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PLANEJAMENTO E PARTICIPAÇÃO: DO MODELO TECNOCRÁTICO À BUSCA POR DESCENTRALIZAÇÃO

DISPOSITIVOS URBANOS

2.1 CONSIDERAÇÕES PARA UM URBANISMO DE SEGUNDA ORDEM

2.1.1 PLANEJAMENTO E PARTICIPAÇÃO: DO MODELO TECNOCRÁTICO À BUSCA POR DESCENTRALIZAÇÃO

Os principais instrumentos de planejamento e gestão urbanos vigentes no Brasil atual se dizem participativos e apoiam a “participação popular” como prática fundamental à elaboração de políticas públicas urbanas. Vários autores, como Marcelo Lopes de Souza296 (em Mudar a cidade: uma

introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanas), e Silke Kapp297 (em “Direito ao espaço cotidiano: moradia e autonomia no plano de uma metrópole”), contudo, questionam a efetividade dos referidos mecanismos,que, muitas vezes, não promovem mais do que uma “participação entre aspas”: restrita à função eletiva, desprovida de poder decisório e utilizada, principalmente, para validar propostas realizadas de maneira centralizada, heterônoma e tecnocrática.298 Kapp chega a denunciar o uso das expressões participação, em geral, e, especialmente, participação popular. A pesquisadora remete à explicação de Giorgio Agamben sobre a ambiguidade contida nas línguas europeias modernas, em que o termo povo se associa tanto ao sujeito político por excelência quanto às classes usualmente excluídas da política, como os pobres e os deserdados. A segunda acepção revela o caráter de distinção, em geral pejorativo, que a palavra implica: “se há o popular, deve haver o não popular”.299

                                                                                                               

294CABRAL FILHO [2], 2013, p. 1358.

295 O tópico 2.1.1 foi extraído do artigo “Cidades de código aberto: por um urbanismo de segunda ordem”, de Ana Isabel de Sá, publicado online na revista V!RUS, v. 10, 2014. O texto original, aqui reproduzido com adaptações, está disponível na íntegra em: <http://www.nomads.usp.br/virus/ virus10/?sec=4&item=5&lang=pt>.

296Marcelo Lopes de Souza é Doutor em Geografia pela Universidade de Tübingen, na Alemanha, e professor da UFRJ. É também coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial (NuPeD).

297Silke Kapp é arquiteta, Doutora em Filosofia pela UFMG e professora na Escola de Arquitetura dessa mesma universidade, onde coordena o grupo de pesquisa MOM – Morar de Outras Maneiras.

298 SOUZA, 2013, p. 182. 299KAPP, 2012, p. 468.

Na seção 1.1 do presente trabalho, discutiu-se a ruptura com o discurso de neutralidade científica provocada pela cibernética, especialmente em sua versão de segunda ordem. O reconhecimento da presença e da interferência do pesquisador representam um passo importante para o desenvolvimento de uma abordagem cujos adeptos argumentam proporcionar maior liberdade, mas, em contrapartida, mais responsabilidade sobre o conhecimento produzido. A defesa da imparcialidade, no entanto, perdura em diversos meios, dentre eles o planejamento e a gestão urbana. Souza demonstra como, nesses universos, a figura do especialista “pretensamente neutro e imparcial” é central.300 Sobretudo nas correntes tecnocráticas, sua suposta objetividade é alegada para legitimar processos impermeáveis à participação cidadã, ou em que a participação existente não produza oportunidades efetivas de decisão. Não obstante a importância do conhecimento especializado e dos profissionais qualificados, recorre-se com frequência ao rigor tecnicista para justificar propostas baseadas em análises e diagnósticos que se dizem neutros, mas cuja elaboração releva os verdadeiros anseios dos usuários.

O modelo de planejamento predominante no Brasil atual é identificado por Souza como “planejamento politizado”.301 Tendo como principais instrumentos os novos planos diretores, elaborados sob a orientação do Estatuto da Cidade (2001), o padrão configura uma adaptação à esquerda do “planejamento estratégico”.302 Embora geralmente baseado no ideário de reforma urbana e incorporando avanços na crítica social, se comparado ao planejamento regulatório modernista, o formato superestimaria a importância de leis e planos, dedicando pouca atenção à implementação efetiva de processos participativos decisórios. Acaba-se por reforçar práticas e valores tecnicistas, configurando o que o autor denomina “tecnocratismo de esquerda”.303

O Estatuto da Cidade fixa diretrizes para a elaboração de políticas urbanas e define a obrigatoriedade da “gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”.304 O tratamento dado à participação cidadã no Estatuto, entretanto, é notavelmente vago. Ao não estabelecer se seu papel deve ser decisório ou meramente consultivo (o que ocorre na maior parte das situações), acaba por converter a participação

                                                                                                               

