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YONA FRIEDMAN: ANTECIPANDO AMBIGUIDADES DA CIDADE “CIENTÍFICA” Os conceitos discutidos até agora, como descentralização, indeterminação, abertura e

DISPOSITIVOS URBANOS

2.1 CONSIDERAÇÕES PARA UM URBANISMO DE SEGUNDA ORDEM

2.1.3 YONA FRIEDMAN: ANTECIPANDO AMBIGUIDADES DA CIDADE “CIENTÍFICA” Os conceitos discutidos até agora, como descentralização, indeterminação, abertura e

performatividade, estão por trás das propostas elaboradas pelo arquiteto Yona Friedman338 nas décadas de 1960 e 1970, reunidas no livro Toward a Scientifc Architecture.339 No primeiro capítulo, “Democratização”, Friedman debate como as práticas convencionais de arquitetura e planejamento conduziram a uma situação em que os usuários detêm pouco ou nenhum poder de decisão, concentrando-o nas mãos de profissionais especializados:

O ato de decidir também implica em aqueles responsáveis pelas decisões serem também quem assume os riscos envolvidos. Qualquer sistema que não dá direito de escolha às pessoas submetidas às consequências de uma má opção é um sistema imoral, mas é justamente dessa forma que arquitetos e planejadores trabalham. Eles tomam as decisões e os usuários assumem os riscos.340

A democratização defendida por Friedman não se relaciona diretamente à definição de um sistema político específico, mas em buscar métodos que propiciem aos habitantes de um determinado local maior liberdade de escolha sobre o espaço onde desejam viver. O autor demonstra como o arquiteto usualmente assume a posição de intermediário, ou de “tradutor”, entre a vontade do usuário e o arranjo espacial proposto, identificado como hardware. O futuro morador não participa da definição do produto final, resultado da interpretação do arquiteto sobre suas demandas, como representado a seguir:341

Ao migrar da relação clássica entre arquiteto e cliente individual para a escala urbana, a situação torna-se mais complexa. Ante a necessidade de “traduzir”, em um mesmo espaço, desejos de vários habitantes, a solução usual é condensar suas demandas na figura do “usuário médio”, afunilando ainda mais o gargalo entre a multiplicidade de alternativas existentes e o resultado proposto. “Se o que fazemos é satisfazer os anseios de um cliente padrão, então, logicamente, não estamos satisfazendo adequadamente a vontade de nenhum cliente real”.342 Procede-se, como se discutiu no item 2.1.1, via empobrecimento de variáveis.

                                                                                                               

338 Yona Friedman, 1923–, arquiteto e urbanista húngaro, é autor de propostas voltadas à flexibilização e à mobilidade da arquitetura em prol de maior liberdade de escolha para os usuários.

339FRIEDMAN, 1975.

340FRIEDMAN, op. cit., p. 13. Tradução livre. 341 Ibidem, p. 1.

 

Fig. 7: diagrama de Yona Friedman redesenhado e traduzido para o português pelo grupo Indisciplinar. Disponível em: <http://wiki.indisciplinar.com/index.php?title=Democratiza%C3%A7%C3%A3o_%28Yona_Friedman%29>.

 

Fig. 8: diagrama de Yona Friedman redesenhado e traduzido para o português pelo grupo Indisciplinar. Disponível em: <http://wiki.indisciplinar.com/index.php?title=Democratiza%C3%A7%C3%A3o_%28Yona_Friedman%29>.

Friedman procede, então, à elaboração de uma série de propostas que deslocam o papel do arquiteto e do urbanista. Em vez de ocupar a posição de tradutor da vontade coletiva, tomando para si a responsabilidade de decidir para os demais, tais profissionais deveriam assumir a tarefa de criar mecanismos para que os usuários fizessem suas próprias escolhas, fornecendo a devida informação sobre eventuais consequências. O hardware, inicialmente representado por um produto acabado, se transforma em uma estrutura ou um sistema aberto capaz de abrigar o maior repertório possível de alternativas, com o mínimo de restrições.343

Fig. 5: diagrama de Yona Friedman redesenhado e traduzido para o português pelo grupo Indisciplinar. Disponível em: <http://wiki.indisciplinar.com/index.php?title=Democratiza%C3%A7%C3%A3o_%28Yona_Friedman%29>.

                                                                                                               

Fig. 6: diagrama de Yona Friedman redesenhado e traduzido para o português pelo grupo Indisciplinar. Disponível em: <http://wiki.indisciplinar.com/index.php?title=Democratiza%C3%A7%C3%A3o_%28Yona_Friedman%29>.

