• Nenhum resultado encontrado

A NOÇÃO DE ENERGIA RENOVÁVEL, DISPUTAS NARRATIVAS E CONFLITOS E RESISTÊNCIAS DESDE AS COMUNIDADES 1

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A NOÇÃO DE ENERGIA RENOVÁVEL, DISPUTAS NARRATIVAS E CONFLITOS E RESISTÊNCIAS DESDE AS COMUNIDADES 1"

Copied!
20
0
0

Texto

(1)

A NOÇÃO DE ENERGIA RENOVÁVEL, DISPUTAS

NARRATIVAS E CONFLITOS E RESISTÊNCIAS DESDE AS

COMUNIDADES

1

Fabrina Furtado (DDAS/UFRRJ)

Elisangela Paim (Fundação Rosa Luxemburgo)

1. INTRODUÇÃO

O atual momento histórico-civilizatório, de crise econômica, ambiental e sanitária global, vem sendo caracterizado como uma crise civilizatória. Uma crise de longo prazo que pode ser percebida como “caos sistêmico” ou uma crise do padrão de poder e de saber (PORTO-GONÇALVES, 2020). Os efeitos da exploração de trabalhadores e trabalhadoras, de mulheres, populações indígenas, tradicionais e do campo, e da lógica de dominação da natureza relacionada, processos que sustentam e garantem a expansão do sistema capitalista, estão cada vez mais evidentes e sendo colocados em pauta. Trata-se de um processo sistemático de apropriação e expropriação de terras, territórios e povos, que gera e aprofunda conflitos ambientais – ou seja, os conflitos em torno do acesso, uso e apropriação do mundo material. Um contexto que se agrava com o avanço de movimentos e governos de extrema direita que, no Brasil, sustentam discursos e políticas de liberalização radical do agronegócio e da mineração, um anti-ambientalismo e preconceitos contra povos indígenas e tradicionais.

Nesse cenário de violações de direitos humanos e colapso ambiental, apesar do negacionismo da extrema direita, a mudança climática antropogênica é caracterizada como um dos maiores desafios do nosso tempo. A mudança do clima nos mostra a importância de transformar com urgência os modos de interação entre as práticas sociais de apropriação de matéria e energia e os processos climáticos. No entanto, a disputa entre diferentes diagnósticos e as incipientes medidas dirigidas a construção de um regime climático internacional não tem conseguido superar o pensamento e as práticas econômicas neoclássicas. A solução dominante ao problema está fundamentada no projeto neoliberal de

1 44º Encontro Anual da ANPOCS. GT10 - Conflitos e desastres ambientais: colonialidade, desregulação e lutas por territórios e existências.

(2)

mercantilização e financeirização da natureza, se dirigindo, de maneira reducionista à diminuição mensurável de emissões de gases de efeito estufa (GEE). Isso está sendo levado adiante através de mecanismos como pagamento de serviços ambientais, ajustes tecnológicos, e implementação da lógica de compensação, através de terminologias como “soluções baseadas na natureza”, “emissões líquidas zero”, “bioeconomia” e “baixo carbono”.

Nesse sentido, a noção de transição energética no campo das políticas dominantes também apresenta desafio. Na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática (UNFCC, sigla em inglês), por exemplo, existe um aparente consenso de que o setor energético é o maior contribuinte, no âmbito global, de GEE – aproximadamente, 35% das emissões totais em 2010 – e que, portanto, é necessário construir uma transição energética (UNFCCC, 2017). Por transição energética, a ONU compreende a mudança realizada em direção à construção de sistemas energéticos que garantam a produção de energia sustentável, envolvendo também a eficiência energética, o fim da pobreza energética e a utilização de fontes de energia renovável para alcançar o acesso universal e a redução de emissões. As energias que são consideradas renováveis são: hidroelétricas, eólicas, bioenergia, energia solar e geotérmica. Apesar de iniciativas isoladas que afirmam buscar reduzir os investimentos em energia fóssil e diversificar a produção de energia, os hidrocarbonetos e o carvão predominam nos discursos e práticas dos agentes dominantes. A matriz energética a nível global continua sendo dominada em 81,3% por fontes fósseis, as relações de produção e consumo de energia desiguais - com apenas 4,3% da população mundial, em 2017, os Estados Unidos consumiu 16% da energia mundial – e a fronteira energética é expandida com novas e perigosas tecnologias permitindo que as corporações aprofundem expropriações territoriais (IEA, 2019). Por outro lado, as próprias energias renováveis estão sendo apropriadas por corporações. A privatização dos territórios e os conflitos provocados pela construção de hidrelétricas, expansão dos agrocombustíveis e de parques eólicos também refletem a necessidade não só de questionar a fonte ou a tecnologia utilizada na produção de energia, mas, principalmente, os processos sociais de produção, apropriação e utilização de energia. Portanto, se faz necessário questionar o próprio conceito de energia e, mais especificamente, o de energia renovável. Isso implica em uma análise não somente do tipo e da quantidade de energia produzida, mas também das necessidades e possibilidades territoriais e os distintos efeitos sobre os territórios e os seus povos.

Assim sendo, esse trabalho busca caracterizar o campo de forças que compreende as instituições, discursos, práticas e agentes envolvidos no campo da energia renovável. Para tanto abordamos o avanço da fronteira energética e o modelo energético dominante,

(3)

envolvendo uma discussão sobre a apropriação da noção de energia renovável por parte de corporações, os principais argumentos, projetos e implicações; e a construção de projetos de energia renovável em comunidades, em especial os seguintes casos: Padaria Solar, gestionada pela Associação de Mulheres do Grupo Bolo das Oliveiras, no semi-árido paraibano; Agroindústria Solar para benefício de frutas amazônicas, da Associação Comunitária de Agricultores Agroextractores de Surucuá (AMPROSURT), no Pará; e, e o Projeto Alto Uruguai do Movimento dos Atingidos por Barragens, no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Terminaremos com as conclusões da pesquisa.

A pesquisa de campo foi realizada em quatro etapas, tendo como fundamentação, a epistemologia decolonial e feminista, ou seja, uma ciência que parte do conhecimento situado, isto é, que explicita a construção do contexto através do qual é produzida, considerando, em especial, as experiências dos povos do Sul Global e das mulheres, assumindo um posicionamento político (HARDING, 1998). A primeira etapa englobou um mapeamento, a partir de fontes secundárias, das iniciativas de energia renovável em comunidades no Brasil e a segunda a seleção dos três casos contemplando os seguintes critérios: caráter comunitário, diversidade regional, fonte de energia e uso final e participação de mulheres. O trabalho de campo se deu através da observação participante, com foco nas análises qualitativas, utilizando entrevistas semiestruturadas com agentes dos projetos e externos (do Estado e organizações parceiras) e participação em eventos. Na terceira etapa foi realizada análise dos dados coletados, utilizando categorias como neoextrativismo e energia extrema, energia renovável, exclusão energética, comuns e conflitos ambientais.

