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ESPAÇOS DE LUGARES, ESPAÇOS DE FLUXOS

TECNOPOLÍTICAS

1.2 REDES SOCIOTÉCNICAS, TRABALHO IMATERIAL E METRÓPOLE

1.2.3 ESPAÇOS DE LUGARES, ESPAÇOS DE FLUXOS

Tamanha transformação faz com que, em um primeiro momento, a previsão da expansão vertiginosa das telecomunicações leve uma série de autores a vislumbrar um cenário onde as associações mediadas pelas tecnologias se consolidariam, necessariamente, em detrimento da interação face a face e da experiência das dimensões física e territorial da vida urbana.

Ainda no início dos anos 1980, Paul Virilio110 publica O espaço crítico,111 obra dedicada a refletir sobre os futuros impactos dos avanços tecnológicos na organização e na vivência das metrópoles contemporâneas. Neste trabalho, o autor levanta questões que permanecem hoje, trinta anos mais tarde, centrais ao debate sobre as redes sociotécnicas, como, por exemplo, os efeitos da videovigilância (“a câmera tornou-se o nosso melhor inspetor”)112 e os processos de espetacularização – assuntos a serem discutidos em maior detalhe na próxima seção desta investigação. A penetração crescente das tecnologias de informação na vida cotidiana, contudo, é abordada por Virilio como um fenômeno apartado do desenvolvimento das cidades, que culminaria, ao contrário, em seu despovoamento, ocasionado por processos pós-industriais de desurbanização: “estaria a arquitetura urbana prestes a se transformar em uma tecnologia tão ultrapassada quanto a da agricultura extensiva?”.113 A visão do autor de que “aproximar no tempo das telecomunicações é portanto inversamente afastar no espaço”114 se faz clara no resgate do prenúncio de Cousteau sobre a futura Paris dos anos 2000: “Uma federação de povoados onde as comunicações se realizariam antes através do vídeo do que pelo transporte físico das pessoas”.115

É um pouco como se a estratégia naval servisse de modelo e referência para a organização territorial, como se o “povoamento do tempo” das telecomunicações (liberação de linhas, interrupção...) substituísse subitamente o das antigas coabitações, o povoamento do espaço, a proximidade urbana real.116

                                                                                                               

110 Paul Virilio (1932 -) filósofo, arquiteto e urbanista francês com diversas obras publicadas a respeito das tecnologias de comunicação. 111 VIRILIO, 2008.

112 VIRILIO, op. cit., p. 14, em alusão à fala do ex presidente norte americano John F. Kennedy. 113. Ibidem, p. 18.

114 Ibidem, p. 58.

115 COUSTEAU, apud ibidem, p.61. 116 Ibidem, p.61.

Em Modernidade líquida, Zygmunt Bauman117 formula uma aposta menos radical, porém atravessada por receios de natureza semelhante àqueles apresentados por Virilio. O autor defende que a expansão tecnológica conduziria a um novo momento histórico, que identifica como “modernidade leve”, ou “modernidade líquida”,118 condição resultante da transição do capitalismo fabril, fordista – caracterizado pela “modernidade pesada” e pela busca da conquista do espaço –, para um novo patamar, que denomina “capitalismo de software”. O modelo produtivo da modernidade leve passaria a ser articulado pela instabilidade, pela flexibilidade e pela incerteza que, segundo o autor, culminariam na desvalorização ou na irrelevância do espaço físico, que “não impõe mais limites às ações e seus efeitos”.119 Os referidos processos estariam intimamente conectados à proliferação dos não lugares,120 que Bauman aponta como característicos ao mundo contemporâneo: aeroportos, centros comerciais e complexos de lazer crescentemente indistintos, independentemente de sua localização e de seu contexto. Com o uso orientado prioritariamente pelo consumo, produzem ambientes que, para o autor, não abrigam o confronto com a alteridade e a diferença, imprescindíveis ao exercício da civilidade.

