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3 BASES TEÓRICAS

3.2 A especificidade do trabalho docente na Educação Infantil

3.2.1 A profissionalidade específica do professor de Educação Infantil

Como ponderado no item anterior, no Brasil, a história do reconhecimento da Educação Infantil como direito e da necessidade de formação específica para atuar em creches e pré-escolas é muito recente. Viu-se que no movimento científico e político da área, a luta pela valorização dos adultos que atuavam junto às crianças, para que fossem formados e

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reconhecidos como docentes da Educação Básica, foi relevante para o reconhecimento da especificidade do trabalho pedagógico do professor de Educação Infantil.

Bonetti (2004), ao estudar a especificidade da docência na Educação Infantil, considera especificidade aquilo que é próprio a certa atuação profissional. No campo da docência, destaca que

É uma forma de explicitar a docência que vai se constituindo no âmbito das instituições de educação infantil, de denominá-la, de estabelecer suas funções, e de determinar sua influência no estabelecimento da formação quanto aos conhecimentos e habilidades necessários para exercê-la junto às crianças pequenas. (BONETTI, 2004, p. 14).

Nota-se, com efeito, que a estreita relação entre os contextos de atuação profissional do professor, a construção da especificidade da função e a formação necessária para exercer a profissão traduzem-se na necessidade de profissionalidade específica para a função de cuidar e educar as crianças em creches e pré-escolas.

Diversos pesquisadores brasileiros do campo da Educação Infantil, como Barbosa (2009), Cruz (2010), Machado (1998), Rosemberg, Campos e Viana (1992) defendem aspectos próprios do trabalho docente com crianças pequenas, o que contribuí para defesa de uma “profissionalidade específica do professor de Educação Infantil.” (OLIVEIRA- FORMOSINHO, 2001, 2002)51.

Segundo Katz (1993 apud OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2002, p. 43), a profissionalidade “[...] diz respeito ao crescimento em especificidade, racionalidade e eficácia dos conhecimentos, competências, sentimentos e disposições para aprender ligados ao exercício profissional dos educadores de infância.”

Para Oliveira-Formosinho (2002), conceitualmente, a profissionalidade docente se refere à ação profissional integral que a educadora da infância realiza junto às crianças e famílias, tendo como referência seus conhecimentos, competências e sentimentos, assumindo a dimensão moral da profissão. A estudiosa esclarece que, em muitos aspectos, o papel dos professores das crianças pequenas é semelhante ao dos professores de outras etapas da educação, contudo, é bastante distinto em outros aspectos, sendo, exatamente, as diferenças que demarcam a profissionalidade específica do seu trabalho com crianças pequenas. Segundo a autora, essas diferenças derivam de algumas dimensões da ação das professoras,

51Quando forem referidos os estudos de Oliveira-Formosinho (2001) sobre a profissionalidade específica das docentes que atuam na Educação Infantil, para ser fiel às denominações utilizadas pela autora, serão empregadas as expressões “educadoras da infância” e “professores das crianças pequenas”, o que, no contexto brasileiro, equivale a professores de Educação Infantil.

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relacionadas às características das crianças, das tarefas desempenhadas pelas educadoras da infância, da rede de interações alargadas e dos contextos.

A primeira dimensão decorre das características da criança pequena. Refere-se a sua globalidade, vulnerabilidade e dependência da família. Segundo Oliveira-Formosinho (2002, p. 44, grifos da autora), “[...] a globalidade da educação da criança pequena reflete a forma holística pela qual a criança aprende e se desenvolve.” Assim, alude ao caráter global do desenvolvimento da criança, o qual exige que o professor a considere como um todo indissociável, em todos os aspectos: afetivo, cognitivo, físico, psicológico e social.

A vulnerabilidade se relaciona à dependência da criança, por muito tempo, do adulto para o atendimento de suas necessidades físicas, nutritivas, emocionais, sociais, psicológicas e de saúde. Vale ressaltar que, embora vulnerável em diversos aspectos, “[...] simultaneamente, desde cedo, [a criança] fala cem linguagens.” (OLIVEIRA- FORMOSINHO, 2002, p. 45).

Nesse contexto, onde coexistem vulnerabilidade, dependência em relação aos adultos e capacidades expressivas, é preciso que o professor reconheça, por um lado, a “vulnerabilidade” social das crianças e, por outro, reconheça as suas competências sociopsicológicas que se manifestam desde a mais tenra idade, por exemplo, nas suas formas precoces de comunicação (DAVID, 1999 apud OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2002).

A segunda dimensão resulta das características das diversas tarefas desempenhadas pela educadora da infância, que configuram a abrangência do seu papel. Assim, a segunda dimensão se relaciona diretamente com a primeira, uma vez que a globalidade, vulnerabilidade e dependência da família, características da criança pequena, exigem que a educadora da infância assuma tarefas diversas, amplas e com limites pouco definidos.

