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O dizer originário que essencia a poesia

No documento renataangelopernisa (páginas 167-171)

CAPÍTULO 2: A VERDADE DO SER ENTREVISTA NA OBRA DE ARTE

3.2 A poesia no horizonte do pensamento e do sagrado

3.2.1 O dizer originário que essencia a poesia

Indicamos a palavra poética como acesso ao ser da linguagem de modo mais originário. Um acesso que ocorre ambientado pela carência constitutiva do dizer poético. Carência revelada pela falta que o dizer da palavra poética possibilita entrever em seus versos. Desse modo, sabemos, antecipadamente, que participa do ser da poesia um horizonte de ausência caracterizado pela falta de fixação de sentido único do dizer poético. Enquanto a linguagem representa a morada do ser, a poesia como modalidade artística se privilegia por sua composição linguística; ela representa o caminho para entrevermos a verdade do ser, de seu dar-se essencial.

Quando pensamos em morada, logo concebemos a imagem de um abrigo. Concretamente pensada, a morada se mostra a partir de um processo de construção de ser ao acolher e proteger. Igualmente construtivo é o processo de compreensão da linguagem como morada do ser. Resguardadas as devidas diferenças entre um processo construtivo de um abrigo de fato e o construtivo do pensamento da morada do ser, ambos passam por um processo edificativo. No contexto da morada do ser, o processo ocorre pelo pensamento do

Ereignis. Nele, o ser da palavra poética se revela em um horizonte referencial.

No texto Construir, habitar e pensar (1951), temos a abordagem do fato de toda moradia se dar por um processo construtivo, apesar de nem toda construção representar a construção de uma moradia de fato. É o que acontece no exemplo dado no texto que faz

referência à construção de pontes e estradas, que mesmo não sendo um lugar de moradia, tais lugares não deixam de apresentar uma modalidade de habitação. A saber, uma habitação temporária onde “o homem de certo modo habita e não habita, se por habitar entende-se simplesmente possuir uma residência” (HEIDEGGER, 2006a, p. 125). A partir disso podemos reconhecer, primeiramente, que a relação entre construir e habitar não representa somente uma composição formadora de moradia no sentido de uma residência fixa. Em seguida, que a relação desses pares não se dá como um sendo resultado do outro. Ambos, construir e habitar, são o que são porque se dão na relação de um com o outro18. E isso representa mais do que somente pensarmos em construir como um exercício para o habitar, ou deste último como motivação para o construir.

Quando abordamos as construções que não passam de habitações temporárias, no caso de pontes e estradas, abrimos espaço para pensarmos um modo de habitar diverso daquele afinado com a cadência tradicional, em que ao habitar corresponde o fixar morada. Deixamos de vincular a habitação ao sentido de morada permanente e nos abrimos para pensá-la em mobilidade. A habitação não permanente se dá, então, a partir da relação com o construir. Somente com o processo de construção podemos assim habitar, ou melhor, “construir não é, em sentido próprio, apenas meio para uma habitação. Construir já é em si mesmo habitar” (HEIDEGGER, 2006a, p. 126). Em termos de construção de pensamento, somente podemos habitar em um horizonte de pensamento quando participamos de sua construção. Ou, ainda, se somos participantes do processo da relação que constitui a construção e a habitação.

O habitar traz ao construir a dimensão do resguardar. Isso porque ao habitar pertence o vigor como resguardar. Na verdade, a essência do habitar está no que é “ser trazido à paz de um abrigo, diz: permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento, resguardar cada coisa em sua essência. O traço fundamental do habitar é esse resguardo” (HEIDEGGER, 2006a, p. 129). O que não podemos perder de vista, quanto ao resguardar que constitui o habitar, é aquilo que essencia o próprio resguardar que assegura cada coisa em seu dar-se essencial. Resguardar tem o sentido aqui do abrigo do ser em uma morada capaz de acolher sua essenciação articulada pelo desencobrimento encobridor.

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O não questionamento da relação entre o construir e o habitar pode ter se dissolvido na própria significação que foi sendo dada ao termo habitar com o passar do tempo. Heidegger busca no termo buan, do antigo alemão, o sentido do construir (bauen) como habitar, sem que esse seja reduzido somente a uma habitação. Com base nisso, explica ele, “a antiga palavra alemã buan não diz apenas que construir é propriamente habitar, mas também nos acena como devemos pensar o que aí se nomeia” (HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. 7 ed. Rio de Janeiro: Ed. Vozes; São Paulo: Ed. Universitária São Francisco, 2006a, p. 126). Portanto, não se trata apenas de um simples habitar, como no sentido de se abrigar em um determinado lugar, mas da ligação do homem com esse lugar. A saber, o seu modo de comportar-se nesse aí. Por isso, tanto uma casa, quanto uma ponte trazem a representação da relação entre o construir e o habitar. Nelas está abrigado o desdobramento de seu ser.

Ao buscarmos pelo dar-se essencial da poesia, percorremos por um caminho que de longe vem sendo construído por nossa habitação. O seguimento de tais ditos poéticos nos insere no exercício de uma experiência que diz que “poeticamente o homem habita”. O que nos é dito nas palavras desse enunciado faz referência a uma modalidade de habitação representativa da fala de um pensamento que ocorre no “resguardar a quadratura, salvar a terra, acolher o céu, aguardar os divinos, acompanhar os mortais, esse resguardo de quatro faces é a essência simples do habitar” (HEIDEGGER, 2006a, p. 138). O dizer do enunciado nos indica, assim, o desdobramento de uma morada que acolhe e se permite refletir nela.

