• Nenhum resultado encontrado

A essenciação da linguagem ou a linguagem da essenciação no dizer da arte

No documento renataangelopernisa (páginas 160-165)

CAPÍTULO 2: A VERDADE DO SER ENTREVISTA NA OBRA DE ARTE

3.1 O pensamento no caminho da linguagem poética

3.1.3 A essenciação da linguagem ou a linguagem da essenciação no dizer da arte

Por mais tradicional que a construção de um pensamento sobre a essência de alguma coisa possa parecer, não é esse o intento de nosso questionamento. Ao indagarmos pela essência da linguagem, saltamos das vias tradicionais em seguimento de um outro caminho. Assim, a via para abordarmos o modo de dar-se da essência da linguagem transcorre sobre um horizonte ontológico e não tem, portanto, o escopo de uma reflexão linguística, ou mesmo de um pensar no âmbito de uma filosofia da linguagem. Também

não se trata de fornecer um discurso teórico objetivante e seguro a propósito da língua, mas de pensar a partir da língua, na escuta da língua, a ela correspondendo, de fazer a experiência da essência da língua. [...] de reformar nossa relação com a língua, combater nossos hábitos, abordar a língua não metafisicamente (DUBOIS, 2005, pp. 144-45).

No parágrafo 34 de Ser e Tempo Heidegger faz referência à linguagem, considerando como seu fundamento ontológico-existencial o discurso. Segundo ele, “o discurso é constitutivo da existência da pre-sença, uma vez que perfaz a constituição existencial de sua abertura” (HEIDEGGER, 2002b, p. 220). Portanto, assim como os dois outros constitutivos, a disposição e a compreensão, o discurso participa da abertura originária do Dasein. Lembremos que a originalidade da abertura se dá anteriormente à interpretação da compreensão, da disposição e do discurso. Este último perfaz a abertura porque é o articulador dos constitutivos.

Ao efetuar tal articulação, o discurso não permite que ocorra o fechamento da abertura pela interpretação de seu dizer. É em vista do dar-se essencial de seu dizer que há a conservação da abertura. Assim, resguardo no aberto da abertura, o dar-se essencial da linguagem do discurso atende à interpretação de que “a escuta e o silêncio pertencem à linguagem discursiva como possibilidades intrínsecas” (HEIDEGGER, 2002b, p. 220). Eles desencobrem ao discurso sua mediação articuladora da abertura, do mesmo modo em que também revela seu diálogo com a linguagem que o essencia. Nossa atenção para esse contexto dialogal é a inserção no caminho junto à linguagem.

Questionarmos pela essência da linguagem representa indagarmos pelo âmbito relacional que a constitui. Logo, buscamos pensá-la a partir do dar-se essencial de seu ser, naquilo que Heidegger diz de “penetrar na fala da linguagem a fim de conseguirmos morar na linguagem, isto é, na sua fala e não na nossa” (HEIDEGGER, 2003a, p. 9), e isso, mesmo sendo o que somos – seres de linguagem. Enquanto seres de linguagem, somos por ela constituídos e, por isso, devemos ouvir o que ela nos fala, não o que nós falamos dela conceitualmente.

Da linguagem estamos sempre próximos em decorrência de nossa disposição comunicadora. Em virtude dessa proximidade, a reflexão acerca da linguagem se revela como uma tarefa requerente de grande esforço de pensamento, uma vez que

enquanto falantes nós nos encontramos sempre referidos à linguagem; ela por assim dizer nos envolve com sua essência e descerra a nós o seu mundo. Mas do mesmo modo nós nos encontramos fora da linguagem porque a pensamos como expressão dos nossos pensamentos; a linguagem como expressão dos nossos pensamentos torna-se um instrumento para o nosso agir (ARAÚJO, 2008, p. 127).

O esforço está em atentarmos para o fato de que ao falarmos, nos apossamos da linguagem como instrumento de nossa comunicação e não levamos em conta o desdobramento relacional que tecemos com ela. Agindo assim, nem mesmo percebemos a relação de domínio que temos com a linguagem.

