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TECNOPOLÍTICAS

1.1 SISTEMA, REDE, DIAGRAMA

1.1.3 ATOR-ACTANTE

A noção de ator ou actante, em Latour, não se refere necessariamente à origem da ação, mas a todo ser ou coisa levado a agir por um conjunto de forças que o atinge: “um ator, na expressão ator-rede, não é a fonte de uma ação, mas o alvo móvel de um vasto conjunto de entidades convergindo em sua direção”.81 O autor expande o conceito de ator social, ou actante,82 tradicionalmente reservado aos seres humanos, a agentes não humanos. Na sua concepção, estes não apenas agem e participam de relações sociais em conexão com atores humanos, como são também imprescindíveis para que tais associações ocorram – o que não implica em dotá-los de intencionalidade, ou em sugerir que objetos ajam em substituição às pessoas. Trata-se, no entanto, de reconhecer que as “coisas” não funcionam somente como um pano de fundo para a ação humana, mas envolvem-se diretamente nos processos de                                                                                                                

79Ibidem, p.30.

80DELEUZE; GUATTARI, op. cit., v.1, p.31. 81 LATOUR [2], op. cit., p.46, trad.livre.

82 Latour utiliza tanto os termos ator quanto actante, em referência às entidades levadas à ação. Na página 54 de Reassembling the Social, o autor argumenta que a opção por actante, que tem origem nos estudos literários, se dá buscando romper com a influência e com os riscos da figuração, que traz consigo uma série de entes concretos. A expressão actante, diversamente, permitiria rastrear as forças que carregam uma ação de maneira mais isenta de pre-concepções. Na página 09, Latour sugere que uma das várias denominações alternativas possíveis para a Teoria Ator Rede seria “Ontologia Actante-Rizoma”.

associação, interagindo com os demais actantes: “tudo aquilo que causa alguma diferença, que modifica o estado prévio das coisas, é um ator”.83

Se você consegue afirmar que bater um prego com ou sem um martelo, ferver água com ou sem uma chaleira, fazer compras com ou sem uma cesta, andar na rua com ou sem roupas, (...) são exatamente as mesmas atividades; que a introdução desses implementos mundanos não muda “nada importante” para a realização destas tarefas, então você está pronto para migrar para a “Terra Distante do Social”. Para todos os outros membros da sociedade, existe uma diferença comprovável. Esses implementos, portanto, segundo a nossa definição, são atores, ou mais precisamente, participantes de um curso de ação aguardando uma figuração.84

Se por um lado a expansão e a inovação tecnológica – sobretudo por meio das redes digitais de comunicação – tornam mais visíveis os rastros da participação de dispositivos não humanos na formação de laços sociais, tal função não se restringe apenas a esse tipo de ferramentas. Inúmeros objetos cotidianos também agem continuamente, ainda que a natureza rotineira que certos artefatos adquiram façam com que suas ações se tornem “mudas”, deixando de produzir rastros identificáveis. Quando isso ocorre, esses entes deixam de ser mediadores e conformam intermediários: carregam sentido ou força sem transformação: basta seu input para prever seu output. Intermediários permanecem “silenciosos” até que situações específicas os tragam de volta ao papel de mediação: panes, acidentes ou encontros com usuários estranhos a seu funcionamento; fenômenos capazes de romper seu silêncio.

Latour sugere que a maneira pela qual mediadores e intermediários “transportam” aquilo que se desloca entre associações (informação, valores, significados, símbolos, sentimentos, habilidades cognitivas etc.) seja analisado a partir do termo plug-ins,85 que toma emprestado do vocabulário da web.

Plug-ins seriam, então, os veículos que carregam esses pequenos pedaços que se agregam para compor

os atores humanos: “se nós conseguimos comprovar que estâncias glorificadas como o global e local são feitas de ‘entidades circulantes’, por que não postular que subjetividades, justificativas, inconsciente e personalidades também circulem?”.86

Como conceber a atuação dos plug-ins, contudo, sem entendê-los como controladores deterministas da nossa interioridade, agentes que manipulam a liberdade individual, submetendo-nos a indesejáveis imposições? Diante do problema, o autor propõe uma nova questão: que outra maneira haveria de produzirmos nossas subjetividades e nossas personalidades, senão por meio de infindáveis associações? Emancipação e liberdade podem vincular-se mais com a possibilidade de se estar bem conectado, do que livre de amarras, como no                                                                                                                

83 LATOUR [2], op. cit., p. 71, trad.livre. 84 LATOUR [2], op. cit., p.71, trad.livre. 85 ibidem, p.203-212.

princípio das multiplicidades – definidas pelo fora, pelas linhas de fuga ou de desterritorialização que as levam a mudar de natureza ao se conectarem umas às outras.87 “O número de ligações não deve ser reduzido para que encontremos, enfim, o santuário do ser. Ao contrário, como William James engenhosamente demonstrou, é multiplicando as conexões com o fora que se criam condições de capturar como o dentro é construído”.88

1.1.4 DIAGRAMA

No lugar de adotar o termo sociedade, Latour prefere identificar como coletivo o meio compartilhado pelos atores e actantes reunidos a partir de associações.