O habitar poético ressoa o que essencia o próprio habitar. Ele é o modo de habitarmos na morada do ser, o modo como respondemos ao chamado da linguagem que nos essencia. E o que ele permite ressoar ao pensamento é a dinâmica da apropriação/expropriação do acontecer de sua verdade. É desse modo que o pensamento alcança sua essência apropriativa na poesia. Ele habita junto à poesia, porém, “a poesia não sobrevoa e nem se eleva sobre a terra a fim de abandoná-la e pairar sobre ela. É a poesia que traz o homem para terra, para ela, e assim o traz para um habitar” (HEIDEGGER, 2006a, p. 169). O dizer sobre a essenciação da poesia se dá pelo pensar que compreende o seu dar-se essencial a partir do próprio dizer poético.

O caminho que passa pela habitação poética pensa a relação entre o construir e o habitar. O desdobramento desse seu pensamento é a experimentação do que constitui a relação entre eles. Não se trata, nesse sentido, de uma busca direcionada com a finalidade de resolver o questionamento indagador da habitação. O que é buscado desde sempre esteve próximo. Isso se deve ao fato de ser algo que participamos essencialmente. Dito de outro modo, pensamos a essenciação da habitação porque nela nós também habitamos. Logo, desde sempre estamos situados em conjuntura constitutiva com aquilo que levantamos como questão.

A essenciação da poesia, como dito antes, é Dichtung e um dos poetas que versam esse dizer em seus poemas é Hölderlin. Ao nos propormos pensar a essenciação da Dichtung, nos expomos à experiência da poesia que dá palavra ao seu dar-se essencial. A ida à poesia de Hölderlin dá o passo para pensarmos o essencial de toda poesia. Ela representa um poetizar da própria essenciação. Assim,

num sentido, todas as “leituras” de Hölderlin por Heidegger visam deixar agir o poema sobre “nós”. Nós – quem? Se tomamos consciência de que este nós não é o “leitor” amante de poesia, mas que o que o poema poematiza é precisamente um nós histórico, então a abolição final do esclarecimento é verdadeiramente a entrada na esfera da poesia (DUBOIS, 2005, p.180).

Com seu dizer podemos escutar a palavra poética que fala na poesia, sobre a poesia que está sendo. Esse dizer é o dizer de uma região em abertura originária da poesia em que nós também nos tornamos um nós historial.

O pensamento de Heidegger nos aponta o caminho para abordarmos a essenciação da palavra poética hölderliana partindo de “cinco sentenças orientadoras”. Tais sentenças a que nos referimos, acerca do pensamento de Heidegger e a poesia, abrigam e acenam para o dar-se essencial da linguagem poética. O dizer dessas sentenças, não o ouviremos separadamente, pois é na reunião das cinco que nos é entregue o acontecimento que poetiza a poesia. Por meio delas, a poesia se mostra como “a mais inocente de todas as ocupações”. Ela ocorre a partir da linguagem constituída em palavras livres de qualquer ocupação. Essa ambiência traz leveza e simplicidade à escuta da linguagem da poesia, ao mesmo tempo em que tal escuta pode também assumir a dureza e ser tomada em uma ocupação. Diante disso, a palavra poética deixa vir o ente na representação do que na poesia é versado na palavra. Escapar desse perigo significa deixarmo-nos levar pela simplicidade da nomeação da palavra da poesia como uma palavra que diz o ser, fundamentando-o em seu dizer. Entretanto, ao trazermos a termo o fundamento para essa reflexão, fazemos referência ao fundo originário que se dá como ausência de fundo. É o fundamento que se fundamenta no fundo abissal.

O poeta nomeia o ser através da linguagem em uma nomeação que não se funda na ocupação da palavra. Seu nomear ocorre em resposta ao diálogo que nos antecede enquanto homens. Um diálogo que compreende o falar e o escutar como “igualmente originários”. Falar e escutar constituem o dialogar do homem e do Dasein, em uma conversa que os deixa no aí de seu ser. Isso mantém o falar e o escutar ocorrendo em unidade. A medida dessa unidade é a doação de um ao outro.

No discurso do diálogo, falar e escutar se perpassam; ora um, ora outro, sem demora no dito ou na escuta. O que mantém aberto o jogo entre a fala e a escuta orienta a linguagem do dizer poético, sendo o seu fundamento, “o fundamento do ser-aí humano é a conversa como acontecer próprio e autêntico da língua. A língua originária, porém, é a poesia como fundação do ser” (HEIDEGGER, 2013a, p. 54), fundação que corre como abismo. Linguagem e poesia se encontram nesse jogo de abertura de fundamento. A poesia se apropria da linguagem, e esta da poesia, revelando-se naquilo que cada uma é em conjuntura com a outra. A poesia dá voz à linguagem, deixando-a falar através do poetizar do poeta que poetiza aquilo que escuta.

O poeta escuta o ser que lhe acena através da linguagem poética daquele que traz em seu dizer, o dizer da essenciação da linguagem. Tal escuta ocorre pelo chamado da própria

linguagem e o poeta está em condição de escutar e responder a esse chamado porque ele habita um horizonte disposto pelo próprio ser que o essencia. Em tal situação, ele não faz uso da linguagem como sua propriedade, e sim porque ela é participante de sua essenciação. Ela é sua morada. Sua escuta representa, antes, a escuta de uma referência. A referência entre o poeta e a linguagem, entre o que escuta o dizer e o que executa o dito. O que se escuta na referência não é fruto da imaginação, ou mesmo uma criação de quem escuta. É, antes, o eco do que vem ao encontro como acenado, e o que vem no dizer da linguagem, dito através da palavra poética.

No documento renataangelopernisa (páginas 167-171)

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