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A obra nos fala – a Lichtung resguardada na obra de arte

No documento renataangelopernisa (páginas 136-143)

CAPÍTULO 2: A VERDADE DO SER ENTREVISTA NA OBRA DE ARTE

2.3 O jogo entre a verdade (Lichtung) e a obra de arte

2.3.3 A obra nos fala – a Lichtung resguardada na obra de arte

Vamos à escuta do que a arte tem a nos comunicar quando nos fala a partir de sua interpretação em proximidade à origem. Em sua comunicação, ela nos mostra a verdade quando compreende sua essenciação constituída na articulação entre desencobrimento e encobrimento.

No caminho da busca pela arte nos colocamos à sua escuta se dando através da análise de um quadro e de uma obra da arquitetura grega. Isso não determina a sua comunicação ocorrendo somente nessas formas de obra de arte. A verdade dita na obra de arte acontece em toda modalidade de arte. Seja em qualquer manifestação artística, o que deve aqui ser interpretado é a sua condição de nos comunicar o que nela está em obra, e isso significa a sua manifestação como elaboradora da verdade.

A disposição para ouvirmos o que nela está sendo criado é nossa passagem ao próprio acontecimento de sua criação. Portanto, não há uma escala entre primeiro se dá a obra, depois o que ela tem a dizer e, por fim, a escuta de sua fala. Escuta, fala e elaboração ocorrem juntas, e uma somente é possível se pensada na referência das outras. A obra de arte acolhe e resguarda essa articulação do pensamento, deixando-se vir à luz no desencobrimento de sua interpretação, sem que tal desencobrimento se manifeste na totalidade do ente.

O trazer à luz e o resguardar da verdade, pertencentes à elaboração da obra de arte, colocam o desencobrimento de sua constituição em uma situação ambígua. De um lado, temos a colocação da verdade em obra na arte, que significa o desencobrimento do que nela está em operação; logo, seu ser se dá vindo à luz por meio de um desencobrimento. Por outro lado, o desencobrimento que nela está em obra ocorre na referência com o que nela também se encobre. Nesse sentido, o desencobrimento se mostra como desencobrimento, mas também a partir do encobrimento.

A obra de arte permite e também mantém a ambiguidade do desencobrimento em vigência. Nela, o desencobrimento tem condição de se mostrar em desencobrimento, naquilo

que revela seu ser mostrando-o enquanto tal desencoberto, ao mesmo tempo em que o mostra a partir de um encobrimento. A ambiguidade que participa do desencobrimento não é uma interpretação equivocada de sua essenciação. Ela lhe dá a possibilidade de uma compreensão que ultrapassa a sua manifestação como algo que se mostra somente em uma possibilidade. O desencobrimento que se elabora na obra de arte representa o desencobrimento do ente e também o desencobrimento do ser a partir de sua verdade em encobrimento na Lichtung.

A arte, ao manifestar essa compreensão em abertura, nos comunica o que nela está em obra em um modo de dizer que não se restringe a nenhum recurso sonoro ou visual. Seu modo de dizer é estabelecido no que nela está sendo elaborado. Por isso, toda forma de arte é comunicadora da verdade que lhe essencia. No entanto, a poesia tem a condição de nos comunicar, mostrando-se a partir tanto em sonoridade, quanto em palavra escrita. Seja no visual, através de suas palavras, seja no sonoro, através do seu dizer, ela nos chama ao encontro da verdade que nela é aclarada.

A arte como poesia assume uma posição de destaque entre as demais por se manifestar nessa dupla via de comunicação. Ela se constitui no dizer e se estabelece na palavra. Nas duas vias, ela comunica o desencobrimento se dando em relação com o encobrimento, e isso de um modo mais apurado que nas demais manifestações artísticas. O porquê da relevância da poesia no dizer da verdade do ser abre-nos o caminho ao alargamento do pensar de sua relação com esta e ao que isso pode nos revelar. Antes de entrarmos nessa via, ainda precisamos refletir acerca do modo como é instituída a verdade que é comunicada na obra de arte. Para isso, o pensamento heideggeriano nos aponta três modos de ocorrência do instituir da verdade na obra de arte. Segundo ele,

a essência da arte é o ditado poético. Mas a essência do ditado poético é instituição (Stiftung) da verdade. Compreendemos aqui o instituir num triplo sentido: instituir como doar (Schenken), instituir como fundar (Gründen) e instituir como iniciar (Anfangen). Mas só há efetivamente instituição no resguardar (HEIDEGGER, 1998a, p. 80).