2. O AVANÇO DA FRONTEIRA ENERGÉTICA E APROPRIAÇÃO CORPORATIVA DA NOÇÃO DE ENERGIA RENOVÁVEL

A inserção da atividade extrativista - a expansão territorial das frentes de mineração, do agronegócio, do monocultivo de árvores, da exploração de petróleo e gás – como prioridade na escolha produtivista de desenvolvimento brasileiro e da América Latina, alavancado pela ação do Estado, não é algo novo. Desde os anos 1990 a indústria extrativa vem assumindo um papel central na economia da região. Apesar de que grande parte dos projetos de hoje, do agronegócio, hidrelétricas e mineração, tiveram as suas raízes no período

(4)

da ditadura militar, a dependência na indústria extrativa, inclusive para financiar as políticas sociais, assumiu uma forma extensiva neste período de liberalização econômica, em especial a partir do domínio da retórica neoliberal sobre as virtudes do livre mercado e da inserção internacional do capitalismo brasileiro.

Nos anos de 2000 a América Latina foi se consolidando como uma fronteira importante para a intensificação do extrativismo e a incorporação de territórios para estas atividades. Para tanto, os diferentes Estados empenharam-se em gerar condições favoráveis à atração de investimentos internacionais (ACSELRAD, 2018). A fragmentação e a flexibilização da legislação ambiental ou o descaso em sua aplicação; o desmonte dos órgãos ambientais e a criminalização das lutas sociais, são alguns desses procedimentos.

Em termos energéticos, este modelo representou a intensificação da exploração de hidrocarbonetos e a instalação de grandes hidrelétricas. Com as devidas diferenças nacionais, a matriz energética da região seguiu a tendência global, com o petróleo como principal fonte. Apesar de não ter, em seu conjunto, as maiores reservas de petróleo do mundo, a importância geopolítica da região esteve (e está) relacionada com o fornecimento de energia para o Norte Global e China como também, por ser um espaço de investimentos e de interesse de suas corporações energéticas. Nesse sentido, as empresas espanholas assumiram a liderança do sector de energia convencional na América Latina e as chinesas estão em expansão, em especial no Brasil (AGUIAR, 2017). Neste marco, também estão incluídas as tentativas dos Estados Unidos de controlar as reservas de petróleo na Venezuela. No Brasil, a extração de petróleo vem crescendo nos últimos quatro anos alcançando 48% da produção da região em 2017 (IEA, 2019). Por isso aumentou também o interesse de corporações estrangeiras nas reservas brasileiras; a lista inclui multinacionais como BP, Chevron, ExxonMobil, Shell, Total e Petronas, além de Petrobras (O GLOBO, 2019).

Com este marco de referência, o avanço da fronteira extrativista e, portanto, dos conflitos, levou pesquisadores a denominar o processo de “energia extrema” (OILWATCH, 2017). Para sustentar a matriz energética e a sua dependência nos hidrocarbonetos, crescentemente são utilizadas novas tecnologias e formas de extração, como em rochas sedimentares, o petróleo bruto pesado e extrapesado, as areias betuminosas, o fraturamento hidráulico (o fracking), a recuperação melhorada de hidrocarburetos mediante a aplicação de desenvolvimentos biotecnológicos em campos já esgotados e em jazidas no mar, cada vez mais longe da costa, em águas profundas. Além disso, segue a forma “tradicional” de expansão da fronteira energética, através da invasão e apropriação privada de águas e terras de povos indígenas, tradicionais e do campo.

(5)

A América Latina vive uma acelerada expansão da indústria de construção de hidrelétricas, por exemplo. No caso de Brasil, em termos da matriz de energia elétrica, grande parte é produzida a partir da construção de hidrelétricas. No ano de 2017, apesar da queda da energia hidráulica em decorrência das condições hidrológicas, a produção de energia através da fonte hídrica representou 65,2% da matriz elétrica. No mesmo ano, a expansão da energia eólica significou que as energias renováveis alcançaram 80,4% da matriz de energia elétrica no país (EPE, 2018).

As grandes hidrelétricas são um exemplo de que a renovabilidade de uma fonte de energia não implica necessariamente sua sustentabilidade socioambiental (FERNSIDE, 2008). Em todos os casos, são empreendimentos que são instalados sem consultar os povos afetados, que quando consultados não têm o direito ao veto, resultando no deslocamento de povos indígenas, ribeirinhos, tradicionais e campesinos, além da perda de biodiversidade, aumento de emissões de GEE, problemas de saúde, e crescimento urbano desordenado, para citar alguns dos efeitos negativos.

Os imensos parques eólicos instalados em grande parte do litoral nordestino, vêm gerando profundos impactos ambientais negativos como a degradação dos campos de dunas, reservatórios de sedimentos, águas, paisagens e ecossistemas e privatização de áreas comuns, majoritariamente ocupadas por comunidades tradicionais de pesca. Diversos parques estão sendo instalados em área de preservação permanente como campo de dunas, lagos, manguezais e faixa de praia (GORAYEB; BRANNSTROM; MEIRELLES, 2019). As comunidades ainda denunciam a falta de informação sobre os empreendimentos e seus impactos; ausência de consulta efetiva, com direito ao veto; poluição sonora, que vem causando problemas de audição, pressão alta, dor de cabeça, estresse e falta de sono; e exploração sexual de crianças e adolescentes no período de construção dos parques. Assim, a privatização dos territórios e os conflitos provocados pela construção de parques eólicos, que vêm transformando os “recursos renováveis” em recursos não renováveis, reflete a necessidade não só de questionar a fonte ou a tecnologia utilizada na produção de energia, mas, principalmente, os processos sociais de produção, apropriação e utilização de energia.

Ainda nesse contexto de conflitos, é reconhecido que os impactos dos projetos da indústria extrativa e de infraestrutura, relacionados, mesmo os de energia renovável, são sentidos de forma distinta por mulheres e homens. São projetos que destroem direta e indiretamente os modos de vidas das comunidades, com a contaminação do ar, da água e da terra, a propagação de doenças, escassez de água, falta de saneamento e de alimentos, resultando em uma sobrecarga de trabalho das mulheres, em especial, mulheres negras e

(6)

indígenas. Em decorrência da divisão sexual do trabalho, ou seja, a atribuição de tarefas e responsabilidades diferentes para homens e mulheres, construída através da história, são as mulheres que assumem uma carga maior com o cuidado das pessoas doentes, das crianças, dos idosos, e que necessitam garantir a alimentação e manter o trabalho doméstico em contextos de contaminação. Em muitas dessas situações, as mulheres são responsabilizadas por satisfazer as necessidades das famílias, um trabalho que é invisibilizado.

