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ASPECTOS CRÍTICOS E ALTERNATIVAS

No documento Urbanismo entre pares: cidade e tecnopolítica (páginas 105-108)

DISPOSITIVOS URBANOS

2.2.2 “INTELIGÊNCIA”: UM GRANDE NEGÓCIO

2.2.3 ASPECTOS CRÍTICOS E ALTERNATIVAS

Pesquisadores como Anthony Townsend e Adam Greenfield361 vêm se dedicando a estudar as

smart cities em suas diversas configurações. Enquanto Townsend adota uma abordagem mais

abrangente, incluindo iniciativas bottom-up, abertura de dados governamentais e incentivo a sistemas de código aberto, Greenfield opta por restringir o alcance da expressão aos exemplos paradigmáticos de cidades totalmente projetadas e geridas por gigantes industriais a partir do que identificam como

tecnologia inteligente – como as descritas acima –, preferindo reunir propostas divergentes sob outras

categorizações.

Os autores concordam, no entanto, que os projetos padronizados e centralizadores oferecidos pelas grandes empresas são, geralmente, produzidos por equipes que sabem muito sobre tecnologia, mas pouquíssimo sobre o funcionamento cidades.362 Na ânsia pela eficácia absoluta, seus planos deixam de lado a urbanidade – muitas vezes ligada àquilo que as cidades têm de mais incapturável e caótico –, esquecendo-se de que “eficiência não é por que construímos cidades em primeiro lugar. É muito mais um efeito colateral conveniente da sua habilidade de agilizar o contato humano”.363 Os panfletos e vídeos publicitários que anunciam as smart cities promovem, em vez disso, cenários ascépticos e padronizados, não lugares sem espaço para a vitalidade, a surpresa ou o conflito. Não é à toa que as ruas de Songdo, Masdar e PlanIT Valley estão às moscas, como nota o citado relatório do MIT.364

A falta de especificidade das smart cities arquetípicas é denunciada por Greenfield, para quem elas são construídas em espaços genéricos, para pessoas genéricas, abordando a tecnologia, também, como algo genérico e de natureza imparcial.365 Em uma peça de publicidade impressa, a IBM proclama: “a solução inteligente de uma cidade pode funcionar em qualquer outra cidade”,366 descartando a importância de se levar em conta qualquer particularidade cultural, histórica, social, política, geográfica ou climática de um determinado local, ao se propor mecanismos para governá-la.

Se por um lado é fato que grandes cidades reproduzem espaços cada vez mais semelhantes e que a ampliação da conectividade em rede transporta tendências e costumes ao redor do planeta, é

                                                                                                               

361Adam Greenfield, 1968–, arquiteto e urbanista norte-americano, é professor do Programa de Telecomunicações Interativas da New York University, nos EUA, e autor do livro Against the Smart City: the City Is Here for You to Use (2013).

362 TOWNSEND, op. cit.; GREENFIELD, 2013. 363 Ibidem, p. 162.

364Fonte:MIT Technology Review, op. cit., p.2. 365 GREENFIELD, op. cit., posições Kindle 255–566. 366TOWNSEND, op. cit., p. 231.

equivocado presumir que isso baste para que haja uma fórmula de cidade globalizada do século 21, uma receita de sucesso a ser copiada, irrestritamente, em toda parte. Saskia Sassen critica justamente tal postura, atribuindo-a às “classes criativas” contemporâneas, que, concentrando-se na economia do conhecimento, negligenciam a história das cidades e aquilo que elas tradicionalmente produzem. Focadas na competitividade entre si próprias, economias urbanas deixam de ver o potencial de valorizar especificidades de sua produção local, o que poderia colocá-las mais em posição de colaborar, aproveitando-se das conexões em rede, do que de disputar umas com as outras.367

A padronização é de fato uma característica fundamental da nossa era global. Mas precisamos situá-la e situar suas consequências mais precisamente. Não podemos assumir que a padronização em nossa modernidade global complexa é a mesma que era na época keynesiana de produção em massa e construção em massa de habitação suburbana.368

No que concerne à escolha de ferramentas tecnológicas para enfrentar problemas das cidades, Townsend sugere buscar o equilíbrio entre o que importar, o que adaptar, e o que produzir localmente.369 Evidentemente, há soluções que podem ser reproduzidas satisfatoriamente em diversos contextos, e outras aptas a serem apropriadas com pequenos ajustes, sobretudo em se tratando de softwares de código aberto. É interessante, contudo, que haja também incentivo para o desenvolvimento de propostas que se baseiem no cotidiano de cada lugar e que envolvam diretamente seus cidadãos. O segredo estaria no balanço entre tais elementos, uma vez que importar excessivamente conduziria à superpadronização e à inadequação de propostas, desconsiderando competências locais. Personalizar tudo, por outro lado, impede que sejam aproveitados os benefícios de experiências bem-sucedidas já testadas (copiar algo que funciona bem, em vez de tentar reinventar a roda, é uma premissa importante do movimento open

source), e aumenta custos de desenvolvimento.

