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CAPÍTULO 2 A Seconda pratica

55 COELHO, 2000 56 PALISCA, 1989.

2.5 O Recitativo – falar em harmonia

Até então, discutimos os precedentes históricos envolvidos no aparecimento deste estilo na Seconda Pratica e a consequente adoção de certas posturas por parte dos compositores e teóricos da época no âmbito da escritura musical, mais especificamente, a exclusão da escrita contrapontística nas linhas vocais. Entretanto, as mudanças estilísticas apresentadas até agora não abordam a realização destas ideias. Faz-se, portanto, necessário questionar: em termos práticos, ou em termos relacionados ao momento exato da performance musical, como deveria ser cantada esta nova música desta nova prática?

Para discutir esta questão é necessário retomar as discussões acerca da voz falada e da voz cantada, expostas no capítulo 1. A partir do exemplo de Hermeto Pascoal, com sua Música da Aura, constatou-se que uma das chaves para a identificação de uma vocalização ser considerada canto ou fala parte da escuta, processo pelo qual o ouvinte tem um papel ativo, podendo escolher como chamar aquilo que ouviu tendo como referência, obviamente, a maneira como ouviu. Esse processo só é possível uma vez que ambas as vocalizações possuem aspectos em comum como ritmo, melodia, timbre e, muitas vezes, a palavra. Essa percepção que aproxima canto e fala quase a ponto de uni-las parece ter ocorrido também com os teóricos e músicos da Seconda

Pratica, aspecto que influenciou o desenvolvimento do Estilo Recitativo.

Muitas são as menções pelos membros da Camerata Fiorentina de que o canto desta nova prática deveria se aproximar da maneira de se falar, a fim de que seus intuitos, aqui já muito apresentados, fossem bem-sucedidos. Retomamos os principais Tratados da Camerata anteriormente mencionados, desta vez, porém, em busca desta relação entre o canto e a fala.

Vejamos, por exemplo, o caso de Vincenzo Galilei. Na busca pela elaboração e desenvolvimento do Estilo Recitativo, Galilei sugere aos compositores de seu tempo um ponto de partida: que escutem “como falam entre si as pessoas de diferentes condições sociais – em qualquer situação da vida – como se desenvolvem e se articulam as conversas ou discussões entre pessoas de alto e baixo nível! – e depois, que ponham isso em música”60. Em seu Dialogo della Musica Antica e della Moderna,

Galilei também “pedia aos compositores que aprendessem com os atores de teatro falado as técnicas de acutezza e gravittà (sons agudos e graves), quantità (duração dos sons) e

prestezza o lentezza di numero ò ritmo (velocidade na emissão da frase)”61. É natural que Galilei visse na parceria entre músicos e atores (uma parceria, até os dias de hoje, tão frutífera para ambos os lados) uma rica iniciativa, já que ambas as partes exploram o aperfeiçoamento no uso da voz e seus fins poéticos e dramáticos. Parceria esta, inclusive, que ao estimular uma atitude teatral no ato de cantar, não à toa vê na ópera – grande gênero musical-teatral emergido em decorrência da criação do Estilo Recitativo – um dos principais frutos do estilo.

Vemos também, no prefácio da ópera “Dafne” (1594), o compositor Jacopo Peri discorrer acerca de suas intenções dizendo que queria imitar a fala em sua música, pois a ele “parecia que os antigos gregos e romanos tinham usado, em seu teatro, um tipo de música que, embora ultrapassando os sons da conversação ordinária, não chegava a atingir a melodia do canto, ou seja, assumia uma forma intermediária entre um e outro.”62. Com isso, Peri acreditava que o fazer musical dos antigos Gregos em seu Teatro já se utiliza de uma espécie de canto-falado. Já no prefácio de sua ópera “Euridice” (1600), Jacopo Peri afirma:

Pondo de parte todas as outras maneiras de cantar até hoje conhecidas, dediquei-me por completo a procurar a imitação conveniente a estes poemas. E pensei que o tipo de voz atribuído aos antigos ao canto (...) podia, por vezes, ser apressado e tomar um andamento moderado, entre os lentos movimentos sustentados do canto e os movimentos fluentes e rápidos da fala, assim servindo meu propósito (...). Reconheci também na nossa fala alguns sons não entoados de tal forma que podemos construir sobre eles uma harmonia (…) (PERI apud GROUT; PALISCA, 2007, p. 322).

No excerto de Peri vemos que o compositor se autoproclama pioneiro no uso deste tipo de canto, postura comum entre os membros da Camerata haja vista que a responsabilidade pelo desenvolvimento do novo estilo foi um grande objeto de disputa entre os compositores63. Além disso, vemos a preocupação de Peri em sistematizar um

61 COELHO, 2000, p. 42. 62 Idem, p. 44. 63 FEDERICI, 2009, p. 64.

uso do canto que seja intermediário entre o falar e o cantar, bem como a percepção de que sob a fala é possível construir um acompanhamento harmônico. Não seria essa mesma percepção que guiou Hermeto Pascoal na elaboração da Música da Aura?

