• Nenhum resultado encontrado

URBANISMO ENTRE PARES

3.2 CATEGORIAS E EXEMPLOS

3.2.2 COMPARTILHAMENTO DE BENS E RECURSOS URBANOS

3.2.2.2 CASAS ABERTAS

Seja para hospedar um estrangeiro por vários dias ou apenas para oferecer um jantar, seja de maneira gratuita ou buscando complementar a renda mensal, a lógica do compartilhamento tem levado cada vez mais pessoas a abrirem as portas de suas casas para estranhos conectados em rede.

A ideia de rede de hospitalidade não é nova. Em 1949, um grupo de pacifistas incentivado pelos horrores da II Guerra Mundial fundou um sistema de trabalho, estudo e turismo baseado na premissa de levar pessoas a visitarem as casas de outras pessoas, em países estrangeiros. Em 1952, seus fundadores adotaram o nome Servas (que significa servir, em esperanto), passando a fazer parte da lista de organizações não governamentais da ONU em 1973.459 Os membros podem se inscrever no Servas como viajantes, anfitriões, ou mesmo anfitriões por um dia (nesse caso, não recebem ninguém em suas casas, mas levam visitantes para fazer passeios e conhecer lugares em suas cidades). Segundo o site da organização no Brasil, “os anfitriões Servas representam pessoas comuns. Os únicos requisitos para juntar-se ao Servas como anfitrião é a vontade de oferecer hospitalidade aos viajantes de qualquer raça, cultura, credo, nacionalidade ou orientação sexual”.460 A inscrição é feita mediante o envio de uma ficha solicitada por e-mail, seguido de uma entrevista presencial. Há, hoje, cerca de quinze mil “portas abertas” do Servas,461 espalhadas por diversos países.

O Couchsurfing462 funciona de maneira similar, porém se articula por meio das redes digitais de comunicação, o que lhe confere distribuição e alcance muito mais amplos. Estima-se que o sistema tenha, atualmente, mais de dez milhões de adeptos, em cerca de duzentas mil cidades do globo. Inaugurada em 2004, a plataforma baseia seus princípios na generosidade e na troca de experiências: “nós vislumbramos um mundo tornado melhor pelas viagens e viagens enriquecidas pela conexão.

Couchsurfers compartilham suas vidas com as pessoas que encontram, incentivando o intercâmbio

cultural e o respeito mútuo”.463

                                                                                                               

459 Fonte: <http://www.servas.org/>. Acesso em: 10 ago. 2015.

460Fonte: <http://www.servasbrasil.org.br/wp-content/uploads/2015/07/SERVAS_resumo_Maio-2015.pdf>.Acesso em: 10 ago. 2015. 461Ibidem.

462 Ver:  <https://www.couchsurfing.com/>.  Acesso em: 25 set. 2015.

Por meio do Couchsurfing, pessoas podem oferecer ou encontrar hospedagem gratuita. As condições variam bastante: de sofás a cômodos inteiros com banheiro individual. Assim como nos aplicativos de carona compartilhada, os mecanismos de segurança se baseiam em avaliações e depoimentos que usuários fazem sobre seus hóspedes ou anfitriões. Apesar dos riscos aparentes, estudos conduzidos pela Universidade de Michigan estimaram uma relação de dois mil e quinhentos relatos positivos para cada relato negativo. A mesma pesquisa apontou haver uma grande correlação entre o número de vezes que uma pessoa se hospeda na casa de alguém e as vezes em que ela recebe um hóspede, refutando hipóteses de que grande parte dos membros utilizaria a plataforma apenas à procura de acomodação grátis, não se dispondo a oferecer nada em troca.464 Além da oferta de hospedagem, o Couchsurfing também promove encontros semanais em cafés e bares de várias cidades, com objetivo de estimular o diálogo e o intercâmbio de experiências entre seus adeptos.

Assim como o Couchsurfing, o AirBnB465 também permite que pessoas abram suas casas para acomodar viajantes de todo o mundo – porém, recebendo por isso. A empresa fundada em 2008 conquistou visibilidade mundial, tornando-se um grande sucesso e dando margem a bastante controvérsia. Segundo seu site, o AirBnB já abrigou mais de quarenta milhões de pessoas, oferecendo acomodações dos mais variados tipos e preços, em mais de cento e quarenta mil cidades, em cento e noventa países.

Fig. 26– Infográfico com números do AirBnB.

Fonte: < https://www.airbnb.com.br>.Acesso em: 10, ago. 2015.

                                                                                                               

464MARX, 2012, s.p.

Seja no Couchsurfing ou no AirBnB, grande parte do êxito dessas iniciativas está ligado à experiência de viagem que proporcionam. Ao contrário da impessoalidade dos hotéis, as plataformas alegam proporcionar uma vivência mais singular, mais próxima do cotidiano local. O contato com os anfitriões, quando ocorre (pois, no caso do AirBnB, pessoas muitas vezes alugam casas ou apartamentos inteiros e têm pouca interação com os locadores), é considerado mais um diferencial que estimula a troca entre diferentes culturas e a possibilidade de conhecer um lugar através de relatos e indicações de seus moradores.