É interessante observar como os planos de Yona Friedman para a organização das cidades antecipam questões cruciais ao debate contemporâneo sobre a aplicação das tecnologias em rede nos espaços urbanos. Sessenta anos depois, é possível vislumbrar, em suas propostas, aspectos promissores de transformações que presenciamos hoje, assim como algumas de suas principais fragilidades.

A Spatial City (fig.6), concebida em 1958, consiste em uma malha estrutural modular que corresponde ao “único elemento físico fixo das cidades”.344 Esse esqueleto deveria conter toda a infraestrutura (eletricidade, água, esgoto etc.) necessária para receber os espaços futuros, oferecendo o máximo de flexibilidade para que eles se adequassem às preferências dos usuários. Todos os elementos utilizados para a produção dos mencionados espaços seriam móveis, de forma a se modificarem continuamente. “A infraestrutura [...] possibilita o surgimento da ‘cidade indeterminada’ (que já existe hoje, mas de maneira latente). O fato de lhe proporcionar uma infraestrutra permite que essa cidade dinâmica adquira o ritmo de transformação apropriado”.345 O projeto sugere que moradores possam mudar suas casas de lugar segundo suas prioridades, para ficarem, por exemplo, mais próximos de amigos ou de serviços. Não há, contudo, nenhuma indicação sobre como seriam tomadas as decisões a respeito dos espaços coletivos, sobre como os habitantes conquistariam o direito de ocupar um determinado espaço ou outro e sobre possíveis métodos utilizados para lidar com conflitos, como duas pessoas interessadas em ocupar o mesmo lugar.

                                                                                                               

344FRIEDMAN, op. cit., p.117. Trad. livre. 345Ibidem, p.123. Trad. livre.

 

Fig. 7 – Desenho de Yona Friedman para uma Spatial City em Paris. Disponível em:

<https://dprbcn.files.wordpress.com/2011/05/msr_friedman-pompidou-01.jpg>. Acesso em: 24 set. 2015.

 

Já no caso do Mecanismo Urbano, outra proposta de Friedman, a questão da decisão coletiva é abordada em maior profundidade. Trata-se de um sistema informacional hipotético, munido de um vasto banco de dados sobre diversas variáveis urbanas, a que os habitantes recorreriam para opinar sobre intervenções a serem feitas na cidade. Seu software seria capaz de calcular as consequências das alternativas disponíveis, apresentando cenários para que os cidadãos pudessem fazer escolhas mais informadas.

Assim, poderíamos imaginar “licenças de intervenção” (como regulações determinando as jornadas de trabalho, ou alvarás de construção) sendo submetidas ao voto popular, sempre que a intervenção proposta trouxesse mudanças significativas [...]. Tal voto poderia aceitar ou rejeitar a proposta, ou impor penalidades de acordo com os danos ou inconvenientes sofridos pela comunidade, assim como por cidadãos isolados.346

                                                                                                               

Mesmo após várias décadas, encontram-se nos referidos projetos vários aspectos de relevância inquestionável ao debate urbano contemporâneo e à investigação ora proposta: a mudança no papel assumido pelo arquiteto e urbanista; o modelo de organização em rede; a promoção de sistemas de controle descentralizados; a abertura à transformação constante. O acesso à informação apresenta particular importância nos esquemas desenvolvidos por Friedman, para quem a responsabilidade de escolha só pode recair sobre aqueles capazes de compreender os riscos envolvidos: “é imoral e perigoso delegar decisões a quem não foi adequadamente informado sobre as consequências de suas opções”.347 São todos elementos encontrados hoje, em diferentes graus de intensidade, em iniciativas voltadas a ampliar as condições de cidadania e oferecer mais autonomia aos habitantes das cidades.

Por outro lado, os planos de Friedman não deixam claro quem é responsável por fornecer, gerir ou manter as estruturas propostas (o poder público, empresas privadas, PPPs, os próprios cidadãos?). Seja no caso da Spatial City ou do Mecanismo Urbano, um só sistema é responsável por articular o funcionamento de toda a cidade, e a mesma solução é tida como adequada a qualquer contexto. Muito poder é creditado à tecnologia, a qual se presume bastar para resolver os problemas da vida em comum. Desde a nebulosidade com relação aos responsáveis pela gestão da cidade até o encantamento com grandes volumes de dados (o uso de Big Data para a previsão de comportamento é essencial às Smart Cities paradigmáticas), veremos como essas características se aproximam do que vem sendo anunciado por gigantes corporativos como IBM e Cisco como o que há de mais inovador em tecnologia para os espaços urbanos. Resta refletir se esses caminhos podem conduzir ao objetivo expresso de Friedman de mais liberdade e democratização.