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O sagrado como origem, a experiência no hino: “Assim como em dia santo ” (Wie

No documento renataangelopernisa (páginas 197-200)

CAPÍTULO 2: A VERDADE DO SER ENTREVISTA NA OBRA DE ARTE

3.3 A reflexão sobre o sagrado a partir da poesia de Hölderlin

3.3.3 O sagrado como origem, a experiência no hino: “Assim como em dia santo ” (Wie

wenn am Feiertage)

Buscamos caminhar sobre a via de um horizonte em que a relação entre o pensamento, a poesia e o sagrado possa ser interpretada em proximidade com a origem. Pensarmos a relação, assim, de modo mais originário implica indagarmos pelo como acontece seu ser. Diante disso, a pergunta pelo ser em geral abre caminho para o pensamento capaz de suportar a originalidade da relação.

O pensamento coloca em referência a questão da poesia e do sagrado, assim como a reflexão da poesia coloca em referência o pensamento e o sagrado. Também o questionamento pelo sagrado toma em referência o pensamento e a poesia. O passo de questionamento de um dos constitutivos da relação não exclui os outros; apenas os coloca em reserva. Uma reserva que traz à presença aquele que permanece na ausência da reserva. No desdobramento da relação fazemos a experiência de seu ser tomando parte de sua essenciação. Ou seja, também nos aproximando daquilo que nos essencia mais originariamente.

A possibilidade de ser da relação entre o pensamento, a poesia e o sagrado nos é entregue no acolhimento da precariedade da linguagem poética. A contingência poética, por sua não certeza absoluta, deixa aberto o espaço onde a retomada da originalidade se torna possibilidade. Apesar de esquecidos da origem, ela nunca deixa de estar junto a nós. É nesse sentido que buscarmos por ela representa uma retomada. O andamento da experimentação da retomada nos é oferecida pela experiência pensante da poesia.

A experimentação dessa ambiência faz retornar o que

Heidegger designa o Sagrado como “o que não cessa de ser sempre (das stets Einstige)”. Enquanto que inicial (das Anfängliche), ele permanece em si intacto e salvo (unversehrt und “heil”). [...] O Sagrado é mais antigo que os tempos que são mensurados aos homens, às nações e às coisas. Mais antigo, ele é tão anterior, portanto mais original, portanto mais temporal que os tempos que servem aos cálculos dos filhos da terra (BRITO, 1999, p. 122).

Sendo mais originário, o sagrado sempre esteve junto a nós. Em todo o percurso que colocamos em via, ele esteve presente à margem da estrada. A experimentação da ausculta da palavra poética, como exercício do pensamento que acolhe a diferença na essencialidade de sua abertura, abre-nos uma região. Esse espaço que se abre no caminho é permissivo da manifestação daquele que permanece à espreita e, desde o início, à beira do próprio caminho.

É nesse sentido que não cabe, aqui, dizermos o sagrado como uma resultante da relação entre pensamento e poesia, isso somente no caso da interpretação se dar por um método visando à obtenção de um resultado ao final do processo, o que não condiz com a

proposta dessa tese. Caminhamos na experimentação da relação, dispostos, desde o início, ao sagrado. E a disposição representa nada menos que nosso atendimento à própria convocação do sagrado que nos acena na origem. Ele nos convida por meio do pensar, e

a partir do Ereignis, a abertura do sagrado pode ser vista como o próprio acontecimento que apela ao pensamento sua apropriação. Será por meio dessa dinâmica que o sagrado, questionado em sua abertura, sofrerá uma prospecção de seus limites, exercício que deixa surgir para o pensamento sua amplitude essencial a ser apropriada como tal, a partir de seu acontecer próprio que, para tal, exige um dizer ritmado com seu compasso (TOLEDO, 2011, pp. 211-212).

Tal dizer não é outro senão o da palavra poética dita por Hölderlin. Ele nos fala através de sua poesia, e o que ouvimos de seu dizer está muito além da simples nomeação das palavras em seus versos.

Dar voz ao sagrado é a missão do poeta e auscultar o dizer do poeta é, aqui, o exercício do pensamento. O poeta, por habitar na medianeira entre deuses e homens, alcança a abertura do encontro com o sagrado. Seu encontro, em vista de tal lacuna, não tem o direcionamento voltado para um alvo. O poetizar do poeta não se reduz à escrita poética ou o simples relato da experimentação de sua vida. A criação do poeta vem do choque com o impensado, mas nem por isso não originário. Em sua missão lhe é revelado não só o que é dito impensado, como também a tarefa que ele tem de pressentir esse outro ainda impensado. Ao pensamento cabe, portanto, abrir-se a esse impensado na experimentação da palavra do poeta.

Propomo-nos a fazer a experiência da palavra poética, na abertura do pensamento do

Ereignis, e nesse caminho entrever o sagrado a partir da proximidade à origem. É desse modo,

na precariedade do dizer poético, que o pensamento faz a experiência de ausculta e retomada do sagrