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A luta originária da verdade como desencobrimento e duplo encobrimento

No documento renataangelopernisa (páginas 124-128)

CAPÍTULO 2: A VERDADE DO SER ENTREVISTA NA OBRA DE ARTE

2.3 O jogo entre a verdade (Lichtung) e a obra de arte

2.3.1 A luta originária da verdade como desencobrimento e duplo encobrimento

O pensamento da articulação da verdade mais originária que acontece na obra de arte traz a verdade partindo de um horizonte de compreensão orientado por uma luta. A luta tem o caráter de um combate entre partes que estão em situação de embate. No entanto, nessa interpretação, esse embate não se orienta pelo conflito entre suas partes. Sua ambientação acontece em harmonia, e os opostos em luta se resguardam na própria contraposição a que estão dispostos. Eles não se rendem um ao outro, “ao contrário de destruir um ao outro, os combatentes se exaltam reciprocamente – na verdade – um eleva o outro ‘até dentro à quadratura do seu estabelecer-se’” (HERRMANN, 2001, p. 274). Nesse horizonte não há a redenção de um ou de outro, nem a vitória, porque o que está em jogo é a própria efetivação da luta. Cada um cumpre seu estabelecer-se, recuando e cedendo abertura para que o outro possa também acontecer em seu próprio estabelecer-se. Na luta há uma relação de intimidade entre os combatentes por seu comum-pertencimento. A obra de arte resguarda tal luta, ela

mantém a luta em unidade. Em uma unidade que não deixa de pensar a oposição entre terra e mundo.

A revelação da terra nos é demonstrada em sua comum pertença ao mundo. Uma comum pertença que pertence ao modo como constituímos nossa compreensão desse horizonte. Tal elaboração da terra no mundo ocorre por meio da referência daquilo que se dá a partir de outro. A terra se estabelece constitutivamente surgindo através do mundo e, com isso, faz também o mundo insurgir. A reciprocidade de terra e mundo acontece no

erguer-se através de”. Vista assim, a recíproca relação entre mundo e terra poderia parecer como a ‘ vazia unidade de uma contraposição em que os polos não têm nada a dividir um com o outro. (...) A contraposição em que mundo e terra se induzem reciprocamente a luta é, porém, a verdadeira relação entre mundo e terra, que deve ser colhida como a plena unidade de suas contraposições. Esta última se mostra se seguimos pensando-a, no acontecer de sua recíproca relação (HERRMANN, 2001, p. 272).

O termo luta nos abre à compreensão em outra possibilidade de entendimento que não se fecha no resultado do combate. O que buscamos entrever da luta é o decorrer de seu combate. A luta que se constitui através da obra de arte acontece junto àquela entre mundo e terra. Nesse sentido, na obra vem mantida e custodiada por uma luta originária em que a luta entre mundo e terra ocorre em situação de conjuntura. Neste mostrar e se ocultar constitutivo da luta na obra quadro, templo, bem como em toda forma de arte está a comunicação daquilo que constitui a própria luta. Portanto, o estabelecer do desencobrimento na obra de arte, através do dúplice encobrimento, abre caminho para o pensamento da verdade que na obra vem sendo elaborada.

Constitutivamente, a verdade se estabelece no desencobrimento e no duplo encobrimento, em uma articulação que compõe uma luta anterior à luta do desencobrimento com o encobrimento. Essa luta irrompe no repente do momento que se abre e se funda nas aberturas históricas da verdade. Em tais aberturas aclaradas, na luta entre mundo e terra, ocorre a extensão à luta originária. Assim, a verdade que se mostra constituída no desencobrimento e encobrimento, verdade e não-verdade, também apresenta o não desencobrimento dessa sua constituição. Ela, a verdade

está a ser como ela própria (é) na medida em que o escusar-se [escusa-Verweigerung] que encobre, enquanto recusar, atribui a toda a clareira a (sua) proveniência permanente, atribuindo, porem, enquanto dissimular, a toda a clareira a inabalável acutilância do confundir-se. Na essência da verdade, pretende-se nomear-se com o escusar-se que encobre aquilo que há de antagônico que reside na essência da verdade entre a clareira e encobrimento. Trata-se do que há de contraposto no combate originário. A essência da verdade é em si mesma o arqui-combate (Urstreit) em que é conquistado o meio aberto no qual o ente é introduzido e a partir do qual se retira em si mesmo (HEIDEGGER, 1998a, p. 55).