Com o aumento da demanda em torno das atividades de cuidado, de manutenção da vida, contaminada e precarizada, as mulheres, quando não perdem diretamente seus territórios, ficam sem tempo para mover suas atividades, como a agroecologia, seus quintais, suas roças, artesanatos, produção de alimentos, sobre o qual têm domínio. Assim, os projetos de infraestrutura violam a autonomia das mulheres, autonomia financeira como também a autonomia de decidir sobre o que e como produzir. São projetos que geram impactos sobre os territórios coletivos, rompem com o tecido comunitário, e ameaçam as relações comunitárias e de bem-estar das mulheres com seus territórios e a promoção da vida. Ameaçam a existência de espaços que dignificam a existência das mulheres (CABNAL, 2010). As mesmas ainda são expostas à exploração sexual em decorrência destes projetos e enfrentam maiores obstáculos para reconstruir seus meios de vida.

No entanto, apesar dessa realidade, a América Latina tem sido caracterizada como uma região rica em energia renovável, porque acumula nessas fontes, um quarto da sua oferta primaria, o dobro da média global (IRENA, 2016). No caso do Brasil, ao mesmo tempo em que o país se orgulha de utilizar altas quantidades de energia renovável para gerar energia elétrica, continuamos, como outros países da região, com altos níveis de exclusão energética. Em 2012 o governo brasileiro indicava que apenas 378 mil residências ainda estavam sem energia elétrica. No entanto, levantamento realizado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) junto às distribuidoras de energia apontou a existência de um milhão de residências ainda sem luz. A Bahia e o Pará são os estados com maior concentração de domicílios sem energia, sendo o Pará o estado com a tarifa mais cara do país. Segundo a Campanha Energia para a Vida (2019), estima-se que cerca de dois milhões de pessoas no Brasil ainda não possuam acesso constante a eletricidade, sobretudo na área rural e na região amazônica. Em termos da qualidade do serviço, estudo do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) realizado a partir de dados da ANEEL em 2018, revelou que 47% dos consumidores não recebem um serviço de energia elétrica adequado, sendo que os moradores das regiões Norte e Centro-Oeste são os mais prejudicados.

(7)

No entanto, a partir do debate sobre energia no contexto da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas e nacionalmente, diversas empresas de petróleo e de energia, passaram a criar setores ou braços de energia renovável enquanto outras prometem utilizar apenas energia renovável nas suas cadeias de produção. A Petrobras, por exemplo, não é mais denominada de uma empresa de Petróleo e sim de energia. A empresa atua principalmente na geração de agrocombustíveis e no final de 2018, anunciou uma joint-venture com a petroleira francesa Total para desenvolver projetos solares e eólicos no Brasil. A proposta é chegar a produzir até 500 MW em cinco anos (FOLHA DE SÃO PAULO, 2018). A mineradora Vale produz agrocombustíveis, e avalia condições de definir uma meta para que toda demanda por eletricidade seja atendida por meio de energia renovável, em especial solar e eólica (COSTA, 2018).

Vale ressaltar que também é possível encontrar fundos investindo em energia renovável no Brasil. É o caso, por exemplo, do Brookkfield Asset Managemet – “líder global em gerenciamento de ativos alternativos”. O fundo investe em hidrelétricas, eólicas, solar, geração distribuída e armazenamento (JUNIOR, 2019). Além disso, em um contexto em que a lógica da compensação se instalou como mecanismo central de utilização das empresas como narrativa de legitimação e criação de novos instrumentos de acumulação, deve-se atentar para a criação dos Certificados de Energia Renovável (CER). Por meio das CERs, as empresas recebem energia da forma tradicional e adquirem o volume de energia renovável equivalente ao consumo por meio de certificados. Ou seja, além de envolver grandes hidrelétricas e parques eólicos, com todos os impactos já mencionados, com este instrumento as empresas não precisam mudar sua cadeia produtiva e/ ou consumo de energia; compram o direito de continuar usando ou produzindo energia a partir de hidrocarbonetos. Na América Latina, seis países possuem fábricas cadastradas no sistema global que permite a comercialização de certificados de energias renováveis, a Plataforma Irec: México, Guatemala, Honduras, Colômbia, Chile e Brasil. No total, são 66 unidades geradoras de energia cadastradas, 37 usinas eólicas, 20 grandes e pequenas hidrelétricas, 6 usinas solares fotovoltaicas e 3 usinas de biomassa. Nos últimos quatro anos, mais de 2,6 milhões de RECs foram emitidos e comercializados na América Latina, liderados pela Colômbia e Brasil (LOPES, 2018).

Assim, trata-se de um campo que vem sendo crescentemente apropriado por grandes agentes de mercado como um instrumento de acumulação e de legitimação frente ao debate sobre mudança climática. Em outras palavras, “o eco-consenso tecnogerencial mantém que, precisamos mudar radicalmente, mas dentro dos contornos do estado da situação atual […] para que nada tenha que realmente mudar” (SWYNGEDOUW, 2013, p.3, tradução nossa).

(8)

Por outro lado, na abordagem da gestão dos comuns (FEDERICI, 2014) os processos sociopolíticos devem considerar a complexidade dos contextos históricos, políticos e econômicos. Neste sentido, o território torna-se chave para as empresas, como fonte de “recursos”, compreendido na sua relação com a sociedade e com as relações sociais de produção, que podem ser identificadas pela indústria, pela agricultura, a mineração, na circulação das mercadorias, ou seja, nas distintas formas que a sociedade se apropria e transforma a natureza (SPOSITO, 2004). No entanto, território é mais que um recurso, é identidade; é o sentimento de pertencer ao que nos pertence. “O território é a base do trabalho, da moradia, de mudanças materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi” (SANTOS, 2004, p.96). Neste sentido, envolve uma dimensão simbólica, através da identidade cultural atribuída pelos grupos sociais sobre o espaço que vivem (uma forma de apropriação) e uma dimensão mais concreta que pode ser traduzida como de caráter político-disciplinar, político-econômico e das relações sociais que acontecem nele (HAESBAERT, 1997)

Faz-se necessário, portanto, conhecer e aportar às experiências que dão a possibilidade de nos apropriarmos das políticas energéticas e conceitualizações relacionadas com os atores locais envolvidos em processos de transição energética (PARKER, 2018). Estas iniciativas possibilitam elementos para disputar e construir espaços que estimulem outros projetos energéticos em e desde os territórios, que seja mais equitativos, renováveis e participativos.

