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ÉTICA HACKER, CONTRACULTURA E DIY/DIWO

TECNOPOLÍTICAS

1.4 DISPOSITIVOS BIOPOTENTES: MULTIDÃO CONECTADA

1.4.2 ÉTICA HACKER, CONTRACULTURA E DIY/DIWO

Ainda na década de oitenta, as redes digitais são tomadas por atividades ligadas ao ativismo e à contracultura, alimentadas por movimentos atuantes no período, com pautas diversas, voltadas a direitos civis, ampliação democrática e independência das regras corporativas. Destacam-se, no período, a importância da ética hacker e da lógica DIY – do it yourself, ‘faça você mesmo’.

Carlos D’Andréa,234 em sua tese de doutorado Processos editoriais auto-organizados na Wikipédia em

português [manuscrito]: a edição colaborativa de “Biografias de pessoas vivas”, 235 resgata a definição de Castells da cultura hacker, que aponta a liberdade, a busca de autonomia e a interconexão como principais pressupostos ou eixos de articulação. O autor demonstra ainda como o pensamento nos referidos grupos se distancia da moral protestante condutora dos modos de produção no século XX, orientando-se a partir da criatividade e da inovação –236 preceitos rapidamente incorporados pelo capitalismo cognitivo do século XXI, como se observou na seção 1.2 deste trabalho. Malini e Antoun argumentam que hackers “valorizam antes de tudo uma relação com o trabalho que não se baseia no dever, e sim na paixão intelectual por uma determinada atividade, um entusiasmo que é alimentado por uma coletividade de iguais e reforçada pela questão da comunicação em rede”.237 Os autores destacam, porém, que sua atuação não se guia pelo altruísmo, mas por uma lógica de reconhecimento social e produção de capital humano baseada em construir meios para a ampla disseminação de conhecimento: “a circulação torna-se eminentemente produtiva”.238

                                                                                                               

233 STALLMAN, apud MALINI; ANTOUN, op. cit., p. 43.

234Carlos D’Andréa é Doutor em Linguística Aplicada pelo PosLin/UFMG (linha Linguagem e Tecnologia) e professor do curso de Comunicação Social na mesma universidade.

235D’ANDRÉA, 2011.

236 D’ANDRÉA, op. cit., p.59-60. 237MALINI; ANTOUN, op. cit, p. 31. 238 Ibidem.

No livro O artífice,239 Richard Sennett240 conduz um minucioso exame do trabalho artesanal em suas mais diversas categorias, sob a hipótese de que “fazer é pensar”.241 O autor, no entanto, não limita a artesania sob os contornos convencionais da manufatura, o que remeteria a modos de vida em crescente desuso após a consolidação da produção industrial. A ideia de habilidade artesanal defendida por Sennett se relaciona ao desejo pelo trabalho bem feito, cujo desenvolvimento implica em um alto grau de experimentalismo, assim como de impessoalidade (pois se distingue da noção de obra artística e do gênio criador) e colaboração.242 Nesse sentido, o esforço empreendido por programadores e hackers no desenvolvimento, na disseminação e no aprimoramento dos softwares livres se encaixa perfeitamente na definição apresentada em O artífice, cuja vertente contemporânea e informacional é exemplificada sobretudo a partir do Linux e da Wikipédia: “o sistema Linux é um artesanato público”.243

Ainda assim, o ritmo experimental da solução e da detecção de problemas faz com que o antigo oleiro e o moderno programador sejam membros da mesma tribo. Seria melhor comparar os programadores da Linux com uma outra tribo moderna, a dos burocratas que não se abalançam a dar um passo sem que todos os procedimentos, metas e resultados visados de determinadas diretrizes sejam antecipadamente mapeados. Na história dos trabalhos manuais, os sistemas de conhecimento fechados geralmente têm vida curta.244

A proposição de Sennett facilita compreender a aproximação entre a ética hacker e o pensamento DIY,245 cujas origens remontam ao fim do século XIX, inspiradas no movimento Arts & Crafts. Seus principais expoentes John Ruskin246 e William Morris247 foram alguns dos primeiros representantes da arquitetura e do design a se posicionarem contra a divisão do trabalho e a alienação do operário provocados pelo capitalismo industrial. A defesa da manufatura artesanal como mecanismo potente de transformação social e de resistência que propunham antecipava o argumento de Sennett pela importância da satisfação no processo de feitura: “a pergunta certa a fazer, com respeito ao ornamento, é simplesmente a seguinte: foi feito com prazer?” –248 questionava Ruskin. A cooperação desempenhava um papel fundamental para o Arts & Crafts, que defendia uma sociedade organizada em guildas ou                                                                                                                

239SENNETT, 2009.

240Richard Sennett (1943-), sociólogo e historiador norte americano. 241SENNETT, op. cit., p.9.

