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A abertura do ser-no-mundo e a abertura do ser-para-a-morte

No documento renataangelopernisa (páginas 38-41)

Refletir como o Dasein convive em abertura à possibilidade da morte é parte do caminho no qual buscamos pensar o modo como acontece a abertura constitutiva de seu ser. O

Dasein, enquanto ser-no-mundo, nos revela seu dar-se essencial ocorrido em desdobramento

com o reunir de seus constitutivos. O modo de ocorrência da reunião que constitui o seu ser se dá por meio da cura ou do cuidado em que ele se dispõe a seu ser. Aqui, sua disposição o coloca em comunhão com os constitutivos, sem que esse agrupamento configure o fechamento de um conjunto. No entanto, segundo Heidegger,

de fato, afirmou-se que a cura é a totalidade do todo estrutural da constituição da pre- sença. Mas o ponto de partida da interpretação não já impõe a renúncia da possibilidade de apreender a pre-sença como um todo? A cotidianidade é justamente o ser ‘entre’ nascimento e morte. E se a existência determina o ser da pre-sença, e o poder-ser também constitui a sua essência, então a pre-sença, enquanto existir, deve, em podendo ser, ainda não ser alguma coisa. O ente cuja essência é constituída pela existência resiste, de modo essencial, a sua possível apreensão como ente total (HEIDEGGER, 2005, pp. 11-12).

A interpretação do ser que vive, cotidianamente, entre o nascer e o morrer não é tomada em um conjunto limitado por tais extremos. Entre eles há a existência das possibilidades que o

Dasein pode realizar. Portanto, se cabe interpretarmos a cura como um modo de pensar que

como reunião de estruturas. Estruturas estas que constituem seu ser e estão em contínua abertura com seu dar-se mais próprio como poder-ser. Assim, o que o integra é sua conjuntura em abertura. Por outro lado, se levamos a reflexão para o contexto da totalidade, então, estamos fazendo referência a sua possibilidade última. Em sua compreensão como abertura constitutiva, a totalidade de seu ser somente se realiza com sua morte.

A compreensão do ser-para-morte do Dasein nos revela nossa própria finitude. Ela nos evidencia que além de não escolhermos nascer, também não podemos optar por não morrer. No entanto, entre as duas realidades, podemos escolher viver. A escolha pela vida nos coloca em via de nosso próprio ser como poder-ser. Nesse caminho, somos chamados a compreender a vida como sendo o caminho de vivermos em direção ao fim. O modo como convivemos com essa certeza é que reúne ou encerra nosso modo de ser-no-mundo. Podemos também querer não pensar na morte como uma possibilidade, afundados no cotidiano com a esperança de que vencemos o jogo contra a morte. Mesmo imersos nessa fuga na impropriedade, a morte continua presente enquanto poder ser que nos constitui. Nisso reside o fato de que devemos viver nossa morte e não nos refugiarmos dela, escondidos na cotidianidade. Viver a morte é reconhecê-la como possibilidade presente em nosso caminho, de modo a compreendermos que não adianta lutar contra essa certeza indeterminada.

Interpretamos o modo de compreendermos a possibilidade que nos é mais própria como antecipação (Vorlaufen), o que não significa o ato de finalizar com a própria vida. Antecipar a morte é caminhar em sua direção, vivendo, e não, morrendo. De acordo com o pensamento heideggeriano, “a antecipação da possibilidade irremissível obriga o ente que assim antecipa à possibilidade de assumir seu próprio ser a partir de si mesmo e para si mesmo” (HEIDEGGER, 2005, p. 47). Antecipar é viver a morte, compreendendo que caminhamos para este projeto em um modo de compreensão que nos chama à vida. Logo, a tomada de consciência da morte significa nos voltarmos para o viver. O chamado à vida ocorre pela atenção que o Dasein dá a sua auto-interpretação, naquilo em que ele “conhece como a voz da consciência” (HEIDEGGER, 2005, p. 53). Uma voz que não se dá como uma articulação vocal. Ela acontece como a escuta do próprio silêncio que apela. Quando Heidegger nos fala dessa voz da consciência, que nos chama àquilo que somos, não está se referindo a uma perspectiva moral ou mesmo psicológica de consciência. O que ele nos indica a compreender é que se trata de uma forma de comportamento orientada por um modo de nos sentirmos. Para ele, nessa convocação a nós mesmos,

na consciência, a pre-sença clama por si. Essa compreensão de quem clama deve estar mais ou menos desperta no ouvir factual do clamor. Do ponto de vista

ontológico, não é de forma alguma suficiente a resposta de que a pre-sença é, ao mesmo tempo, quem clama e quem é clamado (HEIDEGGER, 2005, p. 61).

