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CAPÍTULO 2 A Seconda pratica

2.2 A Prima Pratica

O termo Seconda Pratica nos oferece um panorama ainda mais claro de seus ideais e de suas experimentações harmônicas quando visto como antagonista de seu momento antecessor: a Prima Pratica. Como eixo central deste antagonismo, vemos duas possíveis relações hierárquicas entre texto e música: ora a música domina o texto, ora o texto domina a música.

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José Miguel Wisnik, em seu livro “O som e o sentido” tenta realizar uma síntese desse processo: “Da renascença para o Barroco, a música não se contenta em ser um código de caráter polifônico, mas quer ser uma verdadeira linguagem dos afetos, um discurso das emoções. Os madrigais e o melodrama barrocos assumirão um estilo expressivo, declamatório, climatizando os recursos melódicos e harmônicos, as consonâncias e dissonâncias com uma gesticulação entoativa a serviço da ênfase nas palavras. Essa ênfase vai investir o sistema tonal nascente de uma carga semântica para a qual ele contribuirá com suas cadências e sua capacidade de articular com riqueza de nuances as tensões e os repousos” (WISNIK, 1989, p. 127).

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LUCAS, 2010, p. 31.

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Na Prima Pratica, caracterizada pela música vocal polifônica do Renascimento, impera o preceito de que a música domina o texto cantado e tem nos compositores Giovanni Pierluigi da Palestrina (1526 – 1594), Adrian Willaert (c.1490 – 1562), Giovanni Gabrieli (c. 1554/1557 – 1612) e Luca Marenzio (1553 – 1599) e nos teóricos Zarlino e Artusi, conforme já vimos, representantes de sua produção teórica e artística. Também conhecido como “stile antico” (estilo antigo), este estilo é caracterizado por sua escritura contrapontística a muitas vozes. Vejamos a figura 8 que apresenta um excerto do madrigal “Amor, Fortuna” a quatro vozes do compositor italiano Giovanni Pierluigi da Palestrina.

Figura 7: Excerto de “Amor, fortuna” de Palestrina Fonte: <imslp.org>

Neste madrigal, Palestrina se utilizou do poema homônimo do escritor italiano Petrarca para compor sua música. Vejamos que, ao contrário do início do madrigal “Cruda Amarilli”, esta peça apresenta cada voz em forma de cânone, ou seja, desde o início da composição existe uma defasagem rítmica entre as vozes. Sintomaticamente, notamos que neste excerto praticamente não há trechos do texto cantados concomitantemente em mais de uma voz. Além disso, vemos também um precioso rigor na escrita contrapontística, em especial ao tratamento das dissonâncias em fase com as postulações teóricas de Zarlino. Vejamos o seguinte excerto:

Figura 8: compassos 7 e 8. Dissonância preparada no madrigal de Palestrina. Imagem recortada da figura

anterior, por isso a ausência das claves.

Coincidentemente, neste caso, assim como no caso de Monteverdi, vemos um momento onde há uma nota Lá sendo cantada pelo soprano (circulada em vermelho) enquanto o baixo canta a nota Sol, novamente uma dissonância de nona. Entretanto, neste caso a nota Lá não só é resolvida por grau conjunto descendente em direção a uma consonância (oitava Sol – Sol), mas também é emitida no compasso anterior enquanto o baixo emitia a nota Fá. Portanto, a nota Lá deixou de ser uma consonância (Fá – Lá: uma terça) para se tornar uma dissonância, procedimento chamado de preparação da dissonância e que não estava presente na passagem do madrigal de Monteverdi criticado

por Artusi. Este é apenas um dos inúmeros possíveis exemplos do rigor às regras contrapontísticas na escrita de Palestrina.

Há de se reconhecer a importância de Palestrina para a Prima Pratica e também ainda para estilos posteriores. Sua prática contrapontística, explicada e sistematizada por Zarlino em seu Le Institutione Harmoniche, influenciou inúmeras gerações de compositores e tornou-se um modelo de perfeição da escrita polifônica. Conforme explica GROUT e PALISCA:

Não muito depois da sua morte [de Palestrina] era corrente considerar- se o “estilo de Palestrina”, o estilo palestriniano, como o modelo da música sacra polifônica. Com efeito, muitos manuais de ensino de contraponto, desde o Gradus ad Parnassum (1725), de Johann Joseph Fux, até textos mais recentes, procuram instruir os jovens compositores no sentido de os levarem a recriar este estilo (...) (GROUT; PALISCA, 2007, p. 287).