3. EXPERIÊNCIAS COMUNITÁRIAS DE GESTÃO E GERAÇÃO DE ENERGIA RENOVÁVEL NO BRASIL

No Brasil encontramos mais de 50 iniciativas comunitárias em todas as regiões brasileiras, muitas das quais envolvem, além de atividades de formação e incidência política, a instalação de unidades de tecnologias sociais em diferentes comunidades. Grande parte das iniciativas estão sendo implementadas pelo Comitê de Energia Renovável do Semiárido (CERSA) e o Projeto Semiárido Solar com o apoio da Frente por uma Nova Política Energética para o Brasil e o Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social no sertão nordestino; e pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em todas as regiões do Brasil, mas em especial no Sul. Em muitos projetos, a energia renovável é pensada no

(9)

contexto da luta contra os grandes projetos hidrelétricos, parques eólicos e a construção de um projeto energético popular. Na Amazônia, grande parte dos projetos são instalados devido à dificuldade de acesso à energia por parte das comunidades. São projetos levados adiante por organizações ambientalistas ou associações comunitárias como é o caso da Associação Comunitária de Moradores Produtores Agroextrativistas de Surucuá (AMPROSURT). A fonte de energia mais utilizada nos projetos é a solar seguida de biodigestores.

3.1 Padaria Solar e Associação de Mulheres Bolo das Oliveiras na Paraíba

As condições ambientais e climáticas da Paraíba, a quantidade e qualidade dos projetos de energia renovável em comunidades, construídos e implementados coletivamente por articulações e redes, envolvendo os distintos aspectos da problemática, em especial a formação, a instalação de tecnologias sociais em comunidades e a incidência política, faz do Estado uma região central desse debate.

Historicamente construído nos nossos imaginários como um lugar condenado, do castigo e da ausência, pensado em termos de políticas de combate à seca ou para a expansão da agropecuária e grandes obras de infraestrutura – inclusive imensos parques eólicos -, o sertão paraibano não é uma região homogênea e tem uma multiplicidade de riquezas e atividades econômicas, culturas, povos, experiências, práticas agrícolas e ambientes. Apesar das questões climáticas, e da extrema desigualdade de acesso à terra, no sertão do sertão, na comunidade Várzea Comprida dos Oliveiras na área rural do município de Pombal, encontramos um lugar construído a partir das suas riquezas, das suas comunidades, seus povos e suas mulheres. Um lugar de convivência com a seca onde um grupo de mulheres lidera iniciativas de geração de renda e de energia; de combate às causas e efeitos das mudanças climáticas; e, em defesa da caatinga.

As mulheres da Comunidade Várzea Comprida dos Oliveiras produziam bolo caseiro, feitos individualmente nas suas casas, vendidos para a própria comunidade, comunidades vizinhas e em feiras livres. Após um certo tempo, conseguiram expandir a produção e unificar o trabalho, padronizando as receitas, criando rótulo, tabela nutricional e logomarca. Em 2012, o grupo, formado por 16 mulheres na época, começou a produzir bolo para a Política Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Em 2015, conseguiram um projeto de construção de uma padaria, o que possibilitou, em 2016, a parceria com o CERSA para instalação de energia solar. O projeto Padaria Solar, gerido pela Associação de Mulheres do Grupo Bolo das Oliveiras, foi iniciado em maio de 2016 através de atividades de formação sobre mudança climática, energia renovável e o potencial solar do semiárido. A formação também contou

(10)

com capacitação técnica de jovens da comunidade para a instalação e utilização da energia solar pelos membros da comunidade.

O sistema solar da Padaria Solar, que hoje funciona com 12 placas, produz 400Kw/h de energia e tem potência instalada de 3,2 kWp, gera uma reserva de energia que é utilizada para abater o consumo em meses subsequentes ou mantida como crédito. Para complementar a produção de energia, no ano de 2018, foi instalado um biodigestor – em parceria com a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e a Incubadora de Agronegócios de Cooperativas, Organizações Comunitárias, Associações e Assentamentos Rurais da Paraíba (IACOC) – que produz o equivalente a 7 ou 8 botijões de biogás, por mês, a partir de esterco bovino, fornecendo assim metade do gás utilizado nos fornos da padaria e produzindo fertilizante.

A Padaria é atualmente conformada por 19 mulheres, funciona em uma escala de trabalho de três equipes semanais, decisão tomada coletivamente, e produz em torno de 600 quilos de produtos por semana. Desses 600 quilos, 400 são entregues para o município através da PNAE. O restante é vendido na comunidade e em feiras locais. São produzidos diversos produtos como pão, biscoito, torrada, e bolos de sabores típicos da região como milho, cenoura, mandioca e leite, muitos dos quais utilizam insumos da própria comunidade. A renda das vendas da padaria é, em parte, utilizada para cobrir os custos de produção, e o excedente é dividido coletivamente em partes iguais entre as mulheres. Até hoje não houve um mês de déficit. A energia solar ajuda a reduzir os custos possibilitando o funcionamento da padaria:

[…] não poderíamos caminhar como estamos caminhando hoje se não fosse esse projeto de implantação de energia solar na nossa padaria. Se a gente fosse pagar pela energia considerando o que consumimos, não teríamos condições financeiras de pagar. E como a nossa comunidade é muito rica nisso, no sol, o CERSA chegou para nos dar esse apoio (Glauciene Ferreira Freires, entrevista em 11 de outubro, 2018).

Além da geração de renda, da energia renovável, da economia solidária e dos outros projetos, trata-se de um processo liderado, implementado e gestionado por mulheres. Mulheres que além da carga dos trabalhos domésticos, dos cuidados com os/as filhos/as e da comunidade, participam de reuniões, formações e tocam grande parte dos projetos da comunidade. Como afirmou Freires, quando questionada sobre o significado disso:

É muito gratificante. A gente ainda vê muito a mulher ser excluída na sociedade, não ter o direito de ter uma representatividade. A gente vem trabalhando muito nisso e quando a gente vê um trabalho inspirado por mulheres, a gente sabe do zelo da mulher, principalmente quando se trata de alimentos. A mulher tem um zelo, tem um cuidado, tem uma curiosidade, A cada dia que tem um curso a mulher tem curiosidade de ir lá para saber o que está acontecendo, das novidades. Por isso que

(11)

valorizamos muito isso, o trabalho da mulher e estarmos juntas (Glauciene Ferreira Freires, entrevista em 11 de outubro, 2018).

Os processos de gestão coletiva e articulação entre as comunidades e as diversas parcerias são cruciais para a manutenção e o fortalecimento da luta dessa comunidade. Assim, é importante destacar, como ponto de partida, o nível elevado de auto-organização comunitária. Um grupo de mulheres que acreditam no seu trabalho e no seu lugar – tanto em termos individuais, do coletivo, como da sua comunidade, no sertão: “somos da agricultura familiar, pessoas do campo, de cidades isoladas do alto sertão, lá longe que você nem imaginaria estar aqui. Somos pessoas que temos ideias, projetos e objetivos” (Maria Solange de Oliveiras Matos, comunicação oral, 11 de outubro, 2018).

