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DO PANÓPTICO À SOCIEDADE DE CONTROLE

TECNOPOLÍTICAS

1.3 DISPOSITIVOS BIOPOLÍTICOS: VIGILÂNCIA, MONITORAMENTO E ESPETÁCULO Esta seção é dedicada à discussão dos diversos mecanismos atuantes nas redes

1.3.4 DO PANÓPTICO À SOCIEDADE DE CONTROLE

No livro Vigiar e punir,204 Foucault dedica um capítulo à análise do panoptismo, que define como o diagrama dos mecanismos de poder da sociedade disciplinar, modelo que sucede as sociedades

de soberania, iniciando-se no século XVIII e chegando ao auge no início do século XX. O exercício do

poder em tais sociedades se daria por meio do confinamento, os indivíduos sendo controlados pela sucessão de instituições fechadas que regulam seu cotidiano: a escola, a caserna, a fábrica e, eventualmente, o hospital ou a prisão.205 O conceito de panóptico, portanto, refere-se a uma estrutura de vigilância centralizada – que possibilita ao vigia observar todos aqueles submetidos à sua guarda sem, contudo, ser visto por eles – e deriva da solução arquitetônica idealizada por Jeremy Bentham no final do século XVIII para aprimorar a eficácia dos edifícios prisionais:

                                                                                                               

201 As denúncias de desperdício de água nas redes sociais foram objeto de reportagens de diversos jornais no período, como: <http://www.colatinanews.com/flagrante-de-desperdicio-de-agua-em-colatina-gera-revolta-nas-redes-sociais/>. Acesso em: 10 jun. 2015.

202 Disponível em: <http://www.mma.gov.br/estruturas/secex_consumo/_arquivos/3%20-%20mcs_agua.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2015.

203Disponível em: <http://www.colatinanews.com/flagrante-de-desperdicio-de-agua-em-colatina-gera-revolta-nas-redes-sociais/>. Acesso em: 10 jun. 2015. 204FOUCAULT [3], 1999.

O Panóptico de Bentham é a Figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.206

A condição de ver sem ser visto é o que garante o êxito do sistema. A consciência de poder estar sob constante vigilância leva o observado (detento, enfermo, estudante, louco, funcionário etc.) a agir conforme as regras impostas. Ainda que o monitoramento seja descontínuo, fato que o vigiado não tem recursos para conhecer, é instaurado um campo de visibilidade que assegura a permanência de seus efeitos.207 O modelo proposto, evidentemente, repercute sobre subjetividades e molda condutas: “o panóptico pode ser utilizado como máquina de fazer experiências, modificar o comportamento, treinar ou retreinar os indivíduos”.208

Ao comparar o panoptismo com os dispositivos de controle examinados ao longo desta seção, pode-se observar similaridades e diferenças. Certamente, a presença permanente de um campo (ou melhor, de vários campos) de visibilidade é mantida, assim como se confirmam os desdobramentos da vigilância ininterrupta nos processos de subjetivação e nas práticas sociais.

O que não se conserva, porém, é o caráter centralizado, hierarquizado e bem definido do vigilante. A torre central pode não tornar visíveis os guardiões em seu interior, mas não deixa dúvidas com relação ao ponto de origem e aos objetivos da vigilância. Hoje, é como se essas estruturas se multiplicassem e se espalhassem, inúmeros mini-panópticos distribuídos. A “dissociação do par ver-ser- visto”,209 na qual o panoptismo se baseia, também é rompida: todos potencialmente veem e são vistos o tempo inteiro.

Estas distinções podem ser entendidas a partir da transição da sociedade disciplinar, que entra em declínio a partir da II guerra mundial, para o que tem sido identificado como sociedade de controle.

                                                                                                               

206FOUCAULT[3], op. cit., p.165-166. 207Ibidem, p.167-168.

208Ibidem, p.167-168.

Segundo Deleuze,210 esse novo modelo não se baseia no confinamento, como seu predecessor, mas pelo controle contínuo e pela comunicação instantânea. Os dispositivos disciplinares (escola, caserna, fábrica) constituiam meios sucessivos, porém distintos de exercício de poder. Na passagem de um ao seguinte, sempre se interrompia um processo e se iniciava outro, preservando limites bem definidos. Na sociedade de controle, “nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço, sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal” – 211 de maneira semelhante ao que foi apresentado na seção anterior sobre os mecanismos do capitalismo imaterial. O controle torna-se, portanto incessante e passa a ocorrer em meio aberto. 212

Nesse sentido, Bruno propõe um conjunto de sete atributos a partir dos quais busca sintetizar as características da vigilância distribuída em rede, notórias na sociedade de controle:213

• Ubiquidade e descentralidade: de forma diversa à ideia do “panóptico” trabalhada por Foucault,214 que sugere estruturas centralizadas e hierárquicas, a vigilância contemporânea configura um sistema descentralizado e mutante, que mobiliza uma rede complexa de atores, alvos e interesses.