Cada modo de instituição da verdade na arte corresponde ao seu resguardar e trazer à luz. Enquanto doação, o instituir acontece através daquilo que insurge na obra no sentido do inabitual. Sua insurgência se dá como realização de um projeto que se desencobre na terra que constitui a obra. Portanto, esse modo de instituição não é compreendido naquilo que nos é dado habitualmente, mas insurge neste que é dado como aquilo que “Heidegger chama um afluxo gratuito, uma profusão, uma doação” (HERRMANN, 2001, p. 475). O solo que nos é comum se doa ao insurgir do mundo que nos vem ao encontro na obra e que se mostra

diferente desse que lhe abre o espaço. Do mesmo modo, esse inabitual que se mostra também se doa à instalação da terra que lhe concede espaço.

O modo de instituir como fundar representa a instituição desse espaço ou fundo no qual o modo da doação acontece. Nesse sentido, a instituição como fundação se dá a partir da terra que constitui a interpretação da obra, aquilo que ela está comunicando no repente de sua abertura. O horizonte de compreensão dessa abertura representa a terra em que a doação se realiza como projeto daquele insurgente que vem à tona na obra de arte. Ele nos revela o contexto historial ao qual o ser da obra está em ocorrência. Portanto, é aquele horizonte comum que constitui o emaranhado de sentidos que compõem a compreensão de comunidade de um povo, e que “em Ser e Tempo, Heidegger chama de hereditariedade histórica” (HERRMANN, 2001, p. 477). Com isso, o que insurge na doação da terra vem como algo diferente. No entanto, isso não acontece como algo vago de sentido. Ele vem à luz sobre o fundo que compreende o inabitual como tal, e isso não significa seu desencobrimento integral. Ele se dá no desencobrimento de sua constituição como aquilo que se mantém em encobrimento.

O terceiro modo de instituir tem o sentido de iniciar. Ele marca o início do acontecimento do desencobrimento, no modo como ele se dá (se funda) a partir de seu surgimento no horizonte da doação. O modo do iniciar vai além do significado do princípio de alguma coisa. Seu sentido é de um salto (Sprung), “o início autêntico é sempre, enquanto salto, um salto que antecipa (avanço – Vorsprung), no qual tudo o que está para vir está já ultrapassado (übersprungen), se bem que como algo de velado” (HEIDEGGER, 1998a, p. 82). O início contém aquilo que insurge e se individualiza realizando seu ser. No entanto, ao se individualizar, esse que insurge como inabitual não sucumbe ao seu desencobrimento, revelando-se em um conceito de individualização. Em seu instituir como iniciação ocorre o salto do horizonte que nos é comum e deixamos o inabitual se mostrar em seu desencobrimento como tal, diferente. Assim, vem à luz o desencobrimento de um mundo que insurge na doação e fundação da terra, em uma modalidade de princípio que salta, passando sem demora por aquilo que é desencoberto.

Esses três modos de instituir a verdade na obra de arte são considerados historiais. A cada início é instituído uma época e “quando acontece um tal início, se estabelece, na historialidade, um abalo: uma historialidade (um historiar-se) inicia de novo” (HERRMANN, 2001, p. 485). O início daquilo que é doado e fundado no solo da obra faz história, e isso não é a representação de um momento histórico ilustrado em um quadro. Ao interpretarmos a abertura instituída na obra como histórica apontamos para o instante em que nela se

desencobre o que se mostra como novo, ao fugir-nos do habitual, sendo outro, diferente e, por isso, novo, ele funda uma unidade historial.

A unidade a que nos referimos como unidade historial representa a reunião dos três modos de instituição da verdade na obra. A reunião desses modos de instituir não significa um conjunto fechado e compactado no campo do desencobrimento do ente. É, antes, o recolhimento de cada um dos modos em seu modo próprio de acontecer, reunidos em uma mesma abertura. A unificação desses instituintes da verdade acontece através da doação ao projeto que faz insurgir outro, fundando-o no trazer à luz da obra que não é encerrado nesse fundo. Tal fundo se constitui na conservação do trazer à luz como aquilo que se projeta, mantendo-se em resguardado na obra em operação projetante e contínua.

O instituir, em seus três modos de ocorrência, inicia o desencobrimento sem deixá-lo permanecer aí. Ele vai além do aí, transpondo-se na temporalidade do desencobrimento. Assim, a arte se mostra histórica no desencobrimento de sua obra. Dizer que a arte é historial não significa somente dizer que ela tem uma história a cada época, mas ela é histórica porque funda história.

A histórica obra de arte, enquanto colocação em obra da verdade do ente, é uma forma em que a verdade mesma se dá historicamente. A obra de arte funda a história; mas este fundar a história ocorre apenas porque a verdade do ser se faz acontecimento (Ereignis). A obra de arte é seu lugar (Ort) de ressonância (ARAÚJO, 2008, p. 56). Assim, a cada instituir que doa e funda, inicia-se um outro desencobrimento. Portanto, ela se mostra originária ao fazer insurgir a verdade, desencobrindo o ente em sua verdade de ente. A arte é a origem da obra de arte, dos modos de criar e do que resguarda o trazer à luz da verdade na obra. Ela inicia no sentido do deixar insurgir o desencobrimento da verdade, fundando-se em um acontecimento historial que não se dá somente desencoberto, mas em desencobrimento.