Ora, se somos constituídos de linguagem, se é ela que nos torna isso que somos, resta- nos a questão de como não nos deixarmos levar pelo pensamento em que nos consideramos donos da linguagem. No texto Carta sobre o humanismo, de 1946, Heidegger apresenta a interpretação de que “a linguagem é a morada do ser. Na habitação da linguagem mora o homem” (HEIDEGGER, 2008a, p. 326). O que na passagem é dito abre-nos o caminho para rompermos com a relação de domínio que temos com a linguagem, levando-nos ao encontro de podermos escutar o que nos diz a própria a linguagem.

Enquanto nos consideramos possuidores de linguagem, falamos. Na fala nos é trazido à luz as coisas e o mundo, pois ao falarmos nos aproximamos daquilo que estamos a fazer referência na fala. Entretanto, não somos nós que falamos, mas sim a linguagem. De que modo então ela nos fala? Sua fala, “fala deixando vir o chamado, coisa-mundo e mundo-coisa, no entre da di-ferença” (HEIDEGGER, 2003a, p. 22). Ou, ainda, a fala da linguagem ressoa a diferença ontológica enquanto tal. Ela acolhe a reunião que constitui sua essencialização. O que nela está em reunião nos é enviado na mensagem de seu dizer.

O dizer da linguagem não é um simples falar de palavras como no linguajar quotidiano. Em Ser e Tempo Heidegger apresenta uma distinção entre palavra, como língua

falada e discurso, em que a palavra representa, então, a totalidade do discurso, o seu fechamento na fala. Enquanto a palavra falada se fecha em um sentido, o discurso abre à possibilidade da linguagem. Ele o faz por sua constituição articuladora. É pela articulação que um não se liga ao outro, fala e discurso. O que é desencoberto na abertura do dizer do discurso toma sua significatividade na palavra que o torna o que ele é, apesar de seu modo de ser não se definir por esse é. O dizer da linguagem fala da articulação em reunião do discurso e da palavra. No contexto de A origem da obra de arte,

não encontramos a distinção terminológica entre o discurso desencobridor e a palavra enquanto língua. Aqui aparece somente a linguagem “‘língua’-palavra” (Sprache). Todavia, em tal fala Heidegger pensa a unidade disso que em Ser e Tempo havia distinguido terminologicamente (HERRMANN, 2001, p. 464).

O que é dito na linguagem nos comunica a vigência de seu vigor; logo, sua essenciação. O caminho para pensarmos o dar-se essencial da linguagem é, então, sua manifestação em ocorrência da própria essência. Por isso, não estamos a caminho de pensar a essência da linguagem como algo estático, e sim em ocorrência no caminho. No trançado da sentença heideggeriana que diz “trazer a linguagem como linguagem para a linguagem” (HEIDEGGER, 2003a, p. 192), vemos se revelar o manifestar de uma essenciação da linguagem como o pensar do que na linguagem nos é comunicado, que tem por escopo atender ao chamado de sua fala. Na fala da linguagem vem à luz aquilo que nela é anunciado em uma compreensão da fala que não é apenas a expressão sonora sobre alguma coisa, ou mesmo sobre a língua falada.

Encontramo-nos a caminho e ao encontro do que a fala da linguagem tem a nos dizer e que está além de sua sonoridade, sendo aquilo que nela permanece silenciado. Eis aí a aspereza da tarefa de pensarmos acerca do que a linguagem tem a dizer de si, em sua fala, e também de escutarmos o que nessa fala é silêncio, pois “dizer e fala não são, porém, o mesmo. Alguém pode falar, falar sem parar e não dizer nada. Por outro lado, alguém pode ficar em silêncio, não falar e nesse não falar dizer muito” (HEIDEGGER, 2003a, p. 201). A compreensão da fala como língua falada compromete a compreensão da fala da linguagem como o dizer de si, um dizer pelo silenciar. Em vista disso, nos dispomos à compreensão de tal fala como um dizer daquilo que nela é dito ontologicamente, e não pelo que é proferido sonoramente.

Na diferença entre fala e dizer, o pensamento heideggeriano nos aponta um caminho quando interpreta o dizer como “Sagan, a saga do dizer significa: mostrar, deixar aparecer, deixar ver e ouvir” (HEIDEGGER, 2003a, p. 202). Percebemos nesse horizonte uma

diferença que não os diverge; ao contrário, fala e dizer se aproximam ainda mais, sem perderem suas características próprias. No diálogo, eles são articulados, reunidos no deixar aparecer na fala o dizer do dar-se essencial da linguagem.

