

E, por fim, como último exemplo, temos

𝑈(𝑥1, 𝑥2, … , 𝑥𝑛) = 𝛾 𝑙𝑛

𝑌

𝑃𝑥1 + 𝑃𝑥2 + ⋯ + 𝑃𝑥𝑛

(16). sendo𝑈(1, 1, … , 1) = 0 e 𝑈(𝑒, 𝑒, … , 𝑒) = 𝛾.

Recorrendo por sua vez ao conceito de “utilidade marginal”, podemos ver a particular importância deste conceito. Esta utilidade marginal é em suma o consumo de uma última unidade de um bem, pelo que podemos fazer alusão ao conceito de saturação. Quer dizer, um agente consome até o ponto em que o consumo não traz mais utilidade para ele. Então a partir deste ponto cada incremento adicional de uma unidade não traz mais utilidade. O conceito de “utilidade marginal” aponta para utilidade extra gerada por uma última unidade de um produto.

A utilidade é portanto uma ferramenta quantitativa que os economistas criaram para sanar problemas relativos à subjetividade inerente a este conceito. Contudo veremos que este conceito recebeu algumas alterações com a economia comportamental e depois dos novos desenvolvimentos da Neuroeconomia.

Novos desenvolvimentos mostram como a ciência da escolha vinha se confrontando com a teoria da utilidade para representar melhor a forma como as pessoas tomam suas decisões. Se no caso da utilidade as preferências indicavam uma preexistência de uma opção de escolha, numa nova abordagem, ao fazer uma escolha, o indivíduo estará assim criando a sua preferência.

realmente acontece. Todavia, os dois pontos de vista não são inteiramente incompatíveis. Uma vez descobertas, ainda que por um processo “misterioso”, as preferências tendem a se tornar embutidas nas escolhas (ver Varian, 2009, p 591).

Desta forma podemos dividir em duas partes o processo de criação das preferências: primeiro ocorre um processo cerebral que faz com que tomemos uma decisão de consumo, esta decisão de consumo irá refletir daqui para a frente a nossa preferência. Em um segundo momento, a preferência determinada recai sobre os pressupostos originais da utilidade.

Entretanto esta é uma conclusão que parte dos pressupostos da economia comportamental baseada na psicologia. Hoje com as modernas técnicas de mapeamento do cérebro por imagem, podemos ver o processo de escolha em desenvolvimento aquando da escolha de consumo. O que se pode desde já adiantar é que várias variáveis desencadeiam este processo. Baseados nestes pressupostos Daniel Kahneman e Amos Tversky deram início a uma reformulação teórica no artigo intitulado Prospect Theory: An analysis of decision under Risk. Neste artigo Kahneman e Tversky desenvolveram um modelo próximo do da utilidade. O objetivo era o de refutar ou encontrar falhas no modelo de utilidade existente (ver Kahneman, 2012, p. 338). Estes autores deram ênfase às questões relativas ao risco inerente a qualquer tomada de decisão, em especial na questão do estudo de tomada de decisão em contexto de incerteza. Para estes autores os economistas adotaram a teoria da utilidade esperada (ver Marqués, 2009, p. 182) como um modelo ideal de tomada de decisão aquando da análise baseada no homo-economicus.

Para reivindicar os méritos substanciais da teoria da utilidade, Kahneman e Tversky introduziram a “teoria da perspectiva”. Para ilustrar a problemática acerca da utilidade esperada, vejamos o seguinte exemplo apresentado por Kahneman (2012, p. 342):

 Hoje Jack e Jill têm cada um uma riqueza de 5 milhões.

 Ontem, Jack tinha um milhão e Jill 9 milhões.

 Ambos estão igualmente felizes? (eles têm a mesma utilidade?).