A maior parte da produção musical de Palestrina foi de obras sacras, compreendendo cerca de 250 motetos, 104 missas e várias outras composições litúrgicas50. Além disso, Palestrina raramente justifica a escolha dos elementos musicais em suas composições por motivos dramáticos: “Os seus efeitos situam-se unicamente no reino da sonoridade, como se pretendesse demonstrar de quantas formas diferentes podem combinar-se intervalos simples consonantes (...).”51. Nesse ponto, é interessante notar alguma semelhança com a poesia de Petrarca, poeta criador do poema “Amor, Fortuna” utilizado por Palestrina em seu madrigal homônimo. Segundo Grout e Palisca:

Pietro Bembo (1470 – 1547), poeta, (...) editou, em 1501, o

Canzoniere do poeta [Petrarca]. Ao preparar a edição, notou que as emendas de Petrarca se deviam muitas vezes apenas à sonoridade das palavras, e não a um desejo de modificar as imagens ou o sentido do

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GROUT; PALISCA, 2007.

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poema. Identificou duas qualidades opostas que Petrarca, mais do que outros poetas interessado em obter uma certa variedade de sentimentos, procurava nos seus versos: piacevolezza (caráter aprazível) e gravità (gravidade). (...) O ritmo, a estrutura da rima, o número de sílabas por verso, a acentuação, a duração das sílabas e as propriedades sonoras de determinadas vogais ou consoantes eram os elementos que contribuíam para tornar um verso aprazível ou grave. Os compositores tomaram consciência destes valores sonoros a partir da poesia de Petrarca, talvez alertados pelo livro de Bembo “Prose

dela volgar língua” (1525) (...) (GROUT; PALISCA, 2007, p. 237).

Com isso, podemos relacionar a postura de Palestrina em se priorizar o âmbito sonoro-musical em relação ao âmbito textual em sua composição a postura semelhante de Petrarca em outra plataforma artística, o poema.

Ainda em outras correntes musicais anteriores à Seconda Pratica, nota-se o desenvolvimento da escrita contrapontística de tal maneira que, em inúmeros exemplos musicais, há uma escrita polifônica para mais de vinte vozes. A densa polifonia, comum às peças vocais deste período – e o que o compositor da Seconda Pratica Giulio Caccini (1551 – 1618) anos mais tarde chamaria em seu tratado Le Nuove Musiche (1601) de “laceramento da poesia” – naturalmente dificulta a compreensão imediata do ouvinte das palavras cantadas. Soma-se a isto o fato de que estas peças muitas vezes eram escritas para serem cantadas em igrejas e basílicas, locais que possuem uma acústica cujo tempo de reverberação é muito longo, privilegiando a sensação de imersão sonora ao ouvinte e desfavorecendo a inteligibilidade das palavras cantadas.

Neste sentido, nos utilizamos das ideias de José Augusto Mannis, em seu texto Silêncio e Vazio, a fim de relacionar o comportamento acústico de um local e a inteligibilidade dos sons que nele soam. Para Mannis:

Em ambientes fechados, os sons produzidos são sempre acompanhados da resposta do ambiente ao estímulo sonoro, sob a forma de reflexões e reverberação, dotando os sons de um halo ao seu redor. Portanto, em ambientes abertos os sons estão bem isolados uns dos outros e em ambientes fechados o silêncio entre eles passa a ser

preenchido pela resposta sonora do local (reverberação e reflexões). Essa prolongação acrescentada entre os sons até certo ponto ajuda a uni-los. (...) A reverberação ajuda ainda a unificar a massa instrumental na percepção do ouvinte, o que é muito importante para o repertório romântico. Porém, em excesso, ou seja, demasiadamente longa em relação à velocidade de execução sucessiva dos sons, a reverberação compromete a inteligibilidade da música executada, passando a embrulhar sons que deveriam soar separadamente. Quando isso acontece, a reverberação está comprometendo o importante papel dos silêncios entre os sons, necessário para uma percepção com clareza (...) (MANNIS, 2009, p. 126 – 127).

Certamente, muitos de nós já passamos pela situação de, durante uma missa em uma catedral ou em um evento em um grande ginásio esportivo, espaços cujo tempo de reverberação sonora é muito grande, sentirmos dificuldade em compreender as palavras ditas pelo porta-voz. Imaginemos, pois, uma música polifônica a muitas vozes, cantada em grande catedral, sendo que, muitas vezes, ou o texto não soava simultaneamente entre as vozes ou havia diferentes textos sendo cantados simultaneamente em cada voz. Como ficaria a inteligibilidade do texto neste contexto?