• Nenhum resultado encontrado

Ação civil pública ou ação coletiva?

Mostra-se importante traçarmos algumas observações sobre a denominação da ação destinada à sua tutela, mesmo sem nos olvidarmos do alerta de parte da doutrina no sentido de que as discussões acerca da correta denominação da ação destinada à tutela desses direitos e interesses carecem de qualquer utilidade prática e teórica.117

Todavia, dois são os motivos que nos levam a abordar a questão. O primeiro, já salientado por Pedro Lenza e Cândido Rangel Dinamarco, diz respeito à necessidade de se evitar a “promiscuidade no emprego dos vocábulos jurídicos”118, já que “mede-se o grau de

116

DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 67. 117

“Há uma certa polêmica – inócua em termos práticos e teóricos – a respeito da utilização do nome ação

civil pública e ação coletiva” (LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações Coletivas: História, Teoria e Prática.

Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 188). 118

desenvolvimento de uma ciência pelo refinamento maior ou menor de seu vocabulário específico”119. O segundo, como forma de se esclarecer que, neste trabalho, os termos serão usados invariavelmente, já que, veremos logo a seguir, possuem o mesmo significado.

Piero Calamandrei diferencia ação privada de ação pública. Aquela, segundo o processualista italiano, verifica-se quando o poder de provocar a jurisdição está reservado ao titular do interesse ou direito protegido pela norma jurídica. Esta, quando esse poder é confiado pelo Estado a um órgão público, que age por dever de ofício. No processo civil, embora a maior parte dos casos seja de ação privada, vêm crescendo, ainda segundo Calamandrei, os casos de ação pública com legitimidade do Ministério Público em substituição processual de incapazes, por exemplo. O termo ação civil pública foi empregado por Piero Calamandrei no sentido de ser a ação promovida pelo Ministério Público no âmbito civil, sem ter por objeto a satisfação do ius puniendi. Em suma, toda ação não-penal promovida pelo Ministério Público seria uma ação civil pública.120

A ação penal é aquela que tem por objeto a satisfação do direito de punir do Estado em face do autor de uma infração penal tipificada no Código Penal ou em legislação extravagante. Essa ação recebe a qualidade “pública” quando sua promoção cabe ao Ministério Público e “privada” no caso de a iniciativa ser do próprio ofendido ou seus sucessores.

A nomenclatura “ação civil pública”, inicialmente, como ressaltado, tinha por finalidade designar a ação “não-penal” (ou seja, a ação que tem objeto outro que não a pretensão punitiva estatal) promovida pelo Ministério Público (natureza pública da

119

DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 136.

120

CALAMANDREI, Piero. Instituciones de derecho procesal civil. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-America, 1962. v. 1. p. 275 e ss.

instituição qualificada como parte legítima). E, mesmo cientes desse significado, os representantes do Ministério Público do Estado de São Paulo Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz, Édis Milaré e Nelson Nery Junior adotaram-na na elaboração do anteprojeto de lei que serviu de base ao Projeto de Lei do Executivo e que ao final resultou na Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985.121

Mas essa denominação já era empregada entre nós e com o sentido de ação não- penal promovida pelo Ministério Público na Lei Complementar n° 40/81 (a antiga Lei Orgânica do Ministério Público122), pois o Parquet já era titular de diversas “ações civis públicas” (destituição de pátrio poder, nulidade de casamento, anulação de negócio jurídico praticado em fraude à lei, interdição, ação de responsabilidade civil por danos causados ao equilíbrio ecológico123 etc).

Entretanto, parte da doutrina critica a escolha por esse termo, pois a qualidade “pública” não se presta a qualificar a ação em sua essência, já que toda ação judicial é pública, pois dirigida em face do Estado, provocando-o ao exercício da função jurisdicional, nem a qualificá-la em razão da natureza daquele que pode promovê-la, uma

121

Segundo o conceito aceito pelos respeitados juristas, ação civil pública era “o direito conferido ao Ministério Público de fazer atuar, na esfera civil, a função jurisdicional” (A ação Civil Pública e a Tutela

Jurisdicional dos Interesses difusos. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 22.). Essa expressão não foi adotada no

anteprojeto de lei elaborado pelos juristas paulistas Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe e Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, que foi apresentado à Câmara dos Deputados pelo Sr. Deputado Federal Flávio Bierrenbach. Mesmo não tendo sido convertido em lei, esse anteprojeto serviu de base aos estudos dos membros do Ministério Público paulista na elaboração do anteprojeto da Lei da Ação Civil Pública.

122

O artigo 3º, inciso III, da Lei Complementar 40/81 estabelecia que uma das funções institucionais do Ministério Público consistia em “promover a ação civil pública, nos termos da lei”.

