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TECNOPOLÍTICAS

1.1 SISTEMA, REDE, DIAGRAMA

1.1.2 REDE E RIZOMA

Apesar de ter se tornado uma expressão usada rotineiramente na atualidade – devido à inevitável associação com fenômenos contemporâneos, como a expansão tecnológica ou a globalização –, o conceito de rede, segundo Regina Maria Marteleto,59 não é próprio ao século XX, mas remonta a Hipócrates, conferindo-lhe um papel transversal no estudo dos fenômenos ligados à produção social de sentidos. Não seria, tampouco, uma substituição contemporânea “com nova roupagem conceitual e epistemológica”, da noção de sistema. Ao contrário, “afirma-se a continuação de um no outro, ou de um pelo outro, continuidade essa representada pela ideia de conexionismo”.60 Sistemas e redes são, portanto, concepções complementares.

Podendo conformar-se a partir das mais diversas combinações entre elementos, o que mais interessa, no que diz respeito às redes, são as relações que possibilitam. Sua dinâmica não deve ser analisada a partir de uma díade (relação entre dois elementos), definindo a tríade como componente fundamental do social: “uma tríade não é a soma de três indivíduos, ela não é tampouco a soma de duas díades. A lógica não é mais aditiva, ela se torna combinatória, abrindo a possibilidade de estudar as estratégias de coalisão, de mediação, a transitividade das afinidades etc.”.61 Redes convertem os sujeitos coletivos em agentes centrais da geração de conhecimento, revelando a terceiridade como categoria de maior importância.

Em Reassembling the Social: an Introduction to Actor-Network-Theory,62 Bruno Latour propõe a

Teoria Ator-Rede (TAR)63 como método alternativo de investigação para as ciências sociais, adotando

conceitos de sociedade, de redes e de associações que se mostrarão bastante úteis ao presente estudo. Latour contrapõe as ciências sociais tradicionais, que identifica como “sociologia do social”, à abordagem que denomina “sociologia das associações”. A “sociologia do social”, segundo a TAR, assume a sociedade como uma realidade dada, um quadro contextual em que estão inseridos os atores e as relações sociais a serem investigados, conformando uma referência estática a partir da qual se                                                                                                                

59 No artigo “Informação, rede e redes sociais –fundamentos e transversalidades” (2007), Marteleto explora os fundamentos histórico-conceituais da noção de rede, a partir dos aspectos de coletividade, terceiridade e da formação de redes sociais.

60 Marteleto, 2007, s.p.

61 MERCKLÉ apud MARTELETO, op. cit., p. 14. 62 LATOUR [2], 2005.

63 A Teoria Ator-Rede é uma corrente das ciências sociais originada na década de 1980 no laboratório CSI: Centro da Sociologia e da Inovação, na École des Mines, França, a partir dos estudos de Bruno Latour, Michel Callon e Madelaine Akrich. O livro Reassembling the Social: an Introduction to Actor-

Network-Theory (LATOUR, 2005) apresenta os principais pressupostos e a metodologia proposta pela TAR, além de conduzir uma crítica aos

desenvolvem as análises. O referido procedimento resultaria no apelo por “explicações sociais” preconcebidas e generalistas (relações de poder e de dominação, pressupostos psicanalíticos ou culturais etc.), que acabam por obscurecer as situações em foco. O autor propõe, de maneira diversa, substituir a definição costumeira de social como domínio pronto, ou campo preexistente, por sua acepção como agrupamentos de inúmeros processos dinâmicos de associação e conexão. Os procedimentos para possibilitar tal abordagem dependeriam da capacidade de se “reagregar o social” – rastreando controvérsias sobre as naturezas dos grupos, das ações, dos objetos, dos fatos e das ciências sociais –, para depois reestabilizá-lo segundo a nova metodologia. A sociedade passa a ser vista, então, como a “consequência das associações, e não como a sua causa”.64