242Ibidem, p.18-37.

243Ibidem, p.34.

244Ibidem, p. 37.

245DIY é a abreviação da expressão em ingles do it yourself – ‘faça você mesmo’.

246John Ruskin (1819-1900), escritor, crítico de arte, poeta e desenhista britânico. Foi professor na Universidade de Oxford (onde deu aulas para William Morris) e patrono da irmandade pré rafaelita que, posteriormente inspirou o surgimento do Arts & Crafts.

247William Morris (1834-1896), arquiteto, escritor, pintor e artista gráfico britânico, foi um dos fundadores do movimento socialista na Inglaterra. 248RUSKIN apud FRAMPTON, 2008, p. 42.

oficinas associativas, em que o trabalho e a educação não fossem obrigatórios, mas voluntários.249 Ainda que de maneira contraditória a seus ideais socialistas – pois em sua firma eram produzidos artigos de luxo, consumidos pela classe média alta –, a lógica coletivista aparecia mesmo nas peças publicitárias do ateliê de Morris (onde trabalhava em parceria com outros artistas, como Phillip Webb, Dante Gabriel Rossetti, Edward Burne-Jones e Ford Maddox Brown), que anunciavam: “adiantamos que, com essa cooperação... o trabalho deve ser necessariamente muito mais completo do que se um artista sozinho viesse a ser empregado da maneira usual”.250

Resgatada em propostas como a casa Kwikset, projetada por Charles e Ray Eames, na década de 1950 –251 composta por peças pré-fabricadas que possibilitavam ao usuário montar suas residências de maneira autônoma e customizada –, a lógica DIY ganha força crescente a partir dos anos 1970, com a ascensão dos movimentos punk e anarquista.252 A produção editorial (zines e outros veículos independentes de comunicação) e musical impulsionava sua propagação, que rapidamente se disseminou para o universo das redes de comunicação que começava a se formar, especialmente por meio das já mencionadas BBSs: “as BBSs têm algo em comum com os ‘zines’, [...] são, ambos, canais para a manifestação direta da cultura popular, não editada, não polida, às vezes ofensiva das sensibilidades tradicionais”.253 É esse o cenário que articula o surgimento dos hackers, programadores que invadem e se apropriam das redes, produzem remixes de softwares em busca de versões socializadas gratuitamente e que acabam dando a origem a produtos que viriam a pautar o desenvolvimento subsequente da informática, como o computador pessoal. Malini e Antoun demonstram como invenções cruciais – muitas das quais dão origem a grandes empresas e à movimentação de fortunas no setor – partem do movimento hacker:

Steven Levy divide as diferentes gerações dos hackers. Ele apresenta o hacker dos anos 60 como alguém que pensa os programas de inteligência artificial e explora as interações do usuário com o computador. Nos anos 70 ele vai destacar o trabalho do Home Brew Computer Club (Clube do Computadorista Amador), motor da invenção do computador pessoal – cujo ápice ocorre quando a Apple hackeia o Xerox Parc e inventa o Macintosh. Logo depois um grupo de programadores – do qual faz parte Bill Gates – funda a Microsoft e inventa o sistema operacional para o PC da IBM.254

                                                                                                               

249FRAMPTON, op. cit., p. 45. 250FRAMPTON, op. cit, p.44.

251 Charles Ormond Eames, Jr. (1907-1978) e Bernice Alexandra "Ray" Eames (1912–1988), casal de designers norte-americanos, representantes significativos do modernismo na arquitetura e no desenho industrial.

252SÁ, 2014, s.p.

253RHEINGOLD, apud MALINI; ANTOUN, op. cit., p. 38. 254MALINI; ANTOUN, op. cit., p. 46.

A ampliação posterior da comunicação em rede faz com que o conceito de DIY avance e conquiste uma acepção ampliada, a partir do que passa a ser identificado por meio da sigla DIWO – do it with others, ‘faça com os outros’ (apesar de que a colaboração seja um aspecto fundante de todas as práticas descritas, cuja presença orienta desde o movimento Arts & Crafts até a forma de trabalho dos hackers). Marc Garret situa o surgimento do termo DIWO em 2006, por meio da comunidade de artistas e revista online Furtherfield, “em referência a processos artísticos de criação em rede e de curadoria aberta e horizontal”.255 Rapidamente aplicado a outras disciplinas e atividades, o termo passa a ser utilizado na definição de práticas colaborativas de maneira mais abrangente. Na esfera digital, Rob Myers aponta como o software livre desempenha papel fundamental para o êxito do DIWO: “O software livre pode, portanto, ser entendido histórica e eticamente como a defesa da liberdade pluralista contra uma ameaça real. É uma questão ética, de liberdade, o que é muito diferente de ser apenas um novo método de organização ou um meio mais eficiente de produção”.256