3.2 O Projeto Alto Uruguai e o MAB: construindo um projeto popular energético

O projeto “Alto Uruguai: cidadania, energia e meio ambiente”, surgiu como uma demanda do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e foi construído em parceria com a Eletrobrás, Eletrosul, Universidade Comunitária Regional de Chapecó (Unochapecó), o Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e com as prefeituras de 29 municípios da região de abrangência do projeto, sendo 10 do Estado do Rio Grande do Sul e 19 de Santa Catarina, na região sul do Brasil.

Iniciado em 2003 e lançado em maio de 2004, o objetivo era transformar estes 29 municípios em “modelo de produção e consumo sustentável de energia”. O projeto foi pensado em torno de três eixos de ação: conservação da energia elétrica; utilização de fontes alternativas de energia, com ênfase na proteção ambiental; e a universalização do acesso à energia elétrica aos habitantes da região do Alto Uruguai. Em 2009, foram instaladas 10 unidades de biodigestores para gerar energia a partir de dejetos da suinocultura na comunidade de Santa Fé do Baixo em Itapiranga, Santa Catarina. Também foi assinado um termo de compromisso para geração de energia elétrica entre a Eletrosul e a Associação de Defesa da Cidadania, Energia e Meio Ambiente - Bioenergia, coordenada pelo MAB e onde todos os beneficiários estão associados. Outros 25 biodigestores foram instalados em outros municípios, encerrando o Projeto Alto Uruguai I (BRACIER, s/d).

O MAB vem acompanhando a instalação e funcionamento das 10 unidades de biodigestores no município de Itapiranga, na comunidade de Santa Fé Baixa. Na comunidade, existem 42 famílias e 23 propriedades agrícolas, com produção de aves, suínos e leite, e lavoura para subsistência. Esperava-se que a segunda fase do Projeto, da geração de energia

(12)

elétrica, fosse implementada logo após a instalação dos biodigestores, em 2010 (Furtado, 2019). Vale ressaltar, no entanto, que o projeto foi construído em uma determinada conjuntura política, durante a qual predominava uma orientação do governo federal do Partido dos Trabalhadores (PT) de priorizar as interlocuções com alguns movimentos sociais do campo, e, portanto, disponibilizar recursos para determinados projetos. Assim, o Movimento aproveitou as políticas públicas sendo implementadas, tais como o Programa Luz para Todos, para pautar as suas demandas no escopo do Projeto. Foi possível integrar as ações de diferentes formas de energia. As transformações na conjuntura como as mudanças de governo no próprio PT, mas em especial depois do impeachment parlamentar da Presidenta Dilma Roussef em 2016, foram representando maiores obstáculos à continuidade do projeto. No momento atual, o MAB busca a revitalização dos biodigestores existentes e a instalação de uma central de biodigestores que resultará na geração e distribuição de energia elétrica para a comunidade.

O projeto Alto Uruguai surge por dois motivos. Primeiro porque a comunidade de Santa Fé Baixa foi e é ameaçada pela hidrelétrica de Itapiranga. Planejada desde a década de 1930, o projeto Itapiranga foi retomado na década de 1970 e, em 2002, os estudos de impacto ambiental foram refeitos para que, então, cinco anos depois, a obra fosse incluída dentro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo do Partido dos Trabalhadores (PT). A obra - alvo da resistência do MAB e das aproximadamente duas mil famílias de pequenos agricultores potencialmente atingidos - deveria ter sido concluída em 2017, mas foi prorrogada por tempo indefinido. Seria localizada no Rio Uruguai, entre os municípios de Itapiranga/Santa Catarina e Pinheirinho do Vale/Rio Grande do Sul, cuja área alagada abrangeria outros sete municípios. Teria capacidade instalada de 724 MW e potência prevista de 936 MW (MAB, 2013).

O segundo motivo foi demonstrar a existência de outras formas de produzir energia, a partir das realidades locais. A produção animal é uma atividade de alto impacto ambiental, pelo grande volume de resíduos gerados como pela emissão de gases poluentes, odores e particulados. A degradação biológica do material orgânico (fezes, urina, ração e outros) produz gases tóxicos que afetam a saúde e bem-estar humano e animal e agrava as mudanças climáticas.

O MAB é um movimento popular que além de atuar junto às populações atingidas por barragens no Brasil na garantia dos seus direitos, questiona o modelo energético, “pautando a necessidade da sociedade avançar na transição energética para a construção do projeto energético popular” (MAB, 2017, p.7). Entre as questões colocadas pelo movimento está o processo através do qual o discurso da sustentatibilidade, da necessidade de reduzir as

(13)

emissões de GEE e da diversificação da matriz energética vem sendo apropriado pelo capital, reproduzindo a lógica mercadológica e favorecendo os grandes negócios do setor energético. Está em contradição com a necessidade de criar uma autonomia de produção e consumo de energia, de forma sustentável e mais eficiente. O MAB questiona a noção de que essas energias “alternativas”, como as hidrelétricas, são limpas, baratas e renováveis. Para o movimento, a construção de um projeto energético popular passa por uma discussão que vai além da questão da matriz e das tecnologias: trata-se de construir um projeto de sociedade e modelo de produção de energia voltado para a garantia do bem-estar social (2017).

Apesar dos problemas encontrados no projeto em decorrência da atuação da Eletrosul, empresa pública que não só cortou o financiamento como, em distintos momentos, tentou negar o saber popular dos agricultores e se apropriar do projeto, ele demonstra que há regiões onde a produção de energia elétrica pode ser feita a partir de fontes diferenciadas. Outro aprendizado importante do projeto, é a construção coletiva e a interação sócio-estatal: empresa pública, movimento popular, universidade, prefeituras, escolas e outros segmentos da sociedade civil. O importante é compreendermos a produção de energia para além do planejamento estatal ou como processo a ser implementado por entes públicos ou privados. A geração e o consumo de energia deve ser uma decisão da sociedade. As populações atingidas pela produção de energia devem fazer parte da construção da solução das suas demandas; poder decidir localmente ou regionalmente quais os problemas ambientais e as possibilidades da produção de energia de uma maneira adequada e diversa. Ou seja, processos de transição energética justa não se limitam a apresentar mudança nas fontes de energia renovável, mas de conceber a energia como uma necessidade e um direito. Além disso, têm como diretriz a participação e a democratização (GARCIA E MUNDÓ, 2014; BERTINAT, 2016).