A colocação do ente em desencobrimento acontece na obra através do trazer à luz aquilo que se mostra. Tal interpretação dá ao desencobrimento a aparência de que isso que é colocado à mostra é o que se estabelece como verdadeiro. Apesar disso, a colocação à mostra do desencobrimento do ente deve manter-se em relação com o não desencobrimento, na dissimulação de sua constituição. Nesse modo de compreensão daquilo que se desencobre, “o estabelecer-se do ser é o desencobrimento como desencobrimento e duplo encobrimento” (HERRMANN, 2001, p.357) e, por isso, a verdade não é algo que aparece e se instala no desencobrimento. Ela acontece na Lichtung, juntamente ao ocorrer dessa abertura aclarada.

Na interpretação do modo como é desenvolvido o desencobrimento no pensamento heideggeriano, vamos ao encontro do acontecer da verdade através dos modos constitutivos em que é desenvolvido o desencobrimento do ente, no como de sua vinda à abertura. O desencobrimento acontece, então, no pôr-se-em-obra da verdade como a elevação daquele que ela mesma faz insurgir, ou seja, a própria verdade desencobre sua constituição na obra. Também aí ocorre o desencobrimento do ente que é a obra de arte. Nesse desencobrimento do ente, a proximidade com a entificação que torna o ente mais ente – isso não significa um ente superior aos outros entes, mas o ente na totalidade que se avizinha ao ser – funda o desencobrimento no modo do ente se dar, sendo junto à verdade do ser. Logo, não somente do ser daquele ente, mas do ser em geral.

O desencobrimento do ente torna o modo de conhecer firmado na sua totalidade. A partir daí, o âmbito das ciências se efetivam na investigação que visa à totalidade do desencobrimento. Apesar disso, esse modo ainda pode instigar o questionamento de sua ocorrência, uma vez que tem um duplo encobrimento em sua referência. Consequentemente, esse impulso abre o caminho para avistarmos a origem do desencobrimento.

O modo como o mundo insurge na obra de arte se dá na sua instalação enquanto mundo que ocorre através da doação da terra, sendo esta última elaborada no afirmar de sua articulação em luta com o mundo. O firmamento de ambos, terra e mundo, apresenta o modo como o desencobrimento vem à luz na obra de arte e a perspectiva da luta demonstra como acontece essa relação, sem que sejam unificados mundo e terra em uma única e mesma coisa. A luta os mantém unidos em comum pertença, no sentido de que no insurgir do mundo está a contração da terra e na retração do mundo a terra se estabelece.

A luta como referência ao acontecimento de mundo e terra não unifica, o que não é também uma separação como uma fenda, Ri

b. Entre eles, “ao modo do fender-se rasgando

combatentes” (HEIDEGGER, 1998a, p. 66). O fato de eles não se igualarem por estarem juntos pertence ao modo como cada um se desencobre na luta. Logo, a questão do desencobrimento é o que os toma em reunião. Na verdade, eles ocorrem separados naquilo que cada um é enquanto tal, e ao mesmo tempo em ajuntamento no mesmo combate.

A luta os mantém em unidade através de um só fundo, (Umri

b))))

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. Sua ocorrência tem o sentido de um traço-fenda como uma reunião de coisas que têm modos diferentes de ser. Ainda assim, elas se unificam na composição de algo. Em outras palavras, retornando ao contexto de um quadro, nele está a compreensão que temos da tinta, cores, desenho, pintura, par de sapatos, etc., reunidos na constituição do que é o quadro. Ao observarmos o quadro, não nos voltamos para a compreensão do que cada um desses elementos é, mas naquilo que os reúne no quadro. Ou, ainda, o quadro reúne vários desencobrimentos por meio de seu próprio desencobrimento, que ao se estabelecer deixa retraídos os demais em sua ocorrência.