Castells confirma a tese de que, por um lado, o avanço das tecnologias de telecomunicação poderia de fato acarretar o distanciamento crescente entre a proximidade no espaço e o desenvolvimento de tarefas cotidianas. No entanto, ele se afasta da dicotomia mencionada anteriormente entre espaço físico e ciberespaço, ao defender que tal processo não seja tomado como presságio do “fim das cidades”, pois locais de trabalho, hospitais, escolas ou centros comerciais não deixariam de existir, mas incorporariam novas dinâmicas, atravessadas pelas possibilidades da comunicação à distância. Trata-se da adição de camadas de experiência que atuam nas relações precedentes com o contexto espacial, e não do surgimento de um modelo de organização social em que o universo físico-construído não desempenha um papel relevante.

A esse novo paradigma urbano, caracterizado pela troca de informações em rede, o autor dá o nome de “espaço de fluxos”, que não deve ser entendido como forma, mas sim como processo: “organização material das práticas sociais de tempo e espaço compartilhado que funcionam por meio de fluxos”.121 Acionado pela telecomunicação, pelo trânsito de dados e finanças, o espaço de fluxos

                                                                                                               

117 Zygmunt Bauman (1925 -) sociólogo Polonês. O livro Modernidade líquida (2001) dedica-se às transformações da sociabilidade humana a partir da aceleração e da instabilidade típicas às sociedades urbanascontemporâneas.

118 BAUMAN, 2001. 119 Ibidem, p.136. 120 Ibidem, p.115.

prescinde de localidade física, mas requer interação e simultaneidade, características que o configuram como prática social. Ao espaço de fluxos, contrapõem-se os “espaços de lugares”, vinculados à concepção mais usual do termo espaço, onde a comunicação ocorre por meio da “contiguidade física”, ou seja, do contato face a face. Segundo Castells, as grandes metrópoles contemporâneas se articulariam a partir da combinação de ambas as formas, estruturadas e transformadas em “nós” pelas redes globais, através de uma “infraestrutura multidimensional”: conjunto de diferentes modalidades de transporte, redes digitais de comunicação e de informação, fluxos de capital, turismo, entretenimento e serviços. “O espaço dos fluxos sobrepujou a lógica do espaço dos lugares, prenunciando uma arquitetura espacial e global de megacidades interconectadas, enquanto as pessoas continuam a achar significado em lugares e a criar suas próprias redes no espaço dos fluxos”.122

De um lado, a proposta de Castells compreende mais precisamente o enredamento dos universos físico e digital, que passa a orientar as articulações sociais nas metrópoles contemporâneas. De outro, ainda é possível identificar, na proposição “espaço de fluxos” versus “espaço de lugares”, uma polarização entre as dimensões global e local, orientada por relações de escala e de pertencimento, em que o caráter rizomático e reticular das associações mobiliza muito mais um modelo (o espaço de fluxos), do que o outro.

Poucas décadas após a publicação dos trabalhos citados, os caminhos trilhados pelos dispositivos de comunicação em rede apontam algumas questões diversas às antecipadas pelos autores em tela – apesar de, em inúmeros aspectos, suas teorias permanecerem centrais ao debate atual. Em contraposição às hipóteses de desurbanização, dados recentes apontam que a maior parte da população planetária vive hoje em cidades, devendo ultrapassar dois terços do total em 2030, chegando a 75% até 2050.123 O avanço tecnológico não ocorreu em direção contrária à experiência espacial, mas, opostamente, investiu na mobilidade para associar-se cada vez mais ao território. A flexibilidade e a instabilidade dos fluxos de informação não conduziram à diminuição de relevância das cidades, mas encontraram nas metrópoles contemporâneas o habitat perfeito para as novas formas econômicas e sociais a que dão origem.

Dessa maneira, a análise que se propõe desenvolver no presente trabalho aproxima-se mais de noções encontradas em textos recentes de autores como Michael Hardt, Antonio Negri e Peter Paul Pelbart (baseados sobretudo nas obras de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari). Trata-se de uma abordagem que compreende os conjuntos de tensões e disputas das organizações sociais

                                                                                                               

122 Ibidem, p. XVI a XXX.

contemporâneas não sob um ponto de vista dicotômico, mas como diferentes campos de força inseridos nos mesmos diagramas, articulados em rede, em constante processo de atravessamento e contaminação mútua.