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Neste tópico, buscaremos realizar uma síntese dos estudos da doutrina italiana que floresceram em meados do século passado, notadamente nas décadas de 1960 e 1970, e que foram de fundamental relevância no reconhecimento e configuração dos chamados direitos ou interesses metaindividuais, conclusões que acarretaram forte influência nos estudos dos juristas brasileiros, que, cientes da necessidade de se debruçarem em estudo comparado sobre o direito e experiência alienígenas, ali buscaram inspirações para a construção de variada legislação tendente à tutela dos direitos daquela natureza.

A comparação dos direitos, nas palavras de René David, prática tão antiga quanto a própria ciência do direito, mostra-se de extrema utilidade nas investigações históricas e filosóficas sobre o direito, no estabelecimento de um melhor regime nas relações de direito internacional e no conhecimento e aperfeiçoamento do direito nacional. O direito comparado é ferramenta importante para o legislador no aperfeiçoamento de novas leis aptas a modificarem, de forma mais ou menos intensa, a realidade da sociedade, já que fornece experiências acontecidas em países outros e fomenta a atividade legiferante e a renovação da própria ciência do direito.24

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Segundo Dinamarco, um dos grandes serviços prestados pelos processualistas modernos foi a afirmação do comprometimento axiológico das instituições processuais (DINAMARCO, Cândido Rangel. A

Instrumentalidade do Processo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 40-41).

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Ada Pellegrini Grinover logo reconheceu a importância dos estudos da doutrina italiana no delineamento dos chamados direitos metaindividuais e escreveu que:

O estudo dos interesses coletivos ou difusos surgiu e floresceu na Itália nos anos 70. Denti, Cappelletti, Proto Pisani, Vigoriti, Trocker anteciparam o Congresso de Pavia de 1974, que discutiu seus aspectos fundamentais, destacando com precisão as características que os distinguem: indeterminados pela titularidade, indivisíveis com relação ao objeto, colocados a meio caminho entre os interesses públicos e os privados, próprios de uma sociedade de massa e resultado de conflitos de massa, carregados de relevância política e capazes de transformar conceitos jurídicos estratificados, como a responsabilidade civil pelos danos causados no lugar da responsabilidade civil pelos prejuízos sofridos, como a legitimação, a coisa julgada, os poderes e a responsabilidade do juiz e do Ministério Público, o próprio sentido da jurisdição, da ação, do processo.25

Evento de indiscutível importância no reconhecimento e configuração dos direitos e interesses coletivos em sentido amplo e na necessidade de sua tutela jurisdicional foi, pois, o promovido pela Facoltà di Giurisprudenza dell´Università di Pavia e pela Associazione

Nazionale “Italia Nostra”, em Pavia, nos dias 11 e 12 de junho de 1974, sobre o tema Le azioni a tutela di interessi collettivi, do qual participaram importantes juristas italianos, tais

como Vittorio Denti, Massimo Severo Giannini, Stefano Rodotà, Franco Bricola, Mauro Cappelletti, Giorgio Costantino, Andrea Proto Pisani, Alessandro Pizzorusso, Federico Carpi e Michele Taruffo.

Em estudo a respeito das ações coletivas no direito comparado e nacional, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes salienta que a contribuição italiana para a configuração dos interesses coletivos em sentido amplo deriva menos do seu aporte legislativo e jurisprudencial do que do brilhantismo de seus juristas.

De todo modo, aponta uma decisão proferida pelo Conselho de Estado, em 09 de março de 1973, como fator que impulsionou e incentivou o debate a respeito do tema e a

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GRINOVER, Ada Pellegrini. Significado social, político e jurídico da tutela dos interesses difusos. Revista

realização do evento acima mencionado, em 1974, bem como o realizado em Salermo, em 1975.26

Vittorio Denti, em seu Relazione Introduttiva, ressalta a importância da decisão acima referida, na qual a Associazione “Italia Nostra”, uma das promotoras da convenção de Pavia, “[...] è riuscita a far breccia nel munito bastione della giurisprudenza del Consiglio di Stato, vendendosi riconosciuta la legittimazione ad agire per la tutela di interesse ambientali, con una decisione destinata sicuramente a costituire una etappa fondamentale nella evoluzione della tutela degli interessi legitimi”.27

Essa decisão do Conselho de Estado, segundo Vittorio Denti, causou surpresa, porque contrariou o entendimento que então predominava e reconheceu a legitimidade da

