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VIGILÂNCIA COMO PRÁTICA SOCIAL

TECNOPOLÍTICAS

1.3 DISPOSITIVOS BIOPOLÍTICOS: VIGILÂNCIA, MONITORAMENTO E ESPETÁCULO Esta seção é dedicada à discussão dos diversos mecanismos atuantes nas redes

1.3.3 VIGILÂNCIA COMO PRÁTICA SOCIAL

Como anteriormente discutido, pode-se considerar que hoje todo usuário da internet é também um produtor de conteúdo, fato que desloca o internauta do papel de mero espectador. Redes sociais,

blogs e sites de compartilhamento de vídeos (como o YouTube) expandem as possibilidades de

exposição nas redes. Para muito além dos circuitos de CFTV, smartphones e webcams naturalizam a condição de se estar diante das câmeras quase o tempo todo, alimentando “circuitos de prazer, entretenimento e voyeurismo”.190 Bruno debate sobre a relação entre os modos de olhar contemporâneos e a emergência de uma “estética do flagrante”.191 Apesar da ideia de flagrante estar proximamente ligada à modernidade e à consolidação dos grandes centro urbanos, a autora demonstra particularidades dos processos em curso na atualidade:

A estética do flagrante ainda guarda hoje a excitação pela surpresa e pelo espanto de outrora em diversos setores do entretenimento popular, mas, no que diz respeito aos flagrantes da vida urbana atual, há um reposicionamento do observador que merece ser considerado. Este não apenas assiste ao espetáculo da vida urbana e suas representações visuais como um ponto na massa, mas produz e distribui com suas câmeras portáteis e conectadas um microespetáculo do cotidiano, sendo ao mesmo tempo testemunha individual e difusor global da vida urbana.192

Quando boa parte do que é feito ou dito na vida cotidiana acaba sendo registrado e compartilhado em rede para ser visto por centenas ou milhares de outros, há que se considerar os efeitos dessa nova lógica de ver-e-ser-visto na construção da subjetividade contemporânea – para a qual “a exterioridade, a aparência e a visibilidade”193 configuram aspectos cruciais. Ao contrário da clareza de interesses e objetivos que se pode identificar nos dispositivos de controle estatais ou corporativos, a transição para os domínios social e afetivo impõe às práticas de vigilância contornos nebulosos, que “transitam em zonas mais ambíguas, entre o cuidado e o controle, o desejo e a suspeição, o amor e a desconfiança”.194 Na escala da intimidade, a lógica de monitoramento não se restringe ao outro, fazendo proliferar também mecanismos de autocontrole: “De psicotrópicos a reality shows, tais dispositivos                                                                                                                

189BRUNO, op. cit. 190 Ibidem, p. 98. 191 Ibidem, p.87. 192 Ibidem, p. 112-113. 193 Ibidem, p. 55-56. 194 Ibidem, p.132.

constituem uma subjetividade tecnicamente assistida, lançada na extremidade da ação e da performance”.195

Será de particular interesse para o presente trabalho, dada a afinidade com seus objetos centrais de investigação, o debate desenvolvido por Bruno acerca de práticas de vigilância entre pares que têm origem em plataformas colaborativas na internet.196 Geralmente baseadas na busca pela ampliação das condições de cidadania e no incentivo à colaboração, tais plataformas não estão isentas da lógica policialesca e do estímulo a posturas autoritárias, especialmente se projetadas a partir de dispositivos de denúncia.

Quando destinadas à busca de maior transparência e à criação de melhores canais de reivindicação junto ao poder público, não há dúvidas quanto aos benefícios de tais ferramentas, uma vez que serviços públicos devem estar sempre submetidos a rigoroso monitoramento cidadão, além de proporcionar a maior visibilidade possível. Ao migrar, por exemplo, desse tipo de recurso para mapeamentos coletivos de locais de crimes, como o Onde Fui Roubado,197 ou o Chega de Fiu Fiu,198 adentra-se uma zona mais cinzenta. De um lado, o direito legítimo e inquestionável de denunciar um ato de violência sofrido, situação ainda mais delicada no segundo caso, em que o objetivo é o registro de agressões contra mulheres. De outro, o incitamento ao modelo de suspeição generalizada e vigilância constante perante o risco possível.

Iniciativas colaborativas assumem contornos especialmente problemáticos em outros exemplos mencionados por Bruno. O Texas Virtual Border Watch Program199 é um programa desenvolvido pelo governo norte-americano que disponibiliza imagens de videovigilância da fronteira com o México para que os usuários possam, de suas casas, auxiliar no monitoramento e alertar autoridades sobre a entrada de imigrantes ilegais, ou outros crimes de fronteira. Em contraposição à lógica predominante no capitalismo cognitivo discutida na seção anterior – que se baseia na diluição das fronteiras para o fluxo de capitais e dos trabalhadores nômades da produção imaterial –, para certas parcelas da população a exclusão territorial extrapola os limites da metrópole biopolítica e ocorre em nível transnacional. O site britânico Internet Eyes,200 por sua vez, foi desenvolvido por uma empresa privada de segurança e

                                                                                                               

195BRUNO, op. cit., p.71. 196 Ibidem, p. 26.

197 Disponível em:<http://www.ondefuiroubado.com.br>. Acesso em: 10 jun. 2015. 198 Disponível em:<http://chegadefiufiu.com.br>. Acesso em: 10 jun. 2015. 199Ver BRUNO, op. cit., p. 134.

fornece acesso às filmagens das câmeras de seus clientes, oferecendo recompensas e prêmios em dinheiro ao internauta que detectar atividades ilegais ou suspeitas.

Assim como ocorre em algumas plataformas colaborativas, também as redes sociais podem se tornar um terreno propício à propagação de comportamentos situados no limite tênue entre a participação cidadã e o patrulhamento do outro. No episódio recente da crise hídrica no Sudeste brasileiro, no início do ano de 2015, foi usual testemunhar o compartilhamento de denúncias de desperdício de água, por exemplo, fotos de pessoas lavando as calçadas em frente às suas casas.201 Se é importante incentivar a conscientização acerca do consumo responsável da água, resta questionar se a melhor forma de fazê-lo é expondo registros não autorizados de pessoas em seus ambientes domésticos. Os relatos com frequência geravam reações violentas, alimentando um clima de condenação coletiva que inclusive não se justifica inteiramente, uma vez que o consumo doméstico de água no Brasil, segundo o Ministério do Meio Ambiente, corresponde a apenas 8% do total.202 O tom agressivo assumido pelas mensagens pode ser ilustrado por esse comentário reproduzido em uma notícia sobre o uso das redes sociais para reportar o mau uso da água: “[...] quer morrer de sede morre sozinha! [...] É até bom passar uns dias sem água. Aí sim aprende a dar valor”.203