Os tipos de acomodação anunciados no AirBnB podem variar de uma cama em uma casa, dividida com muitos outros habitantes, até um castelo inteiro. Como no Couchsurfing, os perfis de anfitriões e locatários recebem avaliações e depoimentos, sendo que os anfitriões mais bem avaliados são identificados e recompensados com bônus. Preços e regras de conduta são determinados pelos proprietários, porém a plataforma cobra dos locadores uma taxa de 3% do montante estabelecido, e, dos locatários, entre 6% e 12% do total pago pela estadia. O valor de mercado da empresa tinha estimativa de alcançar dez bilhões de dólares em 2014, ultrapassando grandes franquias de hotéis como Hyatt ou Wynham Worldwide.466

Uma das grandes críticas feitas ao AirBnB é justamente a de se tornar uma concorrente injusta para o setor hoteleiro, por não estar submetida aos mesmos tributos, o que lhe permite oferecer custos mais baixos – ao mesmo tempo em que não gera os empregos formais e a capacitação profissional promovidos por tal segmento, podendo contribuir para um quadro de precarização trabalhista. Enquanto a plataforma, por um lado, possibilita a distribuição de recursos gerados entre uma rede vasta de pequenos anfitriões, por outro lado, há um grande questionamento a respeito da verdadeira natureza desses locadores. O AirBnB defende que sua maior parte é composta por “pessoas comuns”, que alugam um quarto de suas residências e mantêm contato próximo com seus hóspedes. Uma reportagem do jornal The Observer, contudo, aponta um estudo feito com noventa mil locadores, em dezoito cidades, indicando que 40% deles têm diversas inscrições – ou seja, trata-se de grandes proprietários de imóveis que transformam o serviço em um negócio extremamente lucrativo.467 Há registros de donos de apartamentos em cidades com oferta escassa de moradia (como Nova Iorque ou San Francisco, nos EUA), que expulsam inquilinos permanentes para priorizar o aluguel temporário para turistas. Nesses casos, os impactos para o ambiente urbano são consideráveis, pois cidadãos locais são retirados de áreas

                                                                                                               

466CAMPI, 2014, s.p. 467 CAROLL, 2015.

com serviços e infraestutura, vendo-se obrigados a migrar para bairros mais distantes. Zonas previstas para terem uso residencial se descaracterizam e perdem a vitalidade provocada pelo uso cotidiano dos moradores. Quando funciona dessa forma, o sistema de compartilhamento passa de fato a se diferenciar pouco da hotelaria convencional, justificando as reivindicações de que não esteja submetido a regras diferentes.

Em sua defesa, o AirBnB aponta que seu modelo de hospedagem dinamiza áreas onde havia pouco turismo – em Paris, por exemplo, 70% dos apartamentos alugados estão na periferia –, estimula novas formas de organização do trabalho e gera economia para pequenos empreendedores – em Nova Iorque, 50% dos anfitriões seria composto por profissionais autônomos que complementam a renda com o serviço. A Organização Mundial do Turismo argumenta que governos proponham algum tipo de regulamentação para evitar a concorrência predatória, sem, no entanto, partir para sua proibição.

Não é apenas à hospedagem que se restringe o compartilhamento de espaços domésticos, estendendo-se também às suas mesas, por meio das plataformas de refeições compartilhadas como a já mencionada Gnammo,468 ou a EatWith,469 que oferece jantares coletivos em mais de cento e cinquenta cidades ao redor do mundo. Nesses casos, usuários usam os aplicativos para localizar eventos disponíveis, organizados nas casas dos cozinheiros. Os menus e preços são anunciados nos perfis, sendo que os valores costumam ser mais baixos que os de um restaurante. Promover a gastronomia como veículo de sociabilidade e difusão das culturas locais é a principal ideia por trás de propostas do tipo que, assim como as redes de hospedagem, apostam na quebra com a impessoalidade de estabelecimentos comerciais e no intimismo do ambiente caseiro como catalisadores da aproximação entre as pessoas.

A formação de laços sociais e o contato interpessoal situam-se, sem dúvida, no cerne das últimas iniciativas analisadas. Se há certamente benefícios econômicos nesse compartilhamento de espaços, são a troca de experiências e o intercâmbio cultural que aparecem nos exemplos, porém, como principais elementos articuladores. Nesse sentido, a hipótese da comunicação em rede como recurso predestinado a isolar pessoas cai por terra, enquanto se observa a importância crescente dos dispositivos digitais na mediação de processos de socialização. Interessa refletir, no entanto, em que medida a ampliação da procura por esse tipo de ferramenta não reflete, também, uma desconfiança cada vez maior com relação aos encontros espontâneos e imprevisíveis que podem ocorrer na cidade. Quem é esse outro classificado e filtrado, cujo comportamento é verificado e garantido pelos demais usuários? Como se

                                                                                                               

468Ver: <www.gnammo.com>. Acesso em: 25 set. 2015.

conformam essas relações em que todos os participantes estão sob o constante escrutínio alheio? Com tantos mecanismos de avaliação e seleção, cabe questionar até que ponto o confronto com a alteridade permanece sendo possível.

