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CAPÍTULO 2 A Seconda pratica

55 COELHO, 2000 56 PALISCA, 1989.

2.7 Ária versus Recitativo

As recém reinventadas monodias pela Seconda Pratica foram rapidamente incorporadas pelo emergente gênero teatral-musical operístico, desenvolvido em grande parte, pelo menos nesta primeira fase, pelos próprios músicos e teóricos da Camerata

Fiorentina. Os termos dramma per musica (drama musical) ou mesmo favola in musica

(fábula musical) também fazem menção a este gênero de teatro musicado. É neste contexto que vemos o surgimento de óperas como “Dafne” (1594) de Jacopo Peri e libreto de Ottavio Rinuccini, “Euridice” (1600) também de Peri e Rinuccini, e “Orfeu” (1607) de Claudio Monteverdi e libreto de Alessandro Striggio. Um dos principais intuitos no desenvolvimento deste gênero de teatro musical está relacionado à busca pela recriação do teatro musical da Antiguidade. Segundo Grout e Palisca:

Embora as primeiras peças do gênero a que hoje damos o nome de

ópera apenas datem dos últimos anos do século XVI, a ligação entre música e teatro remonta à antiguidade. Nas peças de Eurípedes e Sófocles eram cantados, pelo menos, os coros e algumas partes líricas. Eram também cantados os dramas litúrgicos medievais (...). No teatro do Renascimento, em que tantas tragédias e comédias imitavam os modelos gregos ou a eles iam buscar inspiração, os coros eram por vezes cantados, em especial no início e no final dos atos. (GROUT; PALISCA, 2007, p. 316).

Neste sentido, pode-se constatar que a busca por uma maneira de unir o espetáculo teatral com a linguagem musical já vinha sendo explorada desde a Antiguidade Grega e com incidências importantes na Idade Média e no Renascimento. No período Barroco, o gênero operístico ganha força com muita rapidez consolidando- se como um dos mais importantes gêneros musicais teatrais dos próximos quatro séculos.

Assim, passou-se a retratar com música, cena e palavra uma história elaborada, de modo que o libreto, texto poético da história a ser contada e cantada, viria a ser fruto de um trabalho literário, realizado na maioria das vezes por um escritor e não

pelo compositor da música. Por se tratarem, já desde o início, de gênero de histórias longas e elaboradas, naturalmente surgiriam necessidades narrativas específicas e é nesse contexto que vemos emergir a separação entre o momento da ária e o momento do recitativo na narrativa operística.

No âmbito da articulação da narrativa na Ópera, em um processo paulatino que durou mais de um século, o Recitativo configurou-se como o momento em que o canto mais se aproxima da fala, sendo vital na “vazão” de grandes excertos de texto e no desenvolvimento das ações das personagens, em oposição a ária, onde o canto distancia- se da fala, debruça-se sobre os indizíveis encantamentos da música e desenvolve, na maioria das vezes, os aspectos emocionais do texto sendo guiado por uma força muito mais musical do que textual.

Nesse sentido, retomando as ideias e discussões expostas no Capítulo 1, é possível constatar um certo simulacro da dicotomia fala/canto na própria estrutura dramática da ópera. Não à toa, ao compararmos o comportamento vocal na ária e no recitativo, vemos que no recitativo o canto é ritmicamente mais livre, com ênfase na pronúncia de um grande número de palavras sendo, portanto, um canto mais articulado e próximo da fala. No caso da ária, a expressividade da voz como instrumento musical é privilegiada, o aspecto rítmico passa a ser mais estável e o tratamento melódico passa a abarcar ornamentos e coloraturas, tudo em função da expressão afetiva e emocional em música de uma reflexão individual da personagem em determinada circunstância da história.