O diálogo entre o dizer e a fala permite que ouçamos o que a linguagem tem a dizer de si, graças àquilo que o dialogar, “falar um com o outro significa: juntos, dizer algo, mostrar um para o outro o que se aclama no que se proclama, o que a partir de si mesmo chega a aparecer” (HEIDEGGER, 2003a, p. 202). Assim, isso que aparece e se mostra na saga17 do dizer não se deixa limitar na mostra. Em seu aparecer vigora o diálogo, porém não como simples conversa entre a fala e o dizer. O diálogo não anula o modo de ser de cada um. Ele os coloca em reunião, preservando suas diferenças. Por meio dele, fala e dizer se comunicam e também se escutam.

No horizonte do dizer da linguagem acontece o diálogo entre a fala e o dizer, do mesmo modo em que também acontece sua escuta. Aquele que fala se cala à escuta da fala do outro. Assim também nos colocamos em diálogo com a linguagem, e ao falarmos pela linguagem, falamos à linguagem, sobre a linguagem. Isso em resposta à escuta da linguagem. Ora, portanto, falamos da linguagem porque escutamos, e no que escutamos podemos fazer essa experiência de que habitamos no horizonte da linguagem. Logo, é em vista disso que dizemos ser ela nossa morada.

A linguagem enquanto morada do ser nos permite escutar sua fala enquanto saga de seu dizer. Ela se mostra na fala a partir de uma retirada. Nesse âmbito, entramos em diálogo quando nos articulamos em colóquio que pode se realizar em palavras, ou mesmo no colóquio do silêncio, como uma fala silenciosa. Em tal contexto abrimos o diálogo com o pensamento, colocando-nos a caminho da compreensão daquilo sobre o que dialogamos. Assim, a fala sobre a linguagem abre passagem para a linguagem e “quanto mais a linguagem aparece como linguagem, mais decisivamente transforma-se o caminho para a linguagem” (HEIDEGGER, 2003a, pp. 204-05). Sobre essa via somos caminhantes de uma proximidade que se faz presente no próprio processo, e não ao final do caminho. O discurso sobre a linguagem é o caminho que não se limita na proposição que diz o que a linguagem; é, pois, sua apropriação

17

O emprego do termo “saga” na exposição da compreensão do dizer da linguagem atende ao sentido que o pensamento acerca desse dizer visa expressar, sentido esse que ocorre “de acordo com o uso mais antigo dessa palavra, entendemos a saga do dizer a partir do mostrar. Para designar a saga, uma vez que sobre ela repousa o vigor da linguagem, usamos uma palavra antiga, cheia de testemunhos, não obstante ter saído de uso: o mostrante” (HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Rio de Janeiro: Ed. Vozes; São Paulo: Ed. Universitária São Francisco, 2003a, p. 202). Aquele que tem por condição mostrar, apresentar, fazendo algo vir ao encontro. No mostrar, nesse sentido, o dizer da linguagem deixa e nos faz ver aquilo de que se fala. O que se mostra como saga é o acontecimento da amostragem, ou o modo de ser do dizer. Portanto, não é seu entendimento como narrativa de lendas e aventuras. Logo, enquanto “mostrante”, o dizer como saga traz à abertura a amostra do que se mostra na própria desenvoltura da amostragem.

que ocorre no enquanto de seu acontecimento. Dito de outro modo, ela ocorre no colóquio entre o falar e o calar.

A linguagem se oculta na própria fala. Ela é a condição de possibilidade do falar, bem como do silenciar. Dessa maneira, indaga Heidegger:

onde a linguagem como linguagem vem à palavra? Raramente, lá onde não encontramos a palavra certa para dizer o que nos concerne, o que nos provoca, oprime ou entusiasma. Nesse momento ficamos sem dizer o que queríamos dizer e assim, sem nos darmos bem conta, a própria linguagem nos toca, muito longe, por instantes e fugidiamente, com o seu vigor (HEIDEGGER, 2003a, p. 123).