300 Ibidem.

301 SOUZA, op. cit., p. 162.

302 Para uma descrição pormenorizada das principais abordagens de planejamento urbano da atualidade, dentre as quais consta o “planejamento politizado”, em referência às práticas mais recorrentes no Brasil, ver Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos, parte II, de Souza, 2013. 303 SOUZA, op. cit., p.163.

institucionalizada em mais uma tarefa a ser levada adiante para cumprir exigências burocráticas. Nesse sentido, pode-se questionar novamente a pertinência do próprio termo participação, já que, independentemente de seu grau de implementação, sempre “sugere uma outra instância, não composta pelos próprios ‘participantes’, que determina e coordena o processo”.305

A noção dessa “outra instância”, externa ao contexto socioespacial de uma ação proposta, mas supostamente mais capacitada para decidir em seu favor, explicita o caráter heterônomo dos mecanismos usuais de planejamento e gestão das cidades, relacionando-se diretamente ao modelo de distanciamento do observador antes mencionado. A defesa de um formato que prioriza a participação puramente consultiva, preservando a primazia do especialista para a tomada de decisões e a elaboração de propostas, se baseia em um argumento técnico: após ouvida a população na etapa participativa, os

experts seriam os mais aptos a materializar suas demandas, determinando o que é ou não viável e

fornecendo as soluções mais apropriadas a cada caso. Para muitos, a justificativa é suficiente: o conhecimento especializado atribui a determinado grupo maior habilidade para definir propostas melhores ou mais criativas, garantidas contra interesses políticos preestabelecidos pela perspectiva de neutralidade. Em que pese a ingenuidade por trás de tal discurso – ou rejeição intencional de reconhecimento da responsabilidade –, a fragilidade de uma abordagem tecnicista de gabinete se revela quando contraposta à complexidade incapturável das variáveis nos “sistemas-cidade”.

Retornando brevemente aos conceitos apresentados na seção 1.1, acredita-se que o pensamento da cibernética de segunda ordem, notadamente sob a ótica do postulado ético de Von Foerster – “aja sempre de forma a aumentar o número possível de escolhas” –,306 traz questionamentos valiosos às políticas atuais de planejamento, à constituição de ferramentas mais abertas à colaboração coletiva e à ampliação de processos decisórios. Propõe-se fazer um contraponto entre os argumentos apresentados acima e as propostas da Lei de Ashby,307 ainda que, basicamente, sob um ponto de vista operacional.

A Lei de Ashby determina que, para que qualquer sistema seja efetivamente controlado por outro, não restringindo seus possíveis resultados a priori, o sistema “controlador” deve ter, no mínimo, a mesma variedade de elementos que o sistema controlado.308 Se considerarmos as cidades como sistemas controlados – com sua enorme complexidade de articulações, conexões e atores –, e os mecanismos tradicionais de planejamento urbano como sistemas controladores, resta apenas deduzir que os últimos                                                                                                                

305 KAPP, 2012, p. 467-468.

306 FOERSTER apud GLANVILLE, op. cit., p. 6, tradução livre. 307 Law of Requisite Variety (1956).

operam, necessariamente, por restrição. Ou seja, por mais que uma estrutura institucional, burocrática e hierárquica possua uma equipe qualificada e organizada, tal arranjo, por si só, dificilmente será capaz de dar respostas que correspondam à variedade encontrada em sistemas como as metrópoles contemporâneas.

No artigo “The Value of Being Unmanageable: Variety and Creativity in CyberSpace”,309 Glanville parte da Lei de Ashby para discutir formas de lidar com sistemas complexos (ou seja, potencialmente “inadministráveis”). Além do procedimento de restrição da complexidade, exemplificado acima, o autor apresenta duas possibilidades: o controle mútuo entre grupos, ou a aceitação da “inadministrabilidade” e o reconhecimento da vida como algo fora de controle.310 Se, de um lado, a segunda alternativa envolve uma mudança filosófica profunda – e talvez demasiado abstrata para se aplicar à produção efetiva de processos e ferramentas de planejamento –, a primeira opção, de outro, revela um horizonte fértil.

Glanville demonstra como o termo controle assumiu uma conotação negativa a partir da associação com regimes ou personalidades autoritários. No entanto, em oposição ao que prega o senso comum, uma relação de controle não pressupõe, necessariamente, um sentido linear unidirecional, podendo acontecer de forma circular entre os participantes de um dado sistema. Assim, é possível que exista controle, o que é imprescindível ao funcionamento cotidiano das cidades, sem que haja empobrecimento das variáveis ou autoritarismo.311 Para que isso se concretize, contudo, se faz necessário transformar as estruturas e os instrumentos vigentes, expandindo-os de forma a abranger múltiplos atores e criando mecanismos que possibilitem operacionalizar modelos de controle melhor distribuídos. Descentralizar e distribuir tornam-se, portanto, tarefas fundamentais a serem empreendidas na busca por um urbanismo de segunda ordem.

                                                                                                               

309Ibidem.

310Ibidem,p. 5.