3.3 Agroindústria Solar da Comunidade Surucuá no Rio Tapajós: recuperando a alimentação tradicional

Esse projeto consiste na implantação de uma miniusina fotovoltaica para estruturação de agroindústria de beneficiamento de polpas oriundas dos quintais agroecológicos da Comunidade Surucuá no município de Santarém no estado do Pará. A Comunidade está localizada na margem esquerda do Rio Tapajós, na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, há aproximadamente 6 horas de Santarém de barco, o único meio de acesso. É composta por 110 famílias ribeirinhas que sobrevivem do agroextrativismo - da pesca, do extrativismo de frutas e da agricultura, em especial da mandioca, mas também milho, feijão, cará, batata, jerimum e batata-doce. O projeto é gerido pela Associação Comunitária de Moradores Produtores

(14)

Agroextrativistas da Surucuá (AMPROSURT), em especial o Grupo de Agroecologia, formado por 12 mulheres da comunidade. Como a comunidade não está inserida na rede de energia elétrica local, a miniusina viabilizou a instalação da pequena agroindústria.

A região da Bacia do Tapajós apresenta uma grande quantidade de comunidades ribeirinhas e indígenas que sobrevivem a partir da agricultura e da exploração e manejo dos “recursos naturais” dos rios e matas. A população convive e depende da natureza para garantir a sua produção e reprodução material e cultural. Por um lado, é uma população que, na sua grande maioria convive com pressões do agronegócio, mineração e grandes projetos de infraestrutura e, por outro lado, com a falta de infraestrutura de saneamento básico, tratamento de água, coleta de lixo, energia e precariedades no acesso à educação e saúde (FURTADO, 2019).

Apesar de ser cercada por hidrelétricas – Tucuruí e Belo Monte – e ameaçada por outro projeto – São Luiz do Tapajós - a Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns, localizada no município de Santarém do Pará, não tem acesso à energia elétrica. O Pará é o Estado com a energia mais cara do país e que está sendo impactado negativamente pela implantação de grandes barragens. Para intensificar a situação, grande parte da energia gerada por estes empreendimentos é distribuída para outras regiões, deixando sem acesso à energia várias comunidades, como é o caso da Resex, que possui 75 comunidades, 3500 famílias, mais de 15.000 pessoas (FURTADO, 2019). A luz chega às comunidades, como é o caso de Surucuá, por meio de geradores a diesel, mantidos pelas associações locais ou por proprietários privados.

A instalação da agroindústria, tem como objetivo recuperar e fortalecer a alimentação tradicional, processo que vem sendo transformado a partir da entrada de alimentos industrializados, vindos de Santarém. A energia solar, portanto, tem viabilizado o beneficiamento e o acondicionamento da grande quantidade e diversidade de produtos oriundos da coleta da floresta e dos quintais cultivados, que pela ausência de fornecimento de energia elétrica, não eram utilizados. Os produtos elaborados na agroindústria são: polpa de cupuaçu, polpa de manga, polpa de murici, polpa de caju, polpa de buriti, óleo de buriti, óleo de pequiá, castanha de caju e empacotamento de farinha de mandioca. Mayá Shwade, assessora da comunidade, também levantou outra questão: a produção de farinha de mandioca exige um trabalho intenso das mulheres e crianças e gera pouca renda (em entrevista, 26 de jan. 2019). Após capacitação, as famílias passaram a seguir padrões de higiene e qualidade na produção e com o ensacamento na agroindústria puderam aumentar o valor de venda de R$ 2 para R$ 3,50 o quilo. Atualmente, 14 famílias produzem cerca de 100 quilos por semana.

(15)

Como a Comunidade de Surucuá não é contemplada pelos programas governamentais de acesso à energia em decorrência da sua localização, a garantia de energia ininterrupta é uma reivindicação antiga da comunidade. Ter energia representa “ter um conforto a mais”, “poder beber uma água gelada, um suco gelado no verão que é tão quente”, “guardar nossos alimentos porque aqui, quem não tem geladeira para guardar, a gente passa o sal, tem que salgar e isso prejudica saúde” como também para “ficar informadas sobre as coisas do mundo, sobre a atualidade porque muitas vezes as coisas acontecem e a gente nem fica sabendo”. A energia nesse caso também representa melhoria na alimentação e qualidade de vida e renda das famílias. Ao mesmo tempo, afirmam que “queremos uma energia limpa, que não prejudique os nossos rios”, pois reconhecem que a energia “vai trazer coisas boas, mas vem também as consequências. Por isso que a do sol é melhor” (em entrevista coletiva, 26 de jan. 2019).

A ausência de energia gera diversos problemas para as comunidades como a impossibilidade de melhorar os sistemas produtivos através do armazenamento e, portanto, a comercialização com melhores preços e assim renda. Dificulta também o processo educacional já que não é possível utilizar ventiladores em sala de aula no verão, representando um obstáculo ao aprendizado ou realizar aulas noturnas, por exemplo.

Apesar de não ter sido o objetivo inicial, a criação desse grupo de mulheres, que recentemente criaram uma cooperativa, tem sido fundamental para as mulheres. Elas vêm se apropriando da questão de gênero quando percebem, por exemplo, que é importante “mostrar para a sociedade que as mulheres estão se capacitando, estão em busca de melhorias e que o marido também pode compreender. Foi um grande avanço para a nossa comunidade”. Ou ainda quando percebem o efeito do processo de participação das mulheres na sua própria autoestima: “tenho certeza de que todas as mulheres que estão no grupo estão mais confiantes”. “Estamos muito empenhadas e unidas e assim a coisa anda” (Grupo Agroecologia, em entrevista coletiva, 26 de jan. 2019). Afinal, “as mulheres se preocupam mais com a alimentação. O homem não se preocupa muito em casa, com os filhos…” (Schwade, em entrevista, 26 de jan. 2019).

Schwade (2019) também ressaltou que “criou-se uma consciência de grupo, acreditar em um projeto que não é meu, mas do grupo. Esse grupo criou isso que vai além do trabalho, tem essa coisa de ajuda, de cooperação, de se interessar uma pela outra. É essa consciência de grupo que deu a liga e continua até hoje” (em entrevista, 04 de mar. 2019).

Nesse sentido, trata-se de um projeto que colabora à narrativa e práticas voltadas para o fortalecimento de comunidades, a autonomia e autodeterminação das mesmas, a geração de

(16)

renda e processos de construção, geração e apropriação coletiva de energia. As e os agroextrativistas, ribeirinhos da Comunidade de Surucuá estão se apropriando coletivamente de um “bem” do qual esse grupo social historicamente discriminado e despossuído tem sido privado, transformando-o em um meio para fortalecer a sua autonomia e auto-determinação.

4. CONCLUSÕES

Nesse artigo buscamos discutir a noção de energia renovável a partir de uma caracterização do campo de forças envolvido na construção de políticas e projetos relacionados. Se por um lado a expansão da fronteira energética convencional (petróleo, gás, etc.) através de novas e velhas tecnologias e formas de produção permite que corporações continuem avançando sobre territórios, por outro, a noção de energia renovável vem sendo apropriada por corporações que, com ela, se legitimam e expandem o controle sobre o mercado energético. Isso significa a sustentação de uma lógica de centralização e apropriação privada da geração e transmissão energética, e um aprofundamento dos conflitos ambientais. Estruturalmente, reproduzem a lógica hegemônica de desenvolvimento como um caminho linear, uma trajetória progressista julgada segundo os critérios das nações industrializadas ocidentais, que todos os povos do mundo devem seguir e aspirar, tendo como um dos seus símbolos, o permanente e irrestrito consumo de energia.