A outra perspectiva não toma por certa a doutrina básica da primeira. Ela argumenta que não há nada específico sobre a ordem social; que não existe uma dimensão social de nenhum tipo, nenhum “contexto social” ou nenhum domínio distinto da realidade ao qual o rótulo “social” ou “sociedade” possa ser atribuído; que nenhuma “força social” está disponível para “explicar” as características residuais que outros domínios não conseguem; que os membros sabem muito bem o que estão fazendo mesmo que não articulem suas ações de um modo satisfatório aos observadores; que atores nunca estão incorporados a um contexto social e, portanto, são muito mais que “meros informantes”; que não há, então, nenhum sentido em acrescentar alguns “fatores sociais” a outras especialidades científicas; que a relevância política obtida por meio de uma “ciência da sociedade” não é necessariamente desejável; e que “sociedade”, longe de ser o contexto “no qual” tudo se enquadra, deveria preferencialmente ser construída como um dos muitos elementos de conexão circulando em minúsculos conduítes.65

Uma vez que toda associação é sempre o resultado de conjuntos de ações, a noção de

performance torna-se central à TAR: grupos são mantidos por meio do esforço de seus vários atores para

que suas conexões permaneçam ativas. Não existe uma “cola-social” precedente que faz com que continuem estáveis, caso o fluxo de ligações cesse ou seja interrompido. Assim como defende a cibernética de segunda ordem, estabilidade é uma característica inerente ao sistema, que depende da sua capacidade de se manter em operação.

Performatividade, transformação constante, abertura e potência constituinte são, também, características do que Gilles Deleuze e Félix Guattari definem como rizoma – seu “modelo de realização das multiplicidades” –,66 conceito que pode auxiliar na compreensão do que Latour aponta como rede, dada a aproximação com suas principais propriedades.67 No segundo capítulo deste estudo, será debatida

                                                                                                               

64 LATOUR [2], op. cit., p.238, trad.livre. 65 Ibidem, p.4, trad.livre.

66 DELEUZE; GUATTARI, op. cit.v.1, p.10.

67 A ressonância entre a geofilosofia de Deleuze e Guattari, e a Teoria-Ator-Rede é apontada por Jean Hillier no livro Stretching Beyond the Horizon: a

multiplanar theory of spatial planning and governance (2007), em que a autora discute a aplicação do pensamento pós-estruturalista no planejamento espacial. O debate proposto por Hillier será retomado no tópico 2.1.2 do presente trabalho.

a importância dos mencionados aspectos para as práticas urbanas em pauta, retomando-os a partir de situações contextualizadas.

O rizoma se baseia em conexão e heterogeneidade, suas primeiras características aproximativas, “qualquer ponto (...) pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo, de maneira diversa à árvore ou à raiz que fixam um ponto, uma ordem”.68 Trata-se, portanto, de um modo de organização distinto da ordenação hierárquica e verticalizada dos modelos arborescentes,69 que se subdividem sucessivamente por dicotomia, em direção predeterminada, e “sempre com a condição de dispor de uma forte unidade principal”.70 Diferentemente, o rizoma cresce como erva, “espalha-se como manchas de óleo”; não marca início nem fim, se encontra sempre no meio, entre; forma alianças; nunca é, sempre está. Pode ter trechos rompidos sem que isso o impeça de continuar propagando-se em outras direções, desde que siga formando associações, aspecto que os autores denominam “princípio de ruptura assignificante”.71

Rizomas são mobilizados por agenciamentos, “este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões” –

princípio de multiplicidade.72 Agenciamentos concretos são os dispositivos73 que operam as interações – encontros que, contudo, não ocorrem como mera transmissão ou reprodução, mas ativam mutações, originam sempre algo novo, por meio de linhas de fuga ou de desterritorialização –, aproximam-se, dessa forma, das entidades que Latour define como mediadores, os quais “transformam, traduzem, distorcem e modificam os significado ou os elementos que são encarregados de transportar”.74

Partindo da noção de devir, Deleuze e Guattari elucidam como desterritorialização e reterritorialização não configuram meramente processos de imitação consecutivos, atrelados um ao outro de maneira recíproca, mas, no lugar disso, constituem sempre outras realidades.

                                                                                                               

68 Ibidem, p.22.

69Na seção 2.3 será abordada a ligação entre os modelos arborescentes de organização e o planejamento urbano moderno, relacionando a discussão sobre o rizoma com a crítica desenvolvida pelo arquiteto Christopher Alexander no artigo “a City is not a Tree” (1965).