A alternativa que proponho neste livro é tão simples que pode ser sintetizada em uma breve lista: a questão do social emerge quando os laços em que algum ser está enredado começam a se desvendar; o social é mais profundamente detectado por meio dos movimentos surpreendentes de uma associação à seguinte; os referidos movimentos podem ser suspensos ou restabelecidos. Quando são prematuramente suspensos, o social tal como concebido normalmente é recomposto com participantes previamente aceitos como ‘atores sociais’, membros de uma ‘sociedade’; quando o movimento em direção à detecção é restabelecido, ele rastreia o social como associações por meio de muitas entidades ‘não-sociais’ que podem vir a se tornar participantes. Caso se persista sistematicamente, esse rastreamento pode levar a uma definição compartilhada de um mundo comum, o que eu chamo de coletivo. Se não houver procedimentos para torná-lo comum, sua montagem pode ser falha. Finalmente, a sociologia é melhor definida como a disciplina na qual os participantes se engajam explicitamente em reagregar o coletivo.89

Sendo assim, pode-se entender a noção de coletivo como algo além da simples soma ou agrupamento de seres sob algum domínio específico. Os movimentos citados por Latour remetem mais a fluxos que mobilizam ações do que a tramas constituídas ou organismos estáticos, campos de forças catalisadoras de associações que mantém conectados atores e actantes. A concepção mencionada aproxima-se daquilo que Deleuze identifica como diagrama, ou máquina abstrata, uma potência constituinte, situada no plano das intensidades, que ativa agenciamentos no campo social. “A máquina abstrata é como a causa dos agenciamentos concretos que efetuam suas relações; e essas relações de força passam ‘não por cima’, mas pelo próprio tecido dos agenciamentos que produzem”.90

O diagrama não tem forma ou substância predeterminada, não se define por uma estrutura existente, não produz representações; é uma função, ou “funcionamento, [...] que deve destacar-se de qualquer uso específico”. Assim como o mapa, no princípio de cartografia e da decalcomania, o diagrama cria novas realidades, “faz a história desfazendo as realidades e as significações anteriores,                                                                                                                

87 DELEUZE; GUATTARI, op. cit., v.1, p.25. 88 LATOUR [2], op. cit., p. 215, trad.livre. 89 Ibidem, p. 247, trad.livre.

formando um número equivalente de pontos de emergência ou de criatividade, de conjunções inesperadas, de improváveis continuuns. Ele duplica a história com um devir”.91

O diagrama, ou a máquina abstrata, é o mapa das relações de forças, mapa de densidade, de intensidade, que procede por ligações primárias não localizáveis e que passa a cada instante por todos os pontos, ‘ou melhor, em toda a relação de um ponto a outro’. Certamente, nada a ver com uma ideia transcendente, nem com uma superestrutura ideológica; nada a ver tampouco com uma infraestrutura econômica, já qualificada em sua substância e definida em sua forma e utilização. Mas não deixa de ser verdade que o diagrama age como uma causa imanente não unificadora, estendendo-se por todo o campo social: a máquina abstrata é como a causa dos agenciamentos concretos que efetuam suas relações; e essas relações de força passam, ‘não por cima’, mas pelo próprio tecido dos agenciamentos que produzem.92

Por causa imanente, Deleuze define a causa que se atualiza através seus efeitos. Nesse sentido, a máquina abstrata, a causa, pressupõe forças virtuais,93 potenciais; determina possibilidades que tomam forma a partir da ação dos agenciamentos concretos ou dispositivos – os efeitos.94 A noção de máquina abstrata como diagrama informe leva à constatação de que a tecnologia é social antes que seja técnica. Resgata-se aqui o debate da TAR sobre a agência e o caráter associativo de objetos não humanos. Se de um lado os efeitos da “tecnologia material” atingem todo o campo social, de outro, para que essa própria tecnologia se concretize, é imprescindível que suas máquinas materiais tenham sido “primeiramente selecionadas por um diagrama, assumidas por agenciamentos [...] O estribo é selecionado pelo diagrama do feudalismo; o pau escavador, a enxada e o arado não formam um progresso linear, mas remetem respectivamente às máquinas coletivas que variam com a densidade da população e o tempo de pousio”.95