3.2.2.3 COWORKING

Como apresentado na seção 1.2, à medida que se expandem o capitalismo cognitivo e a produção imaterial, surgem modelos de trabalho cada vez mais flexíveis, muitas empresas não exigem a presença constante dos funcionários em suas sedes, e o número de trabalhadores autônomos cresce exponencialmente. A mobilidade crescente leva negócios a precisarem de instalações para uso eventual com reuniões e apresentações em diversas partes do mundo. De um lado, muitos espaços corporativos perdem o uso ou sofrem uma redução de demanda, tornando- se obsoletos ou subutilizados. De outro, profissionais liberais frequentemente não dispõem de um local adequado às suas atividades e não têm recursos para manter um escritório por conta própria. Uma das soluções que vem sendo adotada para lidar com essa equação de transformações, no que diz respeito à organização espacial, é o que usualmente se identifica como coworking, ou seja, o compartilhamento dos locais de trabalho.

De maneira similar ao que ocorre com espaços domésticos ou veículos compartilhados, o coworking se articula em diversas escalas, por meio da mobilização de atores distintos. Pode ocorrer na esfera local, de modo auto-organizado, a partir de profissionais dividindo um mesmo lugar e disponibilizando estruturas específicas para ocasiões efêmeras, como reuniões, palestras ou cursos de curta duração. Há casos, também, de serviços empresariais que oferecem instalações de trabalho conectadas em rede, distribuídas em diversos pontos do globo, segundo as necessidades de cada usuário. Em todas as situações, as tecnologias digitais de comunicação desempenham um papel importante, não apenas por serem elementos cruciais às mudanças dos modos de produção que conduziram à disseminação das práticas de coworking, mas também no sentido de conformarem ferramentas que facilitam o mapeamento, a localização e a conexão entre esses espaços e as pessoas à sua procura.

O site Coworking Brasil470 reúne uma listagem de ambientes do tipo em várias cidades

brasileiras. Um censo realizado por seus organizadores apresenta um panorama da prática no país, tendo identificado a existência de duzentos e trinta e oito espaços ativos, concentrados sobretudo em São Paulo (69), Rio de Janeiro (19) e Belo Horizonte (16). Dentre esses locais, cento e quarenta e um responderam um questionário que revelou abrigarem seis mil e quinhentos postos de trabalho, mais de duzentas salas de reunião e cento e vinte e duas salas privativas. Sua maior parte, cento e cinco entrevistados, não atua em uma área específica e trinta e três funcionam vinte e quatro horas por dia.

No caso de iniciativas autônomas, as razões que geralmente justificam a opção pelo

coworking se relacionam à divisão dos custos de manutenção do espaço e à formação de redes.

Muitos profissionais liberais não gostam do isolamento do trabalho em casa, vendo no compartilhamento uma possibilidade de se manter em contato com pessoas de diversas áreas, trocar conhecimentos e formar parcerias. Nesses casos, colaboração e diálogo são componentes importantes da prática.

O dado sobre o horário de funcionamento é mais um aspecto relevante, pois uma das premissas do coworking (sobretudo nas versões de maior escala, geridas por grandes corporações) é justamente otimizar espaços de trabalho subutilizados, em busca de maior sustentabilidade. Essa é uma das principais motivações por trás dos sistemas Smart+Connected Meeting Spaces, e Smart+Connected Personalized Spaces, da Cisco. Segundo a Cisco, as transformações no universo do trabalho fazem surgir a demanda de instalações de uso esporádico para reuniões, workshops, seminários etc. O serviço equipa e fornece esses locais, que podem ser encontrados e reservados a partir de um aplicativo de computador ou telefone, de acordo com a localização e as necessidades de infraestrutura de cada usuário. Quando os clientes são também negócios (e não pessoas físicas), existe a possibilidade de estabelecer uma conexão entre o lugar escolhido e o servidor da empresa, deixando seus bancos de dados e documentos facilmente disponíveis. O mesmo sistema que organiza o agendamento dos espaços monitora os edifícios onde eles se encontram, automatizando climatização e fornecimento de energia.

                                                                                                               

Fig. 27 – infográfico com resultados do censo realizado pelo site

3.2.3 FAÇA VOCÊ MESMO, FAÇA COM OS OUTROS: MODOS DE FAZER

No documento Urbanismo entre pares: cidade e tecnopolítica (páginas 148-155)