123

Os mencionados autores enumeram diversas hipóteses de ações civis que podem ser propostas pelo Ministério Público (FERRAZ, Antônio Augusto Mello de Camargo, MILARÉ, Edis e NERY JUNIOR, Nelson. A Ação Civil Pública e a tutela jurisdicional dos interesses difusos. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 22 e ss.) Conferir, também, MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 13 e ss.

vez que, além do Ministério Público, são legitimados concorrentes outras entidades de caráter público e também privado.124

Nem sequer a tentativa de justificar o emprego da palavra “pública” em razão do objeto da ação civil destinada a tutelar os interesses metaindividuais parece não agradar, principalmente se se adotar o entendimento de que tais interesses não são públicos nem privados, mas sim um tertium genus.125

Por sua vez, o legislador consumerista empregou a expressão “ação coletiva” ao intitular o Capítulo II do Título III do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90): “Das ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos”.

A partir daí surgiram interpretações tendentes a diferenciar a ação civil pública e a ação coletiva. Aquela terminologia seria empregada quando promovida uma ação para a defesa de interesses difusos e coletivos stricto sensu. Esta quando a ação fosse promovida para a defesa de interesses individuais homogêneos. Ou, ainda, aquela quando o autor da ação fosse o Ministério Público e esta quando fossem os demais co-legitimados.126

Não nos convencem essas diferenciações, notadamente em razão da ampla e completa integração existente entre os dois diplomas legais (CDC, art. 90; LACP, art. 21), de forma que, embora havendo denominações distintas empregadas pelo legislador (ação civil pública e ação coletiva), tanto uma quanto a outra podem ser manejadas pelos mesmos legitimados (CDC, art. 82; LACP, art. 5º) e possuem o mesmo objeto (a defesa de quaisquer direitos ou interesses coletivos em sentido amplo, i.e., difusos, coletivos stricto

sensu e individuais homogêneos).

124

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública. 8. ed. São Paulo: RT, 2002. p. 16. LENZA, Pedro.

Teoria Geral da Ação Civil Pública. 2. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 162.

125

Sobre a divergência doutrinária em se encaixar os interesses metaindividuais na classificação dicotômica interesses públicos e privados ou como terceira espécie, conferir abordagem feita por Pedro Lenza (LENZA, Pedro. Teoria Geral da Ação Civil Pública. 2. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 56 e ss. e 162).

126

Mesmo se podendo falar em uma maior precisão técnica no emprego do termo “ação coletiva” (posto que se trata de ação destinada à defesa de direitos ou interesses coletivos em sentido amplo)127, é de se reforçar a ressalva inicialmente feita no sentido de que a distinção terminológica não traz importantes conseqüências teóricas ou práticas. Ademais, a expressão “ação civil pública”, mesmo criticada por sua impropriedade técnica, já se encontra consagrada e adotada em diversos diplomas legais e na práxis forense, independentemente da natureza jurídica do legitimado-autor, e como verdadeira ação coletiva, i.e., destinada à proteção de direitos e interesses difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos, não mais prevalecendo seu primitivo significado de ação não-penal promovida pelo Ministério Público.

É justamente o que observou, com precisão, Rodolfo de Camargo Mancuso:

A conclusão razoável, a respeito desse aspecto terminológico, parece-nos a seguinte: a ação da Lei 7.347/85 objetiva a tutela de interesses metaindividuais, de início compreensivos dos difusos e dos coletivos em sentido estrito, aos quais na seqüência se agregaram os individuais homogêneos (Lei 8.078/90, art. 81, III, c/c os arts. 83 e 117); de outra parte, essa ação não é “pública” porque o Ministério Público pode promovê-la, a par de outros co-legitimados, mas sim porque ela apresenta um largo espectro social de atuação, permitindo o acesso à justiça de certos interesses meta-individuais que, de outra forma, permaneceriam num certo “limbo jurídico”. Para mais, trata-se de locução já consagrada em vários textos legais, inclusive na Constituição Federal (art. 129, III), sendo que a jurisprudência e a doutrina especializada a empregam

127

Após aceitar como mais correta a terminologia empregada pelo Código de Defesa do Consumidor, Pedro Lenza propõe a utilização do termo ação coletiva como gênero da ação destinada à tutela dos interesses difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos, sendo espécies a ação coletiva stricto sensu, enquanto aquela destinada a tutelar direitos difusos e coletivos em sentido estrito, e a ação coletiva sentido

lato, como a vocacionada à proteção dos direitos individuais homogêneos (LENZA, Pedro. Teoria Geral da Ação Civil Pública. 2. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 163). Gregório Assagra de Almeida também considera a

denominação ação coletiva – ou ação constitucional coletiva – como a mais adequada para as ações de tutela dos direitos coletivos (ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito Processual Coletivo Brasileiro. Um novo ramo

do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 271). Sérgio Shimura vislumbra a expressão “ação

coletiva” como um gênero que abrange as ações que tenham por objeto a tutela jurisdicional coletiva, tais como a ação popular, a ação civil de responsabilidade por ato de improbidade administrativa, a ação direta de inconstitucionalidade, a ação direta de constitucionalidade, o mandado de injunção e a ação civil pública (SHIMURA, Sérgio. Tutela Coletiva e sua efetividade. São Paulo: Método, 2006. p. 43-44).

normalmente, levando-nos a crer que esse nomen juris – ação civil pública – já está assentado na experiência jurídica brasileira.128

128

3 JURISDIÇÃO CIVIL COLETIVA