Ao mesmo tempo que isto acontece, diversas comunidades disputam esse cenário, construindo seus projetos de energia renovável, com diferentes métodos e fins. Este contexto revela a existência, antes de tudo, de uma disputa narrativa. Disputa em torno do significado atribuído à energia e à energia renovável. No caso da energia renovável, aquela que “vem de recursos naturais que são naturalmente reabastecidos”, possibilita que as hidrelétricas sejam consideradas renováveis, porque a água é naturalmente reabastecida. As eólicas, também, os ventos não se esgotam. Somente com estes argumentos, são ocultados diversos impactos destes projetos: contaminação da água, extinção de peixes, perda de territórios e identidade de ribeirinhos, camponeses, entre outros. Ou seja, para a energia ser renovável, não basta a sua fonte ser renovável se a sua construção e implementação tem efeitos negativos.

Assim, podemos afirmar que energia renovável não se traduz em democracia energética; não significa acesso igualitário e justo à energia. O projeto precisa respeitar o meio ambiente e contribuir para garantir, sem ser através de mecanismos privados de mercado apenas, e de forma universal e justa, o acesso energético à população. Neste sentido, o projeto deve ser para o benefício e propriedade coletiva e/ou pública, e deve estar regido por um processo democrático e não discriminatório, tanto entre seus membros como na relação com

(17)

suas comunidades. Esse tipo de projeto está em sintonia com a perspectiva mais geral sobre soberania, justiça e democracia ambiental e energética, desde a concepção de que a energia é um direito, de benefício coletivo e produzida de forma justa. Isso interagindo e dialogando com outras frentes de luta como a soberania alimentaria e tecnológica.

Se por um lado existem diversas políticas para incentivar a atuação de grandes empresas nos setores da indústria extrativa – do agronegócio, da mineração, petróleo e grandes projetos de infraestrutura – existem poucas políticas para promover energia renovável em comunidades. Os governos legitimam a indústria extrativa como importante para o desenvolvimento nacional ao mesmo tempo em que destroem as leis ambientais e violam direitos humanos. Políticas que permitem o avanço da fronteira energética e da energia extrema, em um contexto de intensificação da desigualdade e da “exclusão” energética.

Há também uma perspectiva individualizada que estrutura e sustenta as políticas dominantes e a atuação do Estado, que ou destrói o que é comunitário, torna estes modos de vida inviáveis ou dificulta o acesso às políticas por parte de comunidades que objetivam o fortalecimento de lógicas coletivas, comunitárias. O vínculo entre tecnologia-poder-capital é central quando consideramos que, apesar da existência de linhas de financiamento, por exemplo, as comunidades encontram obstáculos no acesso. As condições, os critérios e o processo burocrático para acessá-los, favorece projetos de médio e grande porte ou empresas.

Vale ressaltar que nos casos aqui descritos, a energia gerada está ligada a processos de geração de renda, de produção agroecológica e de outras frentes de luta, por exemplo, contra hidrelétricas, parques eólicos e pela convivência com o território. A energia não é o fim em si mesmo. Assim sendo, estas iniciativas não produzem grandes quantidades de energia, mas estão colaborando em um processo de disseminação e aprofundamento do debate sobre desenvolvimento, meio ambiente, mudança climática e energia. São projetos que buscam gerar renda, mas também melhorar a alimentação e qualidade de vida das comunidades. E nesse contexto, percebemos que a gestão dos projetos, sempre coletiva, está baseada no tempo das mulheres, em grande parte responsabilizadas pelo trabalho doméstico e de cuidados. É a partir destes projetos que as mulheres passam a realizar atividades organizativas e de tomada de decisões e que passam a questionar as relações de gênero na sociedade, de forma coletiva e pública. São formas de restabelecer sua posição social dentro da comunidade assim como desafiar as estruturas de dominação na sociedade como um todo.

Por fim, são processos coletivos que buscam demonstrar que os projetos hegemônicos de energia não são necessários porque causam conflitos, impactos ambientais irreversíveis e privatizam os lucros enquanto socializam os custos econômicos, sociais e ambientais.

(18)

Demonstram que é possível produzir energia de outra forma, um direito, a partir das demandas e potencialidades locais, de transformar problemas ambientais em soluções, de construir metodologias de trabalho coletivas. Assim, mais que conceitualizar a energia como um produto físico ou de capital, o importante é considerar a problemática como uma relação social, para a qual é necessário fazer preguntas de ordem estratégica que guie a análise de ação: porque produzimos energia? Para quem produzimos energia? E pra quê? Em função de que necessidade? De que forma? Quem é responsável pela sua gestão, quem decide e quem controla o processo? A geração e distribuição de energia é pensada desde que visão de mundo? Essas perguntas nos possibilitam pensar a transição energética de forma crítica, considerando as relações de poder, trabalhistas, de gênero, e raça; o uso que se faz da energia; os impactos que gera sobre os territórios e populações; sua relação com outras políticas públicas, não só de energia, mas também ambientais, sociais, de direitos humanos; e também ter a capacidade de disputar as narrativas e políticas em torno do que é energia, o que é renovável, resgatando o público e os comuns.

REFERÊNCIAS

ACSELRAD, Henri (org). Políticas Territoriais, Empresas e Comunidades: o neoextrativismo e a gestão empresarial do “social”. Rio de Janeiro: Garamond, 2018.

AGUIAR, Diana. A geopolítica de infraestrutura da China na América do Sul: um estudo a partir do caso do Tapajós na Amazônia Brasileira. Rio de Janeiro: Act!onaid e FASE, 2017. BERTINAT, Pablo. Transición energética justa. Pensando la democratización

energética. 2016. Análisis nº1. Buenos Aires: Fundación Friedrich Ebert.

BRACIER. Projeto Alto Uruguai está perto de iniciar segunda fase. (s/d). Disponível em: http://www.bracier.org.br/noticias/brasil/2975-projeto-alto-uruguai-esta-perto-de-iniciar-segunda-fase.html. Acesso em out.2020.

CABNAL, Lorena. Feminismo diversos: El Feminismo Comunitario. ACSUR: Las Segovias, 2010.