• Como se pode inferir do item anterior, a diversidade de “tecnologias, práticas, propósitos e objetos” é outro atributo fundamental dessa categoria de vigilância. Os dispositivos potenciais englobam câmeras de CFTV públicas ou privadas, webcams, smartphones, rastreadores de navegação na internet, sistemas de mineração de dados, etiquetas RFID, sistemas de GPS, drones, sensores dos mais diversos tipos incorporados ao ambiente construído etc.

• O terceiro aspecto se deve ao fato de que a vigilância não se aplique mais a grupos ou indivíduos específicos (detentos, pacientes de instituições de saúde etc.) e de não existir mais uma separação clara entre os que vigiam e os que são vigiados. A indiscernibilidade da vigilância contemporânea produz situações em que toda e qualquer pessoa ou grupo é alvo potencial de monitoramento, ao mesmo tempo que, em alguma medida, todos exercem – ainda que eventualmente – o papel do vigia.

                                                                                                               

210DELEUZE, op. cit., p. 215-224. 211Ibidem, p. 222.

212Ibidem, p. 217.

213 BRUNO, op. cit., p. 28-29. 214FOUCAULT apud ibidem, p. 29.

• O quarto atributo deriva do fato de que a vigilância muitas vezes ocorra como causa secundária, ou efeito colateral, de dispositivos projetados para fins distintos. Isso ocorre em tecnologias pensadas inicialmente para múltiplos propósitos como sociabilidade, comunicação, geolocalização etc., que acabam se tornando fornecedores de bancos de dados extensos para monitoramento e controle. “A sua ação, além de envolver uma rede de múltiplos agentes heterogêneos, supõe que estes muitas vezes deslocam as ações uns dos outros, produzindo sentidos que não podem ser previstos de antemão, mas que são decisivos para os efeitos que se produzem”.215 • O envolvimento de agentes humanos e não humanos é o quinto item proposto por

Bruno, podendo ser feita aqui uma relação direta com as ideias de Latour sobre a agência de coisas e objetos na Teoria Ator-Rede, como apresentado na seção 1.1.216

• O sexto atributo se relaciona ao fato de que a vigilância contemporânea extrapole os circuitos de “controle, segurança e normalização”,217 incorporando-se a circuitos de entretenimento e prazer. Daí seu papel fundamental nos processos de produção de subjetividade e dos modos de ver e ser visto da atualidade, reforçando seu caráter biopolítico. Incluem-se aqui dispositivos cotidianos como reality shows, blogs, redes sociais, aplicativos de “automonitoramento e cuidado de si” etc.

• O sétimo atributo se conecta ao caráter participativo e colaborativo assumido por certas práticas de vigilância, como discutido anteriormente. Nesses casos, “indivíduos são mobilizados a adotar uma atenção e um olhar vigilantes sobre o outro, a cidade, o mundo”.218

Para encerrar a reflexão sobre a emergência das sociedades de controle (publicada em 1990 no

L’Autre Journal), Deleuze afirma “não há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo

de controle que dê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal numa reserva, homem numa empresa (coleira eletrônica)”, e faz referência a seu parceiro intelectual Félix Guattari, que “imaginou uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartão

                                                                                                               

215 BRUNO, op. cit., p.32.

216A participação de atores não humanos nos processos sociais, segundo Bruno Latour, é discutida no item 1.1 do presente trabalho. 217 BRUNO, op. cit., p.34.

eletrônico [...] que abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser recusado [...]; o que conta não é a barreira, mas o computador que detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal”.219

O momento vislumbrado pelos autores chegou, e dispositivos como os descritos por eles tornaram-se elementos corriqueiros da vida urbana cotidiana. Seus possíveis efeitos são, sem dúvida, alarmantes. O aspecto rizomático e movente das modalidades de controle contemporâneas parece, muitas vezes, torná-las mais ameaçadoras e inescapáveis do que a delimitação precisa do modelo anterior. No entanto, uma última e fundamental diferença entre as duas formas pode apontar caminhos para a constituição de associações mais transversais e orientadas por lógicas diversas à vigilância e à suspeição constantes: a ruptura com a “invisibilidade lateral”,220 que isola os observados e garante a ordem no panoptismo.

Se os detentos são condenados, não há perigo de complô, de tentativa de evasão coletiva, projeto de novos crimes para o futuro, más influências recíprocas; se são doentes, não há perigo de contágio; loucos, não há o risco de violências recíprocas; crianças, não há cola, nem barulho, nem conversa, nem dissipação. Se são operários, não há roubos, nem conluios, nem nada dessas distrações que atrasam o trabalho, tornam-no menos perfeito ou provocam acidentes. A multidão, massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas. Do ponto de vista do guardião, é substituída por uma mutiplicidade enumerável e controlável; do ponto de vista dos detentos, por uma solidão sequestrada e olhada.221

Na próxima seção, assim, a comunicação em rede será abordada a partir de seu potencial para reunir, engajar, promover a colaboração e o compartilhamento de conhecimento.

                                                                                                               

219DELEUZE, op. cit., p.224-225. 220FOUCAULT [3], op. cit., p. 166. 221Ibidem (grifo da autora).