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CAPITALISMO COGNITIVO E TRABALHO IMATERIAL

TECNOPOLÍTICAS

1.2 REDES SOCIOTÉCNICAS, TRABALHO IMATERIAL E METRÓPOLE

1.2.4 CAPITALISMO COGNITIVO E TRABALHO IMATERIAL

Hoje, em contrapartida, vemos redes por toda a parte – organizações militares, movimentos sociais, formações empresariais, modelos de migração, sistemas de comunicação, estruturas fisiológicas, relações linguísticas, transmissores neurológicos e até mesmo relações pessoais. Não é que não existissem redes anteriormente ou que a estrutura do cérebro tenha mudado. É que a rede tornou-se uma forma comum que tende a definir a nossa maneira de entender o mundo e de agir nele. E sobretudo, da nossa perspectiva, as redes são a forma de operação das relações cooperativas e comunicativas determinadas pelo paradigma imaterial de produção. A tendência dessa forma comum para se manifestar e exercer sua hegemonia é o que define o período.124

Assim como Bauman e Castells, Hardt e Negri também demonstram como a ampliação da conectividade e os recentes avanços tecnológicos agem na transição dos modos de produção fordistas para um modelo de capitalismo globalizado e flexível, baseado em fluxos informacionais e financeiros. Esse novo paradigma é identificado por vários termos: capitalismo rizomático, conexionista, rentista, em

rede ou cognitivo. Tais transformações teriam levado à perda de hegemonia do trabalho industrial para

aquilo que denominam trabalho imaterial, fundamentado pela produção de conhecimento e comunicação (trabalho intelectual ou linguístico), ou de relações e reações emocionais (trabalho afetivo). Ao afirmar tal “perda de hegemonia”, os autores estariam, na verdade, apontando uma tendência, não uma substituição consolidada, pois o trabalho industrial, portanto, segue existindo e, até mesmo, prevalecendo em termos numéricos: “A forma hegemônica não é dominante em termos quantitativos, e sim na maneira como exerce um poder de transformação sobre as outras”.125 Apesar de sua expressividade dimensional, não é mais o modelo fabril, portanto, que orienta a lógica da produção contemporânea, especialmente nos países hegemônicos ocidentais e nas grandes metrópoles.

As atividades que caracterizam essa nova forma de trabalho variam da produção de “ideias, símbolos, códigos, textos, formas linguísticas, imagens”, até a manipulação de afetos, de bem-estar, ou de entusiasmo, como no “trabalho de assessores jurídicos, comissários de bordo e atendentes de lanchonetes (serviços com sorriso)”.126

O termo imaterial não se refere às forças ou às estruturas mobilizadas para seu desenvolvimento, mas a seu tipo de produto. Na medida em que não produz necessariamente bens materiais, mas                                                                                                                

124 HARDT; NEGRI[3], 2005, p.191. 125 Ibidem, p.148.

sobretudo relacionamentos e sociabilidade, o trabalho imaterial pode ser chamado também de trabalho

biopolítico.127 Hardt e Negri fazem aqui uma alusão ao conceito criado por Michel Foucault, em

referência a transformações no regime de exercício do poder, no momento de dissolução dos Estados soberanos. Essa ruptura ocasionaria a necessidade de novos dispositivos, distribuídos em dois modelos principais: a disciplina, voltada ao controle dos corpos, e a biopolítica, orientada não a cada indivíduo, isoladamente, mas à população como espécie.128 “Trata-se de uma forma de poder que rege e regulamenta a vida social desde dentro, seguindo-a, interpenetrando-a, assimilando-a e a reformulando”.129 Os autores, contudo, ampliam a acepção de Foucault para aplicá-la aos múltiplos mecanismos de controle da sociedade contemporânea, destinando ao termo um sentido muito mais abrangente e paradoxal – de maneira que possa, inclusive, referir-se às forças contra-hegemônicas ou minoritárias.130

“O adjetivo biopolítico indica, assim, que as distinções tradicionais entre o econômico, o político, o social e o cultural tornam-se cada vez menos claras”.131 Vinculado diretamente à expansão e à consolidação das redes globais de comunicação e às noções de fluxos, adaptabilidade e mobilidade, a formação dessa nova estrutura instaura novas modalidades de controle,“através de mecanismos de monitoramento mais difusos, flexíveis, ondulantes, ‘imanentes’, incidindo diretamente sobre os corpos e as mentes, prescindindo das mediações institucionais antes necessárias”.132

Os dispositivos biopolíticos permitem, portanto, que a produção em rede invada todos os momentos da vida, borre os limites entre trabalho e lazer e possibilite uma penetração crescente do controle pelo capital, de maneira dispersa e sutil. Se, no modelo industrial, o trabalhador interrompe suas atividades no momento em que deixa a fábrica, o mesmo não pode ser dito do trabalho voltado à criação de ideias, de símbolos ou da linguagem. Ao pensarmos na lógica atual de funcionamento da internet, veremos como não trabalhamos exclusivamente para nossos “empregadores” ou “contratantes” diretos, uma vez que grande parte da atividade online consiste na produção de algum tipo de conteúdo – em sua

                                                                                                               

127 Para uma caracterização mais pormenorizada de trabalho biopolítico, ver o capítulo 1.2 de: HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.

128 PELBART, 2011, p. 57. 129 Ibidem, p.82.

130 A noção do exercício de poder por meio da produção de subjetividades será explorada também na leitura que Deleuze faz de Foucault, a partir do conceito de “sociedade de controle”, discussão que será abordada neste trabalho no tópico 1.3.4.