A verdade como desencobrimento vem endereçada em um ente e nele deixa insurgir a luta entre mundo e terra. Esta luta, aí contida, tem a característica do traço-fenda e o “trazer criativamente à luz uma obra de arte significa trazer esta última até dentro a luta de mundo e terra como traço-fenda” (HERRMANN, 2001, p. 380). Desse modo, a verdade se estabelece no ente enquanto este está em articulação com a abertura da verdade. Quando o ente se coloca no aberto do traço-fenda, a luta se retira e o estabelecimento de seu modo de criação surge na obra. O desencobrimento apresenta-se em um modo de refixar; portanto, é também um dar forma. Uma forma que se dá estabelecida através do desencobrimento do ente, mantendo dissimulada a participação do encobrimento de seu ser.

A verdade que na obra faz morada como luta entre a Lichtung e o seu desencobrimento, objetivamente entende a obra no sentido de um utensílio, que ao ser criado, se perde na serventia. Entretanto, assim como o utensílio, a obra de arte também é fruto de um processo de criação. Isso faz com ela se distancie de uma interpretação mais originária, inserindo-a na rede de significados do mundo, compreendendo-a a serviço de algo. No

9O termo tenta manter em articulação aquilo em que consiste a luta no pensamento heideggeriano, como a

preservação do combate entre oponentes, a preservação do espaço da luta, enquanto luta que não se reduz à vitória ou a derrota dos pares. Porém, a sua peleja, nessa luta como fenda permanece aberta. Em nota, na tradução do texto A origem da obra de arte, temos a seguinte explicação sobre o termo: “Vamos traduzir Rib por ‘fenda’, ‘traço’ e ‘ traço-fenda’. A ideia central do uso deste termo parece ser aqui a de desenhar, fendendo (aufreiben), de uma forma – é a partir daqui que se devem entender os termos Grundrib, ‘plano’, Aufrib, ‘esboço’, Umrib, ‘contorno’ – que assim se torna patente. Essa forma é assim inscrita num material, mas forma e matéria, como mundo e terra, têm tensões antagônicas. É por isso que o traçar na forma na matéria, o fazer uma fenda nesta, constitui ao mesmo tempo da sua tensão de separação e o mantê-las unidas (zusammenreiben)” (HEIDEGGER, M. Caminhos de floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998a, p. 66). O traço-fenda representa o jogo de uma relação que não se elimina no traçado que liga a separação. Ela tem a presença da fenda em sua referência.

entanto, ao mesmo tempo, representa a passagem à aproximação de uma ambiência de origem. Assim, mesmo que a obra passe pelo processo de criação como um utensílio, há outra ocorrência criativa em sua constituição quando nos dispomos ao aberto de sua interrogação. Enquanto a obra de arte traz à luz dois modos de estabelecimento: o seu próprio desencobrimento e o desencobrimento da verdade como Lichtung, ela também nos indica o caminho para questionarmos esse seu acontecimento advindo de um processo de criação.

A passagem pela interpretação do ser-criado e da criação da obra de arte ocorre a partir daquilo que no pensamento heideggeriano é compreendido no estabelecer da Lichtung na obra. Com o desdobramento do pensamento que acolhe a insurgência de mundo, como um acontecimento do desencobrimento dessa verdade, o que nela é criado, na insurgência, é resultante de um produzir que não é efetivado no espaço da obra. Assim, esse acontecimento se mantém como acontecendo através da luta originária do desencobrimento e do duplo encobrimento e insere o ser-criado da obra, na perspectiva de um sentido de trazer e resguardar (Bewahrung) a verdade do ser.

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