CAMPANHA ENERGIA PARA A VIDA. Feira Inédita na Amazônia Apresenta Soluções

Energéticas para Comunidades Isoladas. 2019. Disponível em:

http://energiaparavida.org/feira-inedita-na-amazonia-apresenta-solucoes-energeticas-para-comunidades-isoladas/. Acesso set. 2020

COSTA, Luciano. Vale avalia meta de 100% de energia renovável em suas operações, diz

(19)

https://extra.globo.com/noticias/economia/vale-avalia-meta-de-100-de-energia-renovavel-em-suas-operacoes-diz-fonte-23130190.html. Acesso em set. 2020.

EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA. Balanço Energético Nacional. Brasília: EPE, 2018. Disponível em: http://epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/balanco-energetico-nacional-2018. Acesso em mar. 2019.

FEDERICI, Silvia. O Feminismo e as políticas do comum em uma era de acumulação primitiva. In Monteiro, Renata (Org.). Feminismo, Economia e Política. Debates para a

construção da igualdade e autonomia das mulheres. São Paulo: SOF Sempre Viva

Organização Feminista, 2014.

FEARNSIDE, Philip. Hidrelétricas como “Fabricas de metano”: O papel dos reservatórios em áreas de floresta tropical na emissão de gases de efeito estufa”. Oecologia Brasiliensis 12(1): 100-115. Disponível em: http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/2008/Hidreletricas %20fabricas%20de%20metano.pdf. Acesso em mar. 2020.

FOLHA DE SÃO PAULO. Petrobras e francesa Total criarão empresa de energia

renovável no Brasil. União prevê a geração de 500 megawatts em projetos eólicos e solares

em 5 anos. 21 de dez. 2018.

FURTADO, Fabrina. Mapeo de proyectos de generación y/o fabricación de energía

renovable a escala local. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2018.

GARCIA, Marta e Mundó, Joana. La energía como derecho. Cómo afrontar la pobreza

energética. 2014. Disponível em: http://www.tercersector.cat/sites/ www.tercersector. cat/files/dossier_la_energia_como_derecho._como_afrontar_la_pobreza_energetica_0.pdf. Acesso em nov. 2020.

GORAYEB, Adryane; BRANNSTROM, Christian; MEIRELLES, Antonio Jeovah de

Andrade (org). Impactos socioambientais da implantação de parques de energia eólica no

Brasil. Fortaleza: Edições UFC, 2019.

HAESBAERT, Rogério. Des-territorialização e identidade: a rede “gaúcha no

nordeste”. 1997. Niterói: EdUFF.

HARDING, Sandra. Existe un método feminista? 1998. Disponível em:

https://urbanasmad.files.wordpress.com/2016/08/existe-un-mc3a9todo-feminista_s-harding.pdf . Acesso em jul. 2020.

IBGE. Censo 2010. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php? dados=P13&uf=00. Acesso em set. 2020.

IDEC. Programa de energia e sustentabilidade. Avaliação da qualidade do serviço de

fornecimento de energia das Concessionárias e Permissionárias Brasileiras. São Paulo:

(20)

INTERNATIONAL ENERGY AGENCY (IEA). Energy Balances 2019. 2020. Disponível em: https://webstore.iea.org/download/ direct/2710?filename=world_energy_balances_2019_ overview.pdf. Acesso em out. 2020

INTERNATIONAL RENEWABLE ENERGY AGENCY (IRENA). Renewable energy

market analysis. Latin America. 2016. Disponível em:

http://www.irena.org/-/media/Files/IRENA/Agency/Publication/2016/IRENA_Market_Analys is_Latin_America_2016.pdf?

la=en&hash=6D59BCB8265FBECCE7FC2992C38458E1FF6796C6. Acesso em nov. 2020. JUNIOR, Orlando Aleixo de Barros. Real Estate Caipira: investimento em terras pelo Brookfield Asset Management Ic. Dissertação de Mestrado apresentada ao CPDA. Rio de Janeiro, 2019.

LOPES, Fernando Giachini. Cresce a Demanda por Certificados de Energia Renovável na América Latina. Pagina 22. 2018. Disponível em:

https://pagina22.com.br/2018/10/02/cresce-demanda-por-certificados-de-energia-renovavel-na-america-latina/. Acesso em set. 2020.

O GLOBO. Megaleilão do pré sal tem 14 empresas interessadas. Saiba quais são. Disponível em: https://ineep.org.br/megaleilao-do-pre-sal-tem-14-empresas-interessadas-saiba-quais-sao329194/. 1 Out. 2019. Acesso em nov. 2020.

OILWATCH LATINOAMERICA. Extremas: nuevas fronteras del extractivismo energético em América Latina. Disponível em http://www.oilwatchsudamerica.org/images/stories/2017 _boletin_Extrema.pdf. Acesso em ago. 2020.

PARKER, Cristian. Transición energética y actores locales: una aproximación conceptual. In. BAIGORROTEGUI, G., PARKER, C. (eds). ¿Conectar o desconectar? Comunidades

Energéticas y transiciones hacia la sustentabilidad. Santiago de Chile:173-196, 2018.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. De Caos Sistêmico e De Crise Civilizatória: Tensões Territoriais Em Curso. Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral/CE, v. 22, n. 2, p. 103-132, Ago. 2020

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência

universal. Rio de Janeiro: Record, 2004.

SWYNGEDOUW, Erik. The Non-political Politics of Climate Change. ACME: An

International Ejournal for Critical Geographies. Vol. 12, n. 1, 2013. p.1-8

SPOSITO, Eliseu. Geografia e filosofia: contribuição para o ensino do pensamento

Geográfico. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

UNFCCC. Accelerated Action on Energy Needed to Implement Paris. UNFCCC, 2017. Disponível em: https://unfccc.int/news/accelerated-action-on-energy-needed-to-implement-paris. Acesso em jul. 2020.

Referências

Documentos relacionados

Em algumas empresas, os objetivos de negócios, incluindo os Projetos Sociais, que dão base para as decisões sobre o início de um projeto, são tratados fora do escopo do projeto,

A Decision and Order will be prepared by the Review Committee after the closing of the record, which will include a summary of the case, including the positions of the

Figura 41 – Cronograma do detalhamento da agenda SEMANAL do candidato Fonte: COMANDO POLÍTICO PSDB, 2002. A agenda do candidato é a peça principal

projeto pode apresentar uma representação diferente deste ciclo.. independente de como o ciclo de vida esteja representado, cada fase. caracteriza-se pela entrega

Os processos do Gerenciamento de Projetos podem ser agrupados em cinco grupos, cada um deles contendo um ou mais processos, que são ligados entre si pelos resultados que

O presente trabalho refere-se a um estudo que trata sobre a gerência das comunicações em projetos que envolvem consórcios de empresas, demonstrando a importância

Foram identificadas na pesquisa realizada quatro razões fundamentais para instalação dos escritórios de projetos na Empresa. a) A principal razão foi, segundo os entrevistados,

Trata do gerenciamento dos interessados no que diz respeito a comunicação do projeto; a ação do proativa aumenta a probabilidade do projeto não se desviar do