131 HARDT; NEGRI[2], 2001, p.150. 132PELBART, op. cit., p. 81.

maioria, utilizado para fins dos quais sequer estamos cientes. Por outro lado, também acessamos, consumimos e partilhamos avalanches de informações produzidas por outros e disponibilizadas na rede.

Essa mobilização integral do circuito produção/consumo é apontada por Maurizio Lazzarato em

O imaterial,133 com coautoria de Negri, obra que explora as principais características e particularidades dos novos modos de trabalho, especialmente em contraposição ao trabalho industrial anteriormente predominante. Os autores demonstram como seus procedimentos não se restringem a criar produtos, mas buscam produzir um mercado e moldar seus consumidores. Nesse sentido, os fluxos de informação e os processos de subjetivação tornam-se elementos imprescindíveis.

O trabalho imaterial se encontra no cruzamento (é a interface) desta nova relação produção/ consumo. É o trabalho imaterial que ativa e organiza a relação produção/consumo. A ativação, seja da cooperação produtiva, seja da relação social com o consumidor, é materializada dentro e através do processo comunicativo. É o trabalho imaterial que inova continuamente as formas e as condições da comunicação (e, portanto, do trabalho e do consumo). Dá forma e materializa as necessidades, o imaginário e os gostos do consumidor. E estes produtos devem, por sua vez, ser potentes produtores de necessidades, do imaginário, de gostos. A particularidade da mercadoria produzida pelo trabalho imaterial (pois o seu valor de uso consiste essencialmente no seu conteúdo informativo e cultural) está no fato de que ela não se destrói no ato do consumo, mas alarga, transforma, cria o ambiente ideológico e cultural do consumidor. Ela não reproduz a capacidade física da força de trabalho, mas transforma o seu utilizador.134

Hardt e Negri, contudo, enfatizam como o trabalho imaterial acaba por gerar uma produção de caráter social e comum que, em oposição aos bens materiais gerados pelo sistema fabril, expande o campo daquilo que pode ser compartilhado. É dessa maneira que as mesmas condições que possibilitam a penetração total do campo social pelos dispositivos do capitalismo cognitivo permitem, também, a gestação de práticas colaborativas em rede que podem apresentar alternativas aos modelos predominantes de orientação pelo consumo.

O que se afirma, isto sim, é que os muitos casos singulares de processos de trabalho, condições produtivas, situações locais e experiências vividas coexistem com um “devir comum”, num nível diferente de abstração, das formas de trabalho e das relações gerais de produção e troca – e que não existe contradição entre esta singularidade e a partilha. Este devir comum, que tende a reduzir as divisões qualitativas no trabalho, é a condição biopolítica da multidão.135

O trabalhador ideal ao novo diagrama capitalista é aquele que incorpora as características das associações em rede que vêm sendo discutidas até o momento: ele é leve, enxuto, tem a maior mobilidade possível, pode mudar-se tranquilamente de cidade, ou até de país. Essa nova personagem não se encaixa em uma hierarquia rígida, tem facilidade de adaptar-se a novos contextos e de assumir                                                                                                                

133 LAZZARATO; NEGRI, 2001. 134Ibidem, p. 45-46.

novos papeis; é capaz de se articular e de estabelecer contatos com atores diversos: “é um conector, uma ponte”.136 Se historicamente a figura do nômade, ou do migrante, ilustrou aquele que não se adequava à lógica de estabilidade do trabalho, ela agora representa perfeitamente o perfil conexionista em pauta. Revela-se aqui mais uma ambivalência: ao mesmo tempo em que o regime contemporâneo de migração constante constitui um dispositivo biopolítico de sujeição ao trabalho imaterial, também o fluxo desses agentes faz circular imensos volumes de saberes, competências e informações, “cada migrante traz consigo todo um mundo”.137 Ao ser continuamente compartilhado, transformado e multiplicado, esse conhecimento escapa da função de bem privado e se desloca para a esfera do comum, dando origem ao que passa a ser definido como inteligência coletiva.138

Pierre Lévy139 dedicou Inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço a explorar a emergência de um saber distribuído, construído coletivamente a partir do aumento da conexão entre as pessoas. Em vez de concebê-la como meramente a soma dos conhecimentos a circularem nas redes de comunicação, fundidas em um “magma indistinto”,140 o autor propõe que tal inteligência seja pensada como um processo de crescimento das múltiplas singularidades, por meio da intensificação do contato com o outro. Remete a trabalhar, aprender e pensar juntos sem, contudo, resultar na formação de comunidades fetichizadas ou hipostasiadas.141 Como já mencionado, a valorização da alteridade ocupa uma posição central no conceito.

As consequências éticas dessa nova instituição da subjetividade são imensas: quem é o outro? É alguém que sabe. E sabe as coisas que eu não sei. O outro não é mais um ser assustador, ameaçador: como eu, ele ignora bastante e domina alguns conhecimentos. Mas como nossas zonas de experiência não se justapõem ele representa uma fonte possível de enriquecimento de meus próprios saberes. Ele pode aumentar meu potencial de ser, e tanto mais quanto mais se diferir de mim.142

                                                                                                               

136 PELBART, op. cit., p. 97-100. 137 HARDT; NEGRI [2], op. cit., p.180. 138 LÉVY, 2007.

139Pierre Lévy (1956-), filósofo francês pesquisador das mídias digitais. 140LEVY, op. cit., p. 32.

141Ibidem, p. 28-29.