Assim, somos tanto quem convoca como também quem é convocado. Aquele que é chamado, nessa convocação, perdido no impessoal, é interpelado por ele mesmo quando fala por meio de seu ser mais próprio. O estranhamento em habitar na impessoalidade e não em nós mesmo faz com que apelemos por nós. Este chamado é decorrente de uma dívida (Schuld) que temos com nosso ser-próprio. Isso se deve à negatividade que ambienta nossa origem.

O caráter de negação que constitui o horizonte mais originário do Dasein tem o sentido assentado no seu “estar-aí; ele é esse ente que está na forma de poder-ser, isto é, que tem em si o seu fundamento, mas, por outro lado, enquanto lançado, o Dasein não pode dispor desse estado de dejecção em que já desde sempre se encontra” (VATTIMO, 1987, p. 55). O fato de ele ter sido lançado em seu Da- e não ter tido a opção de escolher estar ou não nessa situação o torna dependente de uma essência também imprópria. Essa impropriedade advinda de seu ser lançado o coloca em dívida com seu ser-próprio. Seu ser ocorre, então, a partir da referência entre uma existência imprópria e também própria. A cura unifica o seu ser, pois “ela compreende em si facticidade (estar-lançado), existência (projeto) e de-cadência” (HEIDEGGER, 2005, p. 71) em uma unidade não totalizante, mas em ocorrência no -Da do

Dasein.

Para o Dasein ouvir o chamado de si mesmo, significa colocar-se à disposição de se compreender naquilo em que seu ser se revela como poder-ser. Na escuta do chamado ele já põe em obra uma escolha, opta por si mesmo enquanto tal. Ele escuta o apelo da voz silenciosa de sua consciência e escolhe ser si mesmo. O fato de o Dasein “querer-ter- consciência” ao escutar a convocação da voz da consciência, não significa que esta seja uma atitude consciente, conduzida por sua vontade. Menos ainda, um modo de agir regido pela concepção moral de um pensar consciente, mas

o querer-ter-consciência é sobretudo, a pressuposição existenciária mais originária da possibilidade do ser e estar em débito de fato. Compreendendo o clamor, a pre- sença deixa que o si mesmo mais próprio aja dentro dela a partir da possibilidade de ser escolhida. Apenas assim ela pode ser responsável [verantwortlich]2 (HEIDEGGER, 2005, p. 76).

O querer-ter-consciência é o modo como nos compreendemos, atendendo ao chamado da cura. Essa compreensão de nosso ser-próprio é a forma como respondemos ao chamado do ser

2HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1977, p. 382. O termo alemão

verantwortlich expressa um sentido para além daquele de responsável, como um ajuizamento moral de um indivíduo cumpridor de suas obrigações. No texto, portanto, o que é pretendido com o emprego do termo é dizer o modo como o Dasein se comporta, atendendo ao chamado de seu ser. Ou seja, como aquele que responde a um apelo.

que nos apela. Assim, aqui, ser responsável tem o sentido de dar resposta ao nosso ser, o modo como reagimos, espontaneamente, ao nosso próprio dar-se essencial, assumindo aquilo que somos.

A compreensão de si, no querer-ter-consciência do que somos, constitui um modo de nossa abertura se dar. Essa compreensão nos dispõe em nosso ser-próprio e isso não acontece por um ato voluntário fruto de uma escolha. É a de-cisão (Entschlossenheit) no sentido de resolução de algo que acontece a partir de uma situação já dada, ou seja, é o modo como reconhecemos nosso ser-próprio a partir de nosso ser lançado. Na decisão, nós escolhemos nos aceitarmos na situação de que somos seres lançados e, ainda assim, podemos continuar sendo. Na analítica do ser-para-morte do Dasein, essa situação de decisão se mostra através da antecipação da morte. Nela, o Dasein se compreende como finito porque sabe que vive em direção à morte. Ciente dessa situação, ele opta por viver, realiza seus projetos, efetivando com isso o seu ser mais próprio. Assim, seja pela cura que reúne as estruturas existenciais do ser-no-mundo ou pela de-sição antecipatória da morte, chegamos à abertura que constitui o

Da- do Dasein, um modo de compreensão que nos apresenta o ser em sua verdade mais

originária. Através desse horizonte aberto podemos pensar o ser do Dasein em seu ser-próprio como projetado que pode, então, seguir projetando-se, sem que essa compreensão seja limitada por uma relação de concordância.

No documento renataangelopernisa (páginas 38-41)

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