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6 O TRABALHO DA COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA NA CRECHE

6.12 Ações relacionadas à vida privada

Durante o tempo que deveria ser dedicado ao trabalho como coordenadora pedagógica, Paula realizava muitas ações relativas à vida privada, de modo que os aspectos profissional e pessoal ficavam bastante misturados, uma vez que muitas atividades particulares eram realizadas no horário que deveria ser ocupado pelo seu trabalho.

A coordenadora tinha uma sobrinha e dois sobrinhos matriculados na creche e destinava muito tempo do seu trabalho realizando ações específicas para eles, particularmente, para os dois meninos. Todos os dias Paula fazia suco de fruta para seus sobrinhos; se não fizesse pela manhã (por volta de 11 horas e 30 minutos), sua primeira ação da tarde era essa111. Assim, quando retornava do almoço às 14 horas, se o referido suco estivesse feito, a coordenadora se dirigia até a sala dos seus sobrinhos para oferecê-lo a eles. Na maioria das vezes, ela demorava até conseguir que eles o bebessem. Isso acontecia na frente das demais crianças e a coordenadora parecia não cogitar a possibilidade das outras crianças desejarem o suco que não havia para elas. Do mesmo modo, no horário do jantar, em várias ocasiões, a coordenadora dedicava um tempo significativo com a alimentação de seus sobrinhos.

110Freire (1993) desenvolveu uma teoria sobre construção de grupos. Para conhecer os aspectos envolvidos nesse processo, ver especialmente Freire (1993).

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Além disso, em alguns dias, a coordenadora precisava sair no horário de trabalho para levar os sobrinhos ao médico ou para pegar remédio para eles no posto de saúde do bairro. No final do dia, por volta de 16 horas e 30 minutos, todos os dias, Paula saía para deixá-los na casa de sua mãe112. Quando voltava, muitas vezes já ficava no portão organizando a saída das crianças.

Também todos os dias, por volta de 11 horas, a coordenadora saía da instituição para buscar outro sobrinho que estudava em uma escola próxima da creche. Retornava à creche com seu sobrinho, que ficava com ela na sala da coordenação e a acompanhava onde ela fosse. Por volta de 11 horas e 45 minutos, Paula organizava o almoço para ela e para ele na cozinha da creche113. Às 12 horas, eles almoçavam e ficavam esperando seus pais passarem para pegá-lo. Assim que isso acontecia, em média às 13 horas, a coordenadora ia descansar, dormia um pouco no pátio coberto e retornava sempre às 14 horas.

Vale ressaltar que a mistura que Paula fazia entre seu trabalho na instituição e as atribuições que assumia dentro da creche voltada para seus familiares, além de comprometer seu tempo de atuação em atividades relativas à coordenação pedagógica, resultavam na não diferenciação entre o público e o privado, evidenciando pouca clareza sobre o seu papel como coordenadora pedagógica. Não foi observado, contudo, nenhum posicionamento ou reação da diretora em relação a isso.

Nesse sentido, Campos, Fullgraf e Wiggers (2006) também apontam a falta de clareza dos profissionais de creche sobre o seu papel, resultando na ausência de distinção entre o espaço público e o privado.

Ademais, Paula realizava outras ações de cunho privado na instituição, relacionadas à venda de produtos da Avon e a uma venda de “dindins114,” que ela mantinha na instituição115. Em razão disso, diversas vezes se ausentava da creche para realizar pagamentos e também dedicava muito tempo conferindo pedidos e, ainda, realizava cobranças sobre isso aos profissionais da instituição. Vale ressaltar que em nenhum momento foi observada alguma

112Em algumas ocasiões, Paula parecia preocupada com a presença da pesquisadora nesses momentos e dizia que a mãe dos seus sobrinhos trabalhava o dia todo e que eles não tinham quem fizesse “essas coisas” por eles. Ela parecia não considerar que ela também trabalhava o dia todo. Também comentava que tinha de deixar seus sobrinhos na casa de sua mãe, avó das crianças, porque ela era idosa e não podia vir buscá-los e a mãe deles só chegava à noite.