Associazione “Italia Nostra” para impugnar uma licença administrativa de construção de

uma estrada, abrindo uma notável perspectiva de análise dos interesses objetos dessa tutela.28

É de se ressaltar, então, as contribuições apresentadas pela doutrina italiana, importantes notadamente porque produzidas em época em que os conceitos relativos ao tema interesses ou direitos coletivos e difusos nem sequer estavam concebidos e definidos. Aliás, nem sequer havia definição precisa e uniforme a respeito do que seriam interesses difusos e interesses coletivos, expressões muitas vezes usadas como sinônimas.29 Como

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CASTRO MENDES, Aluisio Gonçalves de. Ações Coletivas no Direito Comparado e Nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 98-100. O congresso de Salermo resultou na obra La tutela degli

interessi diffusi nel diritto comparato, con particolare riguardo alla protezione dell’ambiente e dei consumatori, III congresso nazionale dell’Associazione Italiana di Diritto Comparato, Università degli Studi

di Salerno, 22-25 maggio 1975. 27

DENTI, Vittorio. Relazione Introduttiva. Le Azioni a Tutela di Interesse Collettivi. (Atti del Convegno di Studio, Pavia, 11-12 giugno 1974). Padova: Cedam, 1976, p. 03.

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DENTI, Vittorio. Relazione Introduttiva. Le Azioni a Tutela di Interesse Collettivi. (Atti del Convegno di Studio, Pavia, 11-12 giugno 1974). Padova: Cedam, 1976, p. 03.

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“É singolare, anzitutto, e merita di essere sottolineato, che quando cominciò a circolare all’interno del dibattito dottrinale la nozione degli interessi diffusi e degli interessi collettivi le due categorie venissero spesso utilizzate con valore sinonimo. Tant’è che nei numerosi scritti che cominciarono a circolare intorno allá prima meta degli anni 70 si parlava indifferentemente degli uni e degli altri negli stessi identici termini,

dito acima, essas contribuições influenciaram e inspiraram os estudos dos juristas brasileiros.

Mauro Cappelletti exerceu papel fundamental na convenção mencionada.

Destacou, em sua intervenção, logo de início, a insuficiência da tradicional dicotomia entre direito público e direito privado ante a complexa realidade da atual sociedade de massa, em que se verificam violações a direitos e interesses pertencentes não apenas a um indivíduo, mas sim a um grupo, categoria ou classe de pessoas, e que não podem ser adequadamente protegidos pelo indivíduo, fazendo surgir um novo tipo de

società intermedie.

Un punto preliminare che mi sembra emergere chiaramente dalle prime relazioni e interventi, ha portato (o, meglio, riportato) alla luce la chiara insufficienza della tradizionale dicotomia pubblico-privato. É una dicotomia superata, superata dalla realtà (anche se, purtroppo, non ancora superata da tutta la dottrina e la giurisprudenza italiane). La realtà nella quale viviamo è quella di una società di produzione di massa, di consumo di massa, di scambi di massa, di turismo di massa, di conflitti o conflittualità di massa (in matéria di lavoro, di rapporti fra razze, religioni, ecc.), per cui anche le violazioni contro le quali la “giustizia” è intensa a dare protezione, sono evidentemente non soltanto violazioni di carattere individuale ma spesso anche di carattere collettivo, che coinvolgono e colpiscono categoria, classi, collettività, sono insomma “violazioni di massa”.30

Mostrou, ainda, que os instrumentos processuais clássicos voltados para a

resolução de lides individuais precisavam se adequar a essa nova realidade (“É qui che i vecchi strumenti di rappresentanza nel processo del vecchio tipo di interessi, nettamente

spesso utilizzando fra l’uma e l’altra categoria uma semplice disgiuntiva, a significare la piena equivalenza fra i due aggettivi” (CARRATA, Antonio. Profili Processuali della Tutela degli Interessi Collettivi e Diffusi.

La Tutela Giurisdizionale degli Interessi colletttivi e diffusi, a cura di Lucio Lanfranchi. Torino, G.