O mesmo ocorre com o compositor Giulio Caccini. Em suas “Novas Músicas”, Caccini explicita a proximidade que o canto em suas composições deveria ter com a fala, e sugere aos intérpretes cantores dos Recitativos, por consequência, a utilização das ideias de sprezzatura e rubato.

(...) ocorre-me introduzir um tipo de música pela qual os outros pudessem quase que falar em harmonia, usando nesta (como disse em outra oportunidade) uma certa nobre sprezzaturado canto, passando por vezes por algumas dissonâncias, mantendo por isso a corda do baixo parada, exceto quando quiser servir-me dela segundo um uso comum, com a região média do instrumento para exprimir algum afeto, não sendo boas a outro (CACCINI apud FEDERICI, 2009, p. 27).

Por sprezzatura, que em italiano significa indiferença, displicência, entende- se que o cantor possa agir de modo que seu canto pareça demasiadamente natural, como uma fala cotidiana. Este agir de modo indiferente, na realidade era um modo de ação corrente no ambiente cortesão da época, tendo sido descrito pelo diplomata italiano Baldassare Castiglione (1478-1529) em seu livro O Cortesão (1528)64:

É necessário fugir tanto quanto possível, como se fosse um recife cortante e perigoso, a afetação; e para empregar talvez uma nova palavra, deve-se demonstrar em todas as coisas uma certa displicência (sprezzatura) que esconda a arte e mostre que aquilo que se faz, ou se diz, venha sem fadiga e quase sem pensar. É disto sobretudo, creio eu, que deriva a graça; porque das coisas raras e bem feitas todos sabem a dificuldade, de modo que nelas a facilidade provoca grande maravilha. E, ao contrário, o esforço ou, como se diz, “arrancar os próprios

64A sprezzatura é, até os dias atuais, um princípio nos jogos de cartas, podendo ser interpretado como blefe, no objetivo de confundir e desarmar os oponentes (APOSTOLICO, 2015).

cabelos”, provoca suma desgraça e faz estimar pouco cada coisa, não importa quão grande ela seja (CASTIGLIONI apud RICCI, 2014, p. 21).

O termo sprezzatura, portanto, está relacionado a ideia de naturalidade ao cantar, imagem bastante difundida até os dias de hoje por professores de canto. Já em relação a ideia de rubato, Caccini escreve:

Segue-se pois, que de nobre maneira seja esta assim chamada por mim, que seja usada [a voz ao cantar] sem se submeter à métrica regular, muitas vezes sendo a metade o valor da nota, menos segundo os conceitos das palavras, que é, pois, donde nasce aquele canto em

sprezzatura, de que se fala; lá onde, portanto, são tantos os efeitos a serem usados para a excelência desta arte, para a qual é tão necessária a boa voz, quanto a respiração, para do fôlego se valer onde mais aprouver, será portanto útil advertência que o professor desta arte, que deve pois cantar em solo sobre o Chitarrone65, ou outro instrumento de corda, sem ser forçado a acomodar-se a outro que a si mesmo, eleja-se um tom, no qual possa cantar em plena e natural voz, para fugir das vozes falsas (CACCINI apud FEDERICI, 2009, p. 38).

Ao mencionar que o canto não se submeta à métrica regular, Caccini aproxima-se da ideia de rubato, termo pelo qual entende-se que o canto possa sofrer uma variação na métrica, propondo um cantar ritmicamente mais livre, assim como fez Claudio Monteverdi em seu madrigal “Sfogava con le stelle”. Nota-se, também, que Caccini novamente faz menção a ideia de naturalidade ao dizer que o cantor deve buscar “cantar em plena e natural voz”. Desse modo, estes dois recursos, rubato e sprezzatura, surgem na obra de Caccini a fim de se reforçar a aproximação do ato de cantar ao ato de falar no Estilo Recitativo.

65 Instrumento de cordas dedilhadas semelhante a Teorba, como uma espécie de “alaúde de grande formato com cordas graves simpáticas (que ressoavam juntamente com as principais, reforçando-lhes a sonoridade)” (COELHO, 2000, p. 390).

Por outro lado, ao analisar as partituras de Giulio Caccini em seu tratado Le

Nuove Musiche, constata-se em algumas músicas a grande quantidade de ornamentos na melodia vocal. É o caso, por exemplo, do recitativo “Movetevi Pietà”:

Figura 10: Excerto do Recitativo “Movetevi Pietà”, do livro “Le Nuove Musiche” (1601) de Giulio

Caccini

Fonte: FEDERICI, 2009, p. 40.

O excerto anterior evidencia a utilização de ornamentos melódicos por Caccini em suas monodias acompanhadas. Se por um lado o compositor toma cuidado ao inserir a ornamentação considerando em qual palavra, e em que momento dela, o ornamento deve ser inserido de modo a não prejudicar o entendimento do poema cantado, por outro o comportamento da voz que canta tal excerto de nada se aproxima à voz falada, conforme a ideia mencionada em Le Nuove Musiche, não se tratando, por isso, de uma abordagem natural da voz. O fato de associar o canto neste repertório a ideia de naturalidade trata-se, sobretudo, de um certo panfletarismo por parte dos compositores da Camerata Fiorentina, haja vista a já mencionada disputa pelo pioneirismo na elaboração do estilo recitativo.