Katz e Goffin (1990 apud OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2002) citam sete aspectos que demarcam a diferença entre o papel dos professores das crianças pequenas e os outros professores: 1) assumir responsabilidades pelo conjunto total das necessidades infantis e pelo desenvolvimento das crianças; 2) a variedade de missões e ideologias que coexistem; 3) a vulnerabilidade da criança; 4) o foco na socialização; 5) os aspectos éticos implicados na vulnerabilidade da criança; 6) o relacionamento com as famílias; e 7) a natureza integrada do currículo. Os autores destacam, ainda, que “quanto mais nova é a criança, mais alargado é o âmbito das responsabilidades pelos quais o adulto deve prestar contas da sua função” (KATZ; GOFFIN, 1990 apud OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2002, p. 47) e mais ampla e diversa é a área das suas interações. Nesse sentido, Oliveira-Formosinho (2002) ressalta que o

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alargamento do papel da educadora da infância decorre da interligação intensa entre educação e cuidado, entre função pedagógica, de cuidado e custódia.

A terceira dimensão relacionada à profissionalidade específica da educadora da infância resulta da necessidade de estabelecer uma “rede de interações alargadas.” Oliveira- Formosinho (2002) destaca os diversos e distintos tipos de interação que a educadora precisa estabelecer, por exemplo: com as crianças, com as famílias, com auxiliares do trabalho, representantes da comunidade e autoridades locais, com psicólogos e assistentes sociais, concebe uma singularidade profissional a educadora da infância e compõe mais um fator de abrangência do seu papel.

Assim, “[...] a capacidade de interação, desde o interior do microssistema que é a sala de educação da infância até a capacidade de interação com todos os outros parceiros e sistemas, é indispensável para a profissional de educação da infância.” (OLIVEIRA- FORMOSINHO, 2002, p. 48). Nesta perspectiva, a profissionalidade da educadora da infância situa-se no mundo da interação, uma interação positiva que marca a forma como a educadora se relaciona com a criança, caracterizada pelo afeto e respeito ao atendimento de suas necessidades, expressos, sobretudo, nos contatos corporais, visuais e auditivos, ou seja, no toque, no tom de voz, no olhar e nas mediações ao seu desenvolvimento.

A quarta dimensão relativa à profissionalidade específica da educadora da infância baseia-se na integração e nas interações, do conhecimento com a experiência, das interações com a integração, dos saberes com os sentimentos. Assim, a autora acredita que interação e integração estão no centro da profissionalidade das educadoras da infância, uma vez que

A centralização na criança e na globalidade de sua educação requer integração de saberes; a centralização na educação e cuidado requer integração de funções; a relação com os pais, com outros profissionais, com agentes voluntários requer interações e interfaces; a relação com a comunidade requer interações e interfaces. (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2002, p. 49, grifos da autora).

Diante do exposto sobre as dimensões que configuram a profissionalidade específica do professor de crianças pequenas, percebe-se que as referidas dimensões dialogam entre si, pois se constituem e se implicam mutuamente.

A relevância das características dos contextos na construção da profissionalidade das professoras de crianças pequenas é enfatizada por Oliveira-Formosinho (2001), quando menciona a diversidade de contextos institucionais e organizacionais nos quais as educadoras da infância atuam em Portugal. Na sua avaliação, essa variabilidade influencia “as condições

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de trabalho das educadoras – a autonomia profissional, os processos de trabalho e o tipo de tarefas e papéis congruentes, e o estilo de interação com as crianças.” (OLIVEIRA- FORMOSINHO, 2001, p. 85). No brasil, esses contextos são a creche, quando a faixa etária atendida é de zero a três anos, a pré-escola, quando as crianças têm de quatro a cinco anos de idade, e as escolas de Ensino Fundamental, que tem crianças matriculadas na Educação Infantil52.

Barbosa (2009), também atenta ao importante papel das interações na definição da profissionalidade específica do professor de Educação Infantil, assinala que o professor, em suas práticas de educação e cuidado, não oferece às crianças pequenas somente seu saber, mas, ao mesmo tempo, o que ele é por meio das interações. Compreende que existe uma especificidade no trabalho do professor de creches e pré-escolas que se refere à sensibilidade necessária para dialogar com as linguagens das crianças, estimular o desenvolvimento da autonomia e mediar a construção de conhecimentos que fazem parte do patrimônio artístico, científico e tecnológico. Além desses aspectos, a autora destaca que a capacidade do professor de se colocar no lugar do outro é um fator necessário ao estabelecimento de vínculos com os sujeitos dessa educação – bebês, crianças bem pequenas e crianças pequenas.