Este exemplo ilustra bem o problema inerente à teoria da utilidade esperada. Segundo esta teoria ambos deveriam estar felizes, pois a utilidade da riqueza seria a mesma. Porém o cérebro humano não funciona desta maneira. Portanto, a insatisfação de Jill é real por ter a sensação de perda. Desta forma, presume-se que, ao contrário do que a teoria da utilidade esperada refere, o ponto inicial ou ponto de referência deve ser considerado para análise. Na teoria da utilidade, a utilidade de um ganho é aferida comparando-se as utilidades de dois estados de riqueza. Desta forma Kahneman argumenta que existem alguns pontos que

enfatizam as fraquezas da utilidade esperada:

 A teoria é simples demais e carece de uma parte móvel;

 A variável que está faltando é o “ponto de referência”;

 Nesta teoria precisa-se apenas conhecer o estado de riqueza para determinar a utilidade;

 A teoria da perspectiva é mais complexa e, portanto, melhor do que a teoria da utilidade.

Desta forma a teoria da utilidade foi refutada de forma categórica, beneficiando a adoção de outra teoria – a da perspectiva. A teoria da perspectiva é uma teoria de cunho psicológico, analisa os resultados finais das interações económicas. Segundo os seus próprios criadores, as interacções econômicas desempenham um papel essencial na avaliação dos resultados financeiros e são comuns a diversos processos automáticos de percepção, juízo e emoção. Elas devem ser vistas como características operantes do sistema automático: a avaliação é relativa a um ponto de referência neutro, ao qual às vezes nos referimos como “nível de adaptação”; apresenta-se um princípio de sensibilidade decrescente que se aplica tanto a dimensões sensoriais como à avaliação de mudanças de riqueza; e apresenta-se o princípio de aversão à perda (ver Kahneman, 2012, p. 351).

Todavia apesar de ser considerada uma melhor alternativa à teoria da utilidade, a teoria da perspectiva não reflete todas as possibilidades que a neurociência propicia aos tomadores de decisões. Isto sugere que o modelo pode ser melhorado por meio das interações económicas como propõe a teoria, mas também com o incremento de estudos dos processos cerebrais que sustentam as decisões.

Nos estudos de Neuroeconomia, práticas com voluntários em jogos decisionais apontam para a importância do sistema dopaminérgico (sistema envolvido na geração de prazer) para a formação das preferências derivadas do funcionamento do sistema de recompensa cerebral. No cérebro, a região onde é produzida em grande quantidade a dopamina é o Núcleo

Accumbens. Trata-se de um local importante para a regulação da emoção e da motivação,

sendo um local de convergência de fibras procedentes da amígdala, do hipocampo e dos lobos temporais, emitindo projeções para regiões como o córtex cingulado, lobos frontais e hipotálamo (ver Rodrigues et al, 2011, p. 179).

No modelo de utilidade marginal, o sistema de recompensa cerebral atua com o processo de saturação. Porém, estudos apontam para os seguintes factos acerca da liberação de dopamina em uma situação de consumo:

 Os agentes reagem a estímulos sensoriais;

 Memórias ou imaginações liberam dopamina, assim como o próprio consumo em si;

 Quanto mais o consumidor é estimulado, mais esforço futuro é necessário para fazer com que ele libere a mesma quantidade de dopamina da próxima vez.

Desta forma, tem-se a utilidade que o consumo de um determinado bem pode proporcionar mesmo que esse bem não tenha sido consumido de facto. Isto muda tudo em relação ao conceito de utilidade, em todos os aspectos. Mesmo que o princípio psicológico seja considerado, ele não pode prever qualitativamente os aspectos endógenos aos sistemas de recompensa cerebral que um produto desperta no cérebro de um consumidor.

Portanto, podemos concluir que a questão da utilidade se encontra prostrada diante de um novo paradigma: até que ponto se pode generalizar o aspecto individual da formação dos circuitos cerebrais envolvidos na liberação de dopamina? Em termos neuroeconómicos, ela nunca foi tão relevante para a tomada de decisão.