A origem da obra de arte, uma origem no sentido do fazer insurgir a verdade na obra como algo que se desencobre e resguarda sua essenciação como desencobrimento e duplo encobrimento que funda mundo e faz história, aponta ao questionamento que o autor faz ao final de seu ensaio, se “é a arte ainda um modo essencial e necessário como acontece a verdade que é decisiva para o nosso aí-histórico, ou já não é? Mas mesmo já não o sendo, mantém-se, no entanto, a pergunta: porque é que isso se passa? (HEIDEGGER, 1998a, p. 87). Ele nos indaga quanto à possibilidade de a questão da arte ser um quê de passado, se juntar ao fato de se para nosso Dasein historial a arte ainda ser um modo constitutivo e decisivo do acontecer da verdade.

O fato de desde o início de o pensamento metafísico a arte ter sido interpretada a partir do desdobramento da totalidade do ente, funda sua compreensão na perspectiva objetiva do desencobrimento, e não mais se volta à sua origem como abertura. Com a virada do pensamento em uma apropriação da verdade como Lichtung, uma compreensão que volta a indagar pelo ser, o ser da arte também se mostra no horizonte que deixa ressoar a possibilidade da ambiguidade do desencobrimento que constitui a própria essência do pensamento inicial. Ela representa o passo para a resguarda do pensamento em tal horizonte. Nesse questionamento,

podemos aqui ser tentados a aproximar a análise heideggeriana da arte à análise de Hegel na medida que uma e outra fazem sair a obra de arte do domínio da ilusão, da aparência e a põem em relação com a verdade. A arte para Hegel corresponde à apreensão de si do espírito absoluto, sob a forma ainda imperfeita, refira-se, da apresentação sensível. ‘Arte, religião e filosofia’, diz Hegel, ‘têm em comum o fato de o espírito finito se exercer sobre o objeto absoluto, que é a verdade absoluta. Todavia, para lá desta sentença formal, as diferenças entre as duas análises é clara. A verdade artística não é em Heidegger um absoluto. Não existe sem o homem, o que também não quer dizer que o homem seja o seu autor. É assim para a verdade na arte como para o próprio ser. A verdade na arte não é um produto ou uma fabricação do homem e, no entanto, ela não existe sem o homem. Daí a ‘ambiguidade essencial’ da tese heideggeriana: ‘a arte é a manifestação da verdade’, sendo a verdade tanto o que se põe a si próprio em obra na obra de arte como o que é ‘pro-duzido’ pelo trabalho humano na criação e na salvaguarda das obras (BOUTOT, 1991, p. 117).

A arte como o colocar em obra a verdade também esconde uma ambiguidade constitutiva. A ambiguidade está em ora pensar que a verdade pode ser tomada como sujeito e ora como objeto. Quem coloca o que em obra? A verdade coloca em obra a arte ou a arte coloca em obra a verdade? Em uma anotação de 1956, Heidegger acrescenta que os termos sujeito e objeto não são adequados para pensar a ambiguidade que contém a proposição.

Tradicionalmente interpretados sujeito e objeto, estes levam ao entendimento de algo que se dá a partir de uma relação de subordinação entre um e outro. O objeto aparece na frase como algo dado pelo sujeito da ação, e não é esse o sentido de ambiguidade que Heidegger quer demonstrar quando diz que a frase “a arte põe em obra a verdade” é ambígua. De fato, podemos entender tal ambiguidade como algo que é parte constitutiva tanto da arte, quanto da verdade. Tanto podemos entender a arte como sendo o sujeito da frase “a arte é o por em obra da verdade”, como, também, podemos entender “a verdade como o sujeito que coloca em obra a arte”. Todavia, o que importa não é quem é o sujeito ou o objeto, mas que ambos acontecem mutuamente, sem que um seja subordinado ao outro.

O estabelecer-se do desencobrimento está em obra na obra de arte, demonstrando a verdade nesse desencobrir. Também a verdade se dá na obra, manifestando-se pelo próprio

desencobrimento. Nesse sentido, o pronome “se” do estabelecer-se o retira de um entendimento seja como o sujeito do desencobrimento, seja como o objeto. Ao colocar-se em obra, o desencobrimento traz à luz a verdade em seu manifestar-se enquanto tal. O “se” que se desencobre ocorre a partir do “se” do outro e, por isso, não há uma separação entre sujeito e objeto. O desencobrimento de cada um se dá por sua própria constituição, e isso significa dizer que não há um fechamento de essenciação, mas sua constituição se dá em abertura, não sendo encerrada no que se desencobre. O desencobrimento se constitui como projeto e isso lhe dá a consistência de continuidade projetante. Por isso, o

“projeto” do se nunca é decisão de alguém; é só uma espécie de fundo, de que tem necessidade a escolha de um indivíduo, mas só como fundo para dele se destacar. No se, as coisas desligadas de um verdadeiro projeto não se apresentam na sua verdadeira natureza de possibilidades, mas apenas como “objetos” (VATTIMO, 1987, pp. 46).