70DELEUZE; GUATTARI, op. cit. v.1, p.22. 71Ibidem, p.25.

72Ibidem, p.23-24.

73A aproximação entre o conceito de agenciamento concreto e de dispositivo, na definição de Foucault, é abordada por Deleuze em Foucault (2005), p.46. 74 LATOUR [2], op. cit., p. 39, trad.livre.

A orquídea se desterritorializa, formando uma imagem, um decalque de vespa; mas a vespa se reterritorializa sobre esta imagem. A vespa se desterritorializa, no entanto, devindo ela mesma uma peça no aparelho de reprodução da orquídea; mas ela reterritorializa a orquídea, transportando o pólen. A vespa e a orquídea fazem rizoma em sua heterogeneidade. Poder-se- ia dizer que a orquídea imita a vespa cuja imagem reproduz de maneira significante (mímese, mimetismo, fingimento, etc.). Mas isto é somente verdade no nível dos estratos – paralelismo entre dois estratos determinados cuja organização vegetal sobre um deles imita uma organização animal sobre o outro. Ao mesmo tempo, trata-se de algo completamente diferente: não mais imitação, mas captura de código, aumento de valência, verdadeiro devir, devir-vespa da orquídea, devir-orquídea da vespa, cada um destes devires assegurando a desterritorialização de um dos termos e a reterritorialização do outro, os dois devires se encadeando e se revezando segundo uma circulação de intensidades que empurra a desterritorialização cada vez mais longe. Não há imitação nem semelhança, mas explosão de duas séries heterogêneas na linha de fuga composta de um rizoma comum que não pode mais ser atribuído, nem submetido ao que quer que seja de significante.75

As noções de performatividade e abertura, que se mostrarão especialmente relevantes à análise de práticas urbanas realizada no segundo capítulo desta investigação, fazem-se expressas nos últimos princípios aproximativos do rizoma listados pelos autores: cartografia e decalcomania.76 A lógica arborescente conecta-se à ideia de imitação ou decalque; ela parte, como a “sociologia do social”, de imagens dadas, preconcebidas, que se reproduzem a partir de uma articulação hierarquizada. Decalques estabilizam, organizam e congelam multiplicidades e linhas de fuga. O mapa, ao contrario, “é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente”.77

Nota-se que cartografia é tida como categoria conceitual, tática constituinte aplicável a diversos meios, não se restringindo às disciplinas ligadas à geografia, ainda que, como se discutirá no capítulo II, a produção de mapas territoriais possa ocorrer ou não segundo a lógica deleuziana, gerar tanto mapas quanto decalques – reflexão que terá grande pertinência para o debate acerca da cartografia como método ativador da transformação do espaço. O que Deleuze e Guattari propõem, portanto, não corresponde à acepção convencional de mapa, não representa uma realidade externa, mas, ao contrário, está “inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real [...], não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói”.78 O mapa, como elemento do rizoma:

                                                                                                               

75DELEUZE; GUATTARI, op. cit., p.26. (Grifo da autora). 76Ibidem, p.29.

77Ibidem, p.30.

pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas [...] contrariamente ao decalque que volta sempre “ao mesmo”. Um mapa é uma questão de performance enquanto que o decalque remete sempre a uma presumida competência.79

Decalque e mapa, contudo, não configuram entidades imiscíveis, separáveis sob um raciocínio dualista. Em vez disso, eles se atravessam, contaminam-se e se confundem continuamente: decalques estruturando e cristalizando segmentos do rizoma; mapas fazendo brotar brechas e linhas de fuga nas árvores. “Há, então, agenciamentos muito diferentes de mapas-decalques, rizomas-raízes, com coeficientes variáveis de desterritorialização”.80 Compreender essa dinâmica de contágio mútuo interessa particularmente à investigação dos fenômenos ligados à expansão recente da comunicação em rede, uma vez que forma-se um campo de forças repleto de contradições, atravessado por processos constantes de captura e escape, tensões a serem discutidas ao longo das próximas seções.

Propõe-se, agora, retornar às propostas de Latour, visando elucidar seus conceitos de ator e

actante, ou seja, os entes envolvidos nas ações que mobilizam as redes de associações previamente

apresentadas.