A atenção às tecnologias já utilizadas em diferentes metrópoles, às quais seus habitantes tenham fácil acesso, e com que estejam familiarizados, pode levar a resultados interessantes e de custo mais baixo. Dados de telefonia celular, por exemplo, foram utilizados em cidades africanas com pouquíssimos recursos para mapear padrões de viagens no transporte público e melhorar a distribuição das linhas.370 Na Índia, informações fornecidas por profissionais de saúde foram reunidas via SMS e pela internet, ajudando a evitar epidemias de doenças como malária, dengue e hepatite.371 Trata-se, nos                                                                                                                

367SASSEN in RENA, 2014, p. 23-32. 368SASSEN in RENA, op. cit., p. 23-32. 369TOWNSEND, op. cit., p. 300. 370TOWNSEND, 2014p.6.

dois casos, de propostas simples, de implementação rápida, que produzem impactos significativos, por meio da utilização perspicaz de recursos já disponíveis.

O fato de que as smart cities propagandeadas pelas grandes corporações adotem prioritariamente sistemas proprietários é outro aspecto crítico observado por Greenfield. Após uma análise meticulosa do material disponibilizado pelas mencionadas empresas sobre os produtos que oferecem, o autor identificou apenas alusões vagas a redes de dados abertos, geralmente referindo-se apenas a informações ofertadas para assinantes de serviços comercializados específicos.372 A opção por sistemas proprietários implica em centralizar o conhecimento sobre a operação da cidade; em não proporcionar abertura para as contribuições de uma massa crítica mais ampla, como acontece nos sistemas de código aberto; e em colocar dados pessoais dos habitantes nas mãos de um conjunto restrito de fornecedores privados. Interessa lembrar que conteúdos desse tipo adquirem um valor comercial cada vez maior. Sendo assim, informações obtidas por meio do uso dos serviços públicos das cidades inteligentes passariam a gerar recursos financeiros para as empresas que os administrem, sem que os usuários tenham plena consciência, ou que compartilhem os lucros que eles próprios produzem. A propriedade dos sistemas adotados também coloca seus detentores em posição vantajosa com relação a outros prestadores interessados a concorrer pelo serviço. No que diz respeito à tomada de decisões, fica implícita a crença em que munir gestores públicos com robustos bancos de dados sobre atividades dos cidadãos bastaria para conduzi-los às melhores escolhas. Informação é, evidentemente, fundamental; os pressupostos em que tais projetos se fundamentam, porém, negligenciam a natureza política das práticas de governo e da vida urbana.

Acredita-se aqui, pelo contrário, que a potência da informação esteja justamente na possibilidade de compartilhá-la com a máxima abertura – de maneira que diferentes grupos e atores urbanos tenham condições melhores e mais justas de disputar politicamente por seus interesses diversos. Todo o esquema proposto na smart city arquetípica vai na contramão de iniciativas que exploram a ampliação da conectividade em rede para a abertura dos dados públicos, para o aumento da transparência e da prestação de contas pelas administrações locais.

Há saídas, no entanto, para a busca por inovação sem que haja necessariamente submissão aos

smart combos promovidos pela indústria tecnológica. Amsterdã, por exemplo, vem utilizando tecnologia

fornecida por multinacionais como Accenture, Cisco, Philips, Siemens e Ikea, sem, contudo, delegar o controle a nenhuma delas. “Não temos um fornecedor que detém tudo e decide quem pode participar e                                                                                                                

quem não pode – diz Ger Baron, primeiro chefe do escritório de tecnologia da cidade, nomeado em março de 2014 –, agora todos podem se unir e desenvolver”.373 Além de sistemas preexistentes de compartilhamento de carros ou de armazenamento de energia solar, seus esforços, atualmente, têm se voltado a mobilizar cidadãos para coletar e reunir dados em uma plataforma pública, disponibilizando-os para download. A ideia é que o conteúdo coletado alimente o desenvolvimento de uma multiplicidade de aplicativos e de visualizações que se façam úteis a seus habitantes.374 No lugar de um pacote standardizado de soluções, propõe-se que diferentes ferramentas para interagir com a cidade sejam criadas gradualmente, a partir das necessidades identificadas por seus moradores, com flexibilidade para se transformarem ao longo do tempo.

Greenfield conclui que o modelo predominante de smart city que vem sendo divulgado – padronizada, funcionalista, hierarquizada – reproduz os aspectos mais problemáticos do ideário modernista prevalecente na primeira metade do século XX. Por trás da promessa de inovação e sustentabilidade, encontra-se a mesma crença em um modelo universal, em que a técnica e a organização sejam capazes de coordenar o funcionamento das cidades e as vidas de seus habitantes. Resta questionar se é dessa maneira que queremos seguir pensando os espaços urbanos na contemporaneidade.375

Seja de maneira intencional e consciente ou não, a maioria, senão todos os erros que associamos ao alto modernismo reaparecem no discurso da smart city (...). Se o fazem por ignorância, historicidade, negligência ou arrogância, os designers de Songdo, Masdar e PlanIT Valley os recapitulam ponto por ponto: da ‘superespecificação’, do cientificismo arrogante e da pomposidade autoritária e pesada, até os grandes eixos cerimoniais de Chandigarh e Brasília.376

No documento Urbanismo entre pares: cidade e tecnopolítica (páginas 105-108)