A abordagem da formação de coletivos sob um aspecto diagramático modifica, também, os sentidos convencionais de micro e de macrodomínios. Torna-se impossível aplicar tais parâmetros a partir dos indicadores usuais de escala (micro menor que macro), ou de pertencimento (macro contém micro), fazendo com que seja necessário caracterizá-los por meio da multiplicidade e da força das suas conexões – resultando em uma nova “relação topográfica” entre o antigo micro e o antigo macro. “Nenhum lugar domina o bastante para ser global, e nenhum outro é suficientemente autocentrado para que seja apenas local”.96

Deleuze e Guattari exploram a referida distinção a partir dos conceitos de molar e molecular, que, da mesma forma, não se distinguem pelas dimensões, mas pelo modo de organização e pela                                                                                                                

91 DELEUZE [2], op. cit., p. 43-45. 92 Ibidem, p.46.

93O termo virtual, em Deleuze, refere-se às forças que se encontram no plano das possibilidades, do que tem potencial para ser atualizado. Não se deve confundir com o uso coloquial da expressão que remete ao universo da internet: comunidade virtual, realidade virtual, namoro virtual etc.

94DELEUZE[2], op. cit., p. 46-47. 95Ibidem, p.49.

natureza das relações a que dão suporte. A forma molecular, ligada às micropolíticas, é mais flexível, opera no detalhe, na percepção, na afecção, na conversa.97 Se ela de fato passa por pequenos grupos, nem por isso está predestinada a ter menor abrangência. Sua propagação mais rizomática, fluida, conduzida nas linhas de fuga pode ativar sua vasta proliferação. A macropolítica, por outro lado, corresponde às estruturas hegemônicas cristalizadas, enrijecidas, centralizadas.

Assim como mapa e decalque ou árvore e rizoma, o molar e o molecular tampouco conformam campos isolados, mas convivem nos mesmos domínios, conformando vetores distintos, porém enredados nos mesmos movimentos associativos.

Toda sociedade, mas também todo indivíduo, são pois atravessados pelas duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e outra molecular. Se elas se distinguem, é porque não têm os mesmos termos, nem as mesmas correlações, nem a mesma natureza, nem o mesmo tipo de multiplicidade. Mas, se são inseparáveis, é porque coexistem, passam uma para outra, segundo diferentes figuras como nos primitivos ou em nós – mas sempre pressupondo a outra. Em suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica.98

Entender tais interseções interessa particularmente ao estudo das transformações relacionadas à expansão das tecnologias de comunicação em rede no mundo contemporâneo. As esferas globais ou locais, molares ou moleculares, são lidas recorrentemente sob um ponto de vista dicotômico, a partir do qual configurariam processos não apenas impermeáveis, mas geralmente opostos, concorrentes. Uma organização macro, no entanto, não atua necessariamente no sentido de extinguir, esmagar as micro formações. Segundo Deleuze e Guattari, a tendência contrária é muitas vezes o caso, quando a ampliação excessiva de um determinado organismo o conduz à molecularização de seus elementos: “quando a máquina devém planetária ou cósmica, os agenciamentos têm uma tendência cada vez maior a se miniaturizar e a devir microagenciamentos”.99 Da mesma maneira, a micropolítica não é obrigatoriamente oposta à macro, podendo agir de maneira a reforçar ou a contradizer as forças hegemônicas – não pressupondo uma diferença de orientação, mas de operação. Por último, é importante resistir à tentação de inferir que o micro será sempre bom, e o macro, mau. Os autores demonstram como os fascimos costumam brotar a partir de focos moleculares, pequenos organismos que se conectam uns aos outros, entranhando-se pelas brechas na sociedade. “É uma potência micropolítica ou molecular que torna o fascismo perigoso, porque é um movimento de massa: um corpo canceroso mais do que um

                                                                                                               

97DELEUZE; GUATTARI, 2011, v.3, p.102. 98 Ibidem, p.99.

organismo totalitário”.100 Exemplos de situações similares serão abordados na seção 1.3, a partir de casos de iniciativas colaborativas, ou entre pares, que se convertem em dispositivos de patrulhamento e vigilância.

Os conceitos apresentados brevemente nesta seção – sistema, rede, diagrama, rizoma – serão continuamente resgatados no decorrer do presente trabalho, no intuito de contribuir para a compreensão da dinâmica das relações sociais no mundo urbano contemporâneo. Na próxima seção, esses fenômenos serão analisados sob o ponto de vista das transformações nos meios de produção, no trabalho e nos modos de vida, a partir da consolidação das redes globais de comunicação digital.