Giappichelli Editores. p. 84). 30

CAPPELLETTI, Mauro. Appunti sulla Tutela Giurisdizionale di Interesse Collettivi o diffusi. Le Azioni a

Tutela di Interesse Collettivi. (Atti del Convegno di Studio, Pavia, 11-12 giugno 1974). Padova, Cedam,

divisi ‘a taglio di coltello’, in privati o pubblici, si rivelano sempre piú insufficienti”) e identificou quatro problemas que dificultavam o acesso à justiça para a tutela dos interesses coletivos:

a) o problema do conceito tradicional e individualista da legitimidade para agir, já que, em regra, não se admite o uso do processo a quem não seja titular (ou que se afirme como titular) da relação deduzida em juízo, o qual precisa ser superado em razão do caráter metaindividual dos novos interesses e direitos, sendo necessária a elaboração de um novo conceito de legitimação fundado em uma relação ideológica entre a parte que representará a coletividade (parte ideológica ou ideological plaintiff) e a relação deduzida em juízo;

b) o problema do direito de defesa e do contraditório dos membros da coletividade não presentes em juízo, que deve ser transposto por meio do conceito de representante adequado do indivíduo ou entidade que defende em juízo o interesse coletivo;

c) o problema da extensão da coisa julgada às partes ausentes, o qual deve ser resolvido também com base no conceito de representatividade adequada, espraiando os efeitos da sentença, seja ela favorável ou desfavorável, a todos que são adequadamente representados, posicionando-se, pois, de forma contrária a Vittorio Denti, defensor da adoção da técnica secundum eventum litis;

d) o problema da insuficiência de provimentos repressivos e ressarcitórios em pecúnia para a efetiva tutela dos interesses metaindividuais, havendo necessidade de provimentos inibitórios e mandamentais, de caráter preventivo e com sanções fortes, até de natureza penal, para o caso de inobservância.31

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CAPPELLETTI, Mauro. Appunti sulla Tutela Giurisdizionale di Interesse Collettivi o diffusi. Le Azioni a

Tutela di Interesse Collettivi. (Atti del Convegno di Studio, Pavia, 11-12 giugno 1974). Padova, Cedam,

Também não há como se deixar de mencionar os estudos de Vincenzo Vigoriti, que resultaram na publicação da obra denominada Interessi collettivi e processo: la

legitimazione ad agire, em 1979. O autor procurou definir interesse coletivo e o diferenciar

de interesse difuso, tendo aquele como interesses diretos, com harmonia de vontades e iniciativa, para a persecução do escopo comum, e este caracterizado por um estado mais fluido de agregação de interesses individuais. Também apontou para a insuficiência dos tradicionais critérios de legitimidade quando se cuida de tutela coletiva e procurou atribuí- la a todos os titulares de interesses que estivessem confluindo para o coletivo (como o caso do art. 2.377 do Código Civil italiano, no qual associados podem pleitear a impugnação de uma deliberação da assembléia), ou a alguns legitimados titulares de interesses coletivamente reunidos (v.g., sindicatos, cf. art. 28 do Estatuto dos Trabalhadores), ou a órgãos públicos (dentre os quais, excluiu o Ministério Público, por entender que a atuação do Estado deve ser reservada para casos indispensáveis e por não possuir o parquet, segundo experiência prática de sua atuação no processo civil, disposição para o exercício dessas novas funções).32

Os doutrinadores italianos bem souberam apreender as modificações sociais e econômicas que se intensificaram com a formação das complexas sociedades de massa e empreenderam energia para a concepção de inovações jurídicas que se mostrassem aptas à tutela dos “novos” direitos na justiça civil.

Logo visualizaram que os institutos jurídicos tradicionalmente concebidos e desenhados para a resolução de litígios entre Caio e Tício mostravam-se obsoletos ou ineficazes quando empregados para a proteção dos direitos florescidos nas sociedades caracterizadas pela produção, troca e consumo de bens em larga escala.

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CASTRO MENDES, Aluisio Gonçalves de. Ações Coletivas no Direito Comparado e Nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 106/109. Cf. VIGORITI, Vincenzo. Interessi Collettivi e Processo –

Não menos atentos a essa modificação sócio-econômica e à efervescente produção jurídico-intelectual, juristas brasileiros, como Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe, Waldemar Mariz de Oliveira, Nelson Nery Junior, Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz, Édis Milaré, José Carlos Barbosa Moreira e outros, importaram os ensinamentos estrangeiros, promoveram longos estudos e debates a respeito e arquitetaram um sistema jurídico de tutela coletiva que restou incorporado ao direito positivo pátrio, dotando-o de equipamentos jurídicos aptos à tutela de toda e qualquer espécie de interesse ou direito metaindividual.33