Machado (1998) também destaca a importância das interações sociais para as diversas possibilidades de desenvolvimento infantil, e menciona que elas constituem as alicerces que devem inspirar a caracterização da especificidade das práticas na Educação Infantil.

Assim como Oliveira-Formosinho (2002), essa pesquisadora avalia, ainda, que são as necessidades e características do crescimento e do desenvolvimento53 das crianças que frequentam a Educação Infantil que deve delimitar as competências dos profissionais da área, valorizando as especificidades do trabalho nessa etapa da educação.

Considerando que as práticas pedagógicas também formam a especificidade do trabalho do professor de Educação Infantil, as DCNEI (BRASIL, 2009b) revelam que, além das especificidades aqui apresentadas (globalidade e vulnerabilidade da criança; sensibilidade para dialogar com as “cem linguagens” das crianças; necessidade de estabelecer interações

52Ao se apontar três espaços institucionais de educação e cuidado de crianças, não se pretende fragmentar a Educação Infantil, mas demarcar os lugares institucionais que atendem as crianças na Educação Infantil, bem como os espaços de atuação das professoras e da coordenação pedagógica dessa primeira etapa da Educação Básica, que atuam em instituições que atendem unicamente a Educação Infantil e em instituições com matrículas em outras etapas da Educação Básica. Assim, sempre que forem referidas nesta dissertação creches e pré-escolas, leia-se, também, escolas de Ensino Fundamental que possuem turmas de Educação Infantil. 53Ao distinguir crescimento e desenvolvimento como processos diferentes e interdependentes, Machado (1998,

p. 15 apud MYERS, 1991, p. 31) menciona que: “[...] enquanto o crescimento se define por uma mudança no tamanho, o desenvolvimento caracteriza-se por mudanças em complexidade e função.”

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alargadas e uma relação de parceria com as famílias; e cuidar e educar de forma integrada na perspectiva das interações sociais.), os conhecimentos sobre a brincadeira como linguagem própria da criança, como atividade necessária para seu desenvolvimento e aprendizagem, e as diversas formas como a criança brinca ao longo do seu desenvolvimento, constituem, igualmente, saberes necessários ao professor de Educação Infantil na construção de sua profissionalidade específica.

Outro aspecto sobre a profissionalidade específica dos professores de Educação Infantil é apontado por Cruz (2010). Segundo essa pesquisadora, essa profissionalidade decorre tanto das características das crianças que frequentam essa etapa da educação como do seu objetivo de garantir “[...] o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.” (LDB/96 Art. 29). A autora entende ser preciso observar que no objetivo da Educação Infantil é:

[...] enfatizado o desenvolvimento, não a aprendizagem; as aprendizagens necessárias são aquelas que atendem e favorecem o desenvolvimento. Além disso, a referência é ao desenvolvimento integral da pessoa. É possível concluir, portanto, que o foco é a criança e o seu desenvolvimento, não determinados conteúdos (a não existência, em nosso país, de um currículo mínimo obrigatório para essa etapa da educação reforça essa opção). (CRUZ, 2010, p. 355).

Tendo como referência os fundamentos teóricos apresentados, percebe-se que a profissionalidade específica do professor de Educação Infantil é diferenciada dos professores de outras etapas da educação, porquanto evidenciam que as práticas educativas em creches e pré-escolas devem ter como referência a criança concreta, suas necessidades e interesses em cada momento do desenvolvimento, e não o modelo do Ensino Fundamental, que também não se mostra adequado às crianças que o frequentam.

É preciso destacar, no entanto, o fato de que a construção dessa profissionalidade no País, ainda, é algo a ser conquistado, uma vez que diversos estudos (ANDRADE, 2002; 2007; BUJES; HOFFMANN, 1991; GONÇALVES, 1994; LEITÃO, 2011; SALES, 2007) revelam prevalecer no cotidiano de instituições de Educação Infantil rotinas que quase não consideram as especificidades das crianças, sendo essencialmente centralizadas nos adultos responsáveis por sua educação e cuidado.

Andrade (2007, p. 26) destaca a ideia de que a dificuldade de perceber a especificidade do trabalho realizado com a criança faz com que as professoras se referenciem no modelo escolar, “[...] especialmente naquilo que ele tem de mais tradicional: na repetição,

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na imitação, na fragmentação do saber, na atribuição de grande importância ao silêncio e à disciplina e na centralização do saber e do poder na figura da professora.”

Assim, nota-se que, embora a conquista da Educação Infantil como um direito seja recente, a área, porém, conquistou mudanças significativas na legislação nacional que configuram a especificidade do trabalho do professor em creches e pré-escolas e a conquista de uma profissionalidade específica. Um dos grandes desafios a ser enfrentado consiste, no entanto, em garantir que essa especificidade e essa profissionalidade se traduzam nas práticas pedagógicas desenvolvidas junto às crianças no cotidiano dessas instituições.