113Todos os dias a merendeira fazia arroz da merenda escolar para as profissionais que almoçavam na creche. Os outros alimentos que compunham o almoço eram trazidos pelas profissionais e feitos ou esquentados por elas na cozinha da creche.

114Trata-se de uma espécie de picolé caseiro de baixo custo.

115É possível que o trabalho de Paula com vendas esteja relacionado à necessidade de melhorar a renda em decorrência do baixo salário de coordenadora pedagógica que, como já mencionado nesta dissertação, era inferior ao das professoras. Esse fato, no entanto, não justifica o tempo despendido com essas atividades em seu horário de trabalho.

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reação da diretora em relação às atividades referentes à vida privada que a coordenadora pedagógica realizava no horário e local de trabalho, mesmo o tempo dedicado a essas atividades de vendas de produtos. Portanto, a situação observada conta com a conivência da diretora.

Placco, Almeida e Souza, (2011) apontam que a baixa remuneração revela a desigualdade que caracteriza as condições de trabalho dos coordenadores pedagógicos, que precisam se dedicar a outros empregos para complementar a renda. As autoras revelam que a necessidade de assumir outros empregos traz consequências negativas para a atuação desses profissionais na coordenação pedagógica. É importante enfatizar que, ao discorrer sobre as ações relacionadas à vida privada que a coordenadora pedagógica desenvolvia no cotidiano da creche “Cuidando e Pensando no Futuro,” não se pretende apontar que esta profissional era pouco responsável com seu trabalho, mas chamar atenção para realidade em que a coordenação pedagógica vem construindo seu trabalho.

Refletir sobre as citadas ações implica considerar que o trabalho da coordenação pedagógica era constituído a partir das condições de vida da coordenadora, das condições de trabalho e de formação, que inclui longa jornada, baixos salários, parcos recursos materiais, ausência de orientação e acompanhamento para planejar, avaliar e refletir sobre as atividades específicas que constitui o seu trabalho etc..

Deste modo, é possível inferir que, assim como as condições de trabalho e formação dos profissionais atuam como elementos facilitadores ou dificultadores da boa qualidade do trabalho, também suas condições de vida são importantes. Provavelmente, uma coordenadora pedagógica bem remunerada, com uma sólida formação e com uma condição de vida melhor não precisaria vender cosméticos, tampouco “dindins” na instituição, podendo dedicar-se mais ao seu trabalho e refletir sobre a necessidade de buscar meios para que as demandas da vida privada não ocupassem o espaço da vida profissional dentro do seu ambiente de trabalho.

Assim sendo, é necessário ponderar a idéia de que difíceis condições de vida e de trabalho marcavam o cotidiano de trabalho da coordenadora pedagógica na creche pesquisada. Além disso, pode-se inferir que talvez a coordenadora ocupasse tanto o seu tempo de trabalho com atividades referentes à vida privada por não saber muito bem e/ou não saber fazer bem o que deveria realizar como coordenadora, bem como por não ser cobrada em relação a isso, pela direção da instituição e pela SME.

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7 O TRABALHO DA COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA NA CRECHE PESQUISADA: A PERSPECTIVA DA COORDENADORA E DAS PROFESSORAS

Este capítulo destina-se a apresentar a perspectiva de Paula (coordenadora pedagógica), Maria, Francisca, Patrícia e Mônica (professoras) sobre o trabalho da coordenação pedagógica e a relação deste com as práticas pedagógicas das professoras.

Os dados foram construídos, essencialmente, a partir das falas dessas profissionais, trazidas, basicamente, nas entrevistas realizadas com elas. Além disso, foram consideradas situações registradas a partir das observações que retratam o cotidiano de trabalho da coordenadora pedagógica.

É relevante mencionar que a observação e a reflexão acerca do que pensam a coordenadora pedagógica e as docentes sobre o trabalho da coordenação pedagógica levaram em consideração o contexto social, histórico e político em que está inserida a instituição, bem como as condições de trabalho e os processos formativos (formação inicial e continuada) dessas profissionais.