Fora do contexto da ópera também se nota a presença de alguns gêneros musicais nos quais existe uma separação, na estrutura narrativa poético-musical, entre árias e recitativos, como no caso das cantatas, por exemplo. Gênero poético-musical similar ao gênero operístico, diferencia-se da ópera sobretudo em seu caráter mais intimista e a ausência de aspectos teatrais como figurino e encenação, sendo muitas vezes de inspiração religiosa. Uma importante figura no desenvolvimento do gênero foi o compositor Johann Sebastian Bach, tendo escrito mais de duzentas cantatas ao longo de sua vida. Uma delas, em especial, chama-nos a atenção devido à maestria de Bach da condução narrativa em música.

Na Paixão Segundo São João (BWV 245) (1723), J. S. Bach narra o texto bíblico da Paixão de Cristo segundo o Evangelho de João, se utilizando para isso, na forma de sua composição, de uma série de abordagens poético-musicais distintas:

recitativos, árias, coros e turbas69. Nesse sentido, uma das características mais notáveis da produção musical de Bach está em sua apropriação de gêneros e estilos muito anteriores à sua época, como a Fuga, por exemplo, e principalmente o Recitativo, reinventado pelos compositores da Camerata Fiorentina cerca de 120 anos antes da estreia da “Paixão segundo S. João”.

Na condução narrativa da Paixão, a figura central é o Evangelista, o narrador, aquele que o tempo todo canta contando por meio dos Recitativos o que se passa na história. As árias são reservadas para os momentos de reflexão individual de certo personagem, com foco sobretudo em seu aspecto emocional, sem de fato apresentar novas ações na história. Portanto, o Evangelista não canta nenhuma ária, seu papel na Paixão é marcado sobretudo pela ideia de imparcialidade, com exceção de um momento.

O momento em questão trata-se do episódio em que o personagem Pedro nega por três vezes ter conhecido Jesus, conforme nos mostra a partitura deste excerto na figura 15. Nele, o texto cantado pelo Evangelista é o seguinte: “... de novo Pedro negou, e imediatamente cantou o galo. E então Pedro, lembrando as palavras de Jesus, saiu e chorou amargamente” 70.

Bach propõe que o Evangelista no fim deste excerto abandone momentaneamente o seu tratamento objetivo e imparcial de narrador ao mencionar que Pedro chorou amargamente ao negar Cristo. Esta mudança de abordagem por parte do Evangelista dá-se diretamente na maneira de cantar. O que ocorre é que, no meio da passagem musical, no momento exato após ter dito que Pedro saiu, o andamento do excerto e o tratamento melódico do recitar do Evangelista se modificam abruptamente. O recitar do Evangelista abandona o canto silábico (uma nota por sílaba) e passa a executar uma melodia de notas longas, com várias notas por sílaba, tratamento melódico comum às arias e não aos recitativos, sob o texto “e chorou amargamente”.

69 A turba trata-se de um coro que representa um grupo de pessoas envolvidas diretamente na trama. No

caso da Paixão segundo S. João de Bach, representam muitas vezes o povo, os fariseus ou os sumos- sacerdotes. Essa informação foi adquirida no decorrer da disciplina “Tópicos Especiais em História e Literatura Musical”, ministrada pela Professora Helena Jank no Curso de Pós-Graduação em Música da UNICAMP.

Figura 14: “e Pedro chorou amargamente”, excerto de um Recitativo da Paixão Segundo São João de J. S. Bach.

Fonte: <imslp.org>

Com isso, vemos proposto por Bach um momento de fusão das polaridades narrativas já na época sedimentadas: do Recitativo para a Ária, sem maiores preparações. No excerto, vemos no canto do Evangelista a transição do recitar para o lamentar na mesma passagem, do recitativo para uma espécie de arioso; um momento genial de rompimento das convenções dramático-narrativas em música que, em poucos segundos e absolutamente justificada pelo texto poético, transita entre os extremos de uma das faces que o mundo dialético na música nos apresenta: da fala ao choro (pois não é o choro, também um canto?).

CAPÍTULO 3