O desencobrimento da arte traspassada de sua instrumentalidade mantém-se no fundo aberto de possibilidades a serem projetadas, e não se deixa decair no projeto que se desencobre no instante do desencobrimento.

A reflexão que buscamos do estabelecer-se da criação da obra de arte através do desencobrimento que acontece na obra esbarra na questão de que o criar, enquanto trazer à luz criativo, ser estabelecido pela obra de arte e esta, por sua vez, ser dependente deste mesmo ato criativo para se estabelecer efetivamente. Ao analisarmos e interpretarmos a questão da obra de arte ser a origem da arte, e esta, por sua vez, ser a origem da obra de arte, o próprio desenvolvimento da interpretação da compreensão desse questionamento é de antemão o caminho para uma resposta.

A obra de arte nos coloca em via disso que nela está em obra, se nos dispomos à verdade que nela opera. E isso não é a contemplação da produção de um artista consagrado por seus padrões estéticos, mas sim a escuta do que a arte nos comunica em seu operar como obra, aquilo que ela nos fala a partir de sua própria constituição. É nesse sentido que a origem da obra de arte que estamos tratando aqui não deve ser pensada como o resultado de uma produção artística, já que estamos em busca de sua compreensão em abertura, em uma ambiência mais originária.

A interpretação da arte ocorre em um contexto anterior ao da compreensão da obra como produto do artista, apesar de para a sua compreensão também precisarmos entrevê-la a partir de sua característica de produto produzido. O rompimento com sua instrumentalidade entra nessa passagem à obra enquanto operar da arte. A partir dessa ruptura vamos ao encontro do que a arte nos fala acerca de sua origem como um sendo a origem do outro. Na compreensão disposta pela obra de arte, um não se dá sem o outro, não há a possibilidade de

um ocorrer antes do outro e, por isso, a arte não é a origem da obra de arte e esta não é a origem da arte. Elas se mostram ao mesmo tempo, acontecendo reciprocamente. E o que envolve essa relação é o desencobrimento de ambas as partes, uma junto à outra.

No caminho de buscarmos o dizer da verdade na obra de arte revela-se a Lichtung que na obra está em constante operação de desencobrimento. Isso porque viramos ao pensamento que se ambienta de uma perspectiva ainda capaz de entrever o que possibilita esse desencobrimento ocorrendo a partir de uma ambiguidade. Diante disso, o desencobrimento nos é revelado na obra como o que nela é criado, elaborado.

A modalidade de elaboração que está em obra, na arte se mostra como a realização de um projeto que não se esgota em si. Projeto que se mantém como tal porque sua essenciação é assim resguardada na elaboração da arte na obra. A compreensão acontece nesse projetar livre, com disponibilidade para continuar projetante. Em vista disso, nos é possibilitada a compreensão de que a arte enquanto uma elaboração em obra se constitui de projetos. Ela representa a realização de algo que é elaborado em seu ser e não finalizado nele.

O projetar criador que na obra faz morada apresenta tanto o desencobrimento ao qual estamos acostumados como, também, faz insurgir o desencobrimento de outra possibilidade que não conhecemos. A manifestação dessa outra possibilidade que insurge e se estabelece na arte como outra não se torna comum ao se desencobrir. Ela permanece como outra, se dando a partir do que é familiar. A compreensão que temos dela representa um modo de habitarmos no mundo e tem o caráter de fazer insurgir outro mundo a partir do que estamos acostumados. Ela realiza um projeto e faz insurgir, através deste realizado, a articulação daquilo que nela é resguardado e desencoberto.

Por fim, a arte fala-nos de sua constituição essenciada pela projeção do desencobrimento resguardado na ambiguidade de sua origem. Em sua manifestação, vemos vir à luz o acontecer da verdade que se dá a partir do desencobrimento e também do desencobrimento do encobrimento. Sua fala nos comunica algo de diferente, causando-nos um abalo quando revelado. No choque com o diferente, somos levados, em um primeiro momento, ao caminho de trazê-lo para a proximidade de nossa cotidianidade. Apesar disso, a arte nos dá o passo para a compreensão de que este que se mostra em outra instância se constitui assim, e por tal não deve ser consumado na totalidade do desencobrimento que nela está em projeção.

No documento renataangelopernisa (páginas 136-143)

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