Se houve de fato um pioneiro em relação a criação do recitativo na

Camerata Fiorentina é difícil saber. De qualquer maneira, o que nos parece mais importante é que as ideias e realizações deste coletivo, além de extremamente fecundas para os estilos sucessores, foram novas e ousadas para a época. De acordo com Nikolaus Harnoncourt, em seu livro O discurso dos sons: caminhos para uma nova

compreensão musical:

Ideias deste tipo eram naquele tempo absolutamente novas e sem dúvida alguma chocantes. Para compreender a que ponto tudo isso era novo, precisamos tentar nos transportar àquele tempo: suponhamos que estivéssemos com 30 anos de idade e nunca tivéssemos ouvido outra música a não ser os maravilhosos madrigais de Marenzio, do jovem Monteverdi e dos compositores franco-flamengos, uma complicada música polifônica e altamente esotérica. E eis que de repente surge alguém dizendo que a maneira como as pessoas falam já é a própria música, a verdadeira música (HARNONCOURT, 1998, p. 167).

Assim, pode-se dizer que essa importante mudança estética está associada também a uma mudança de escuta.

Por fim, podemos notar que a exclusão do contraponto na linha melódica cantada, juntamente com o intuito de se aproximar a maneira de cantar ao registro da fala, ocasionou uma mudança notável no âmbito da textura musical em relação às músicas da Prima Pratica. Vejamos como exemplo o prólogo da ópera “Euridice”, escrita por Jacopo Peri. Na partitura original (figura 12), vemos a melodia do canto trazendo consigo a letra poética a ser cantada. Junto a esta melodia, vemos a linha do baixo que traz, ocasionalmente, cifras que indicam alterações no que seria a realização harmônica convencional do baixo contínuo, aspecto que será discutido mais detalhadamente na próxima seção do capítulo.

Figura 11: Prologo da ópera “Euridice” de Jacopo Peri.

Fonte: <imslp.org>

Ao observarmos a partitura de Jacopo Peri, notamos a posição privilegiada que a linha vocal possui na estrutura da composição. Esta maneira de estruturar a monodia age diretamente sob o ponto de vista da textura musical: melodia e acompanhamento instrumental (o baixo contínuo), nesta perspectiva, funcionam como figura e fundo em um quadro barroco, a figura em absoluta evidência, o fundo como elemento contextualizador, como paisagem. Esta disposição textural talvez seja uma das principais mudanças entre a Prima Pratica e a Seconda Pratica, já que, na música

contrapontística de compositores como Giovanni da Palestrina, principal expoente da

Prima Pratica, o entrelaçar das vozes em escrita polifônica direciona a escuta do ouvinte para uma apreensão global, como quem observa um cardume de peixes se mover no oceano. Se o ouvinte quiser depreender com detalhes o contorno melódico e o texto cantado de apenas uma das vozes de uma peça polifônica, sua escuta deverá embrenhar-se em meio aos muitos fios de som entrelaçados e, em um aprazível desafio, conseguirá notar e compreender o que almeja, como quem segue com os olhos uma pessoa em meio à multidão.

Naturalmente, esta escolha em termos texturais por parte das monodias da

Seconda Pratica, além de se tratar de uma tentativa de imitação do estilo musical grego, visa a maior inteligibilidade possível do texto poético cantado, oferecendo à voz que o canta a posição de maior destaque dentro da estrutura da composição. Além disso, de acordo com Mark Ringer:

O movimento que parte da homogeneidade e equilíbrio do Renascimento e vai em direção à apreciação do individualismo no Barroco é uma das forças culturais que levaram ao desenvolvimento da convenção do baixo contínuo. Com maior liberdade sendo dada ao solista, a música passou a ser capaz de explorar um sentido maior de contraste rítmico e expressivo. (...) No âmbito da monodia vocal, em particular, o baixo contínuo permitiu ao compositor refletir acerca de todos os detalhes das variações de significado e emoção do texto. (RINGER, 2006, p. 10). 66

Assim, ao colocar a voz em primeiro plano, assiste-se a emergência de uma disposição textural no repertório da Seconda Pratica que busca privilegiar o texto cantado, seja aumentando sua inteligibilidade no canto, seja relacionando seus aspectos poéticos à construção propriamente musical. Para isso, foi necessária a sistematização de uma técnica de acompanhamento, o baixo contínuo.

66

The move from Renaissance homogeneity and balance toward a baroque appreciation of individualism is one of the cultural forces that led to the development of the basso continuo convention. With more freedom being given to the soloist, music was now capable of exploring a greater sense of rhythmic and expressive contrast. (…) In the realm of vocal monody in particular, the basso continuo liberated the composer to reflect every detail of a text’s changing meaning and emotion.