Essa é a dinâmica que revela a saga da linguagem. Nesse aí ela se manifesta enquanto tal e como aquilo que deixa vir ao encontro o eco do que é percebido no distanciamento da retirada. Apesar dessa interpretação do dar-se essencial da linguagem, sua manifestação como saga deve dispensar o modo de ser uma representação da linguagem. Na verdade, “pela saga do dizer, o apropriar nunca con-cede o efeito de uma coisa e nem a consequência de um fundamento” (HEIDEGGER, 2003a, p. 207). Seu dizer apropriante não representa o apossamento do que é dito. Ele compreende uma apropriação, uma interpretação do que o dizer articula em seu desdobramento.

Na apropriação, o dito da saga se torna próprio, ele mesmo, um dizer no horizonte do

Ereignis cuja essenciação se dá pela diferença. Ao falarmos sobre a linguagem estamos

correspondendo a ela, logo, respondemos ao seu dizer. Na fala de uma resposta repousa o modo como estamos dispostos ao que nos constitui, uma vez que “nosso dizer permanece sempre um dizer da relação” (HEIDEGGER, 2003a, p. 215). Ele permanece no jogo da modalidade do pensamento apropriativo e expropriativo do dizer.

No jogo dialogal, o dizer da linguagem se mostra também por meio do que não é falado, portanto, na fala o dizer se retira. Ele deixa de falar e se cala. O que é calado se resguarda no silêncio do que não deve ser dito. E não o deve porque lhe pertence à constituição se revelar como silenciado, “deve manter-se impronunciado resguardar-se no não dito, abrigar-se no velado como o que não se deixa mostrar, é mistério” (HEIDEGGER, 2003a, p. 202). O sentido do silenciar do mistério se dá pela conservação do que permanece como inexplicável. O termo mistério recolhe o dizer do silêncio, pois cabe ao mistério calar- se em seu dizer como um sigilo.

Um caminho para mantermos esse dizer da linguagem resguardando a perspectiva de mistério é a escuta da palavra poética. O dizer poético possui essa condição quando na poesia a palavra falta. A falta da palavra na poesia não significa simplesmente um papel em branco. Ela intui o que na palavra dita permanece como não dito. O palavreado de um poema pouco

ou nada tem a dizer à audição imediatista da cotidianidade devido a um único sentido com que tal fala poética se deixa representar. Consequentemente, graças a esse entendimento, o que vem percebido na audição da poesia é o falatório da nomeação de seus versos, e não o dizer de sua linguagem. Tal dizer, podemos dizer ocorrente da falta de palavra para o dizer do não dito. Em outras palavras, o que não pode ser expresso em palavras é aí dito no palavrório que nada diz, portanto, falta palavra para dizer o indizível.

A percepção da falta de palavra como um constitutivo da linguagem é dificultada pelo fluxo de palavras que é proferido. Deixamos de atentar para o que é manifesto pela ausência na falta, apesar da simplicidade do que ela representa como o modo de ser daquilo que não pode ser dito em palavras. Precisamente na ausência da palavra nos é revelada a fenda que deixa vir à luz a linguagem, por ela mesma, naquilo que ela tem a dizer de si.

O sentido de um dizer como indicação do indizível, como um discurso projetante que projeta para além de suas palavras implica na essenciação do dizer da linguagem. Em tal dizer está em ocorrência a reunião dos quatro constitutivos da quadratura. No estabelecer de sua palavra está em retração a compreensão do que constitui o seu estabelecimento. Portanto, “no acontecimento do dizer está, a cada vez, uma decisão fundamental, que, por um lado, resguarda o mundo que, em sua vez, insurge e se estende, e, por outro lado, o modo em que a terra é manifesta como isto que se contrai” (HERRMANN, 2001, p. 469). Na contração de um ocorre, simultaneamente, o despontar do outro. Onde terra e céu, mortais e divinos estão em acontecimento o mundo se retrai, permitindo-se dizer por esta retração. É desse modo que na palavra poética a reunião da quadratura pode ser vislumbrada no contexto do pensamento como Ereignis.

No documento renataangelopernisa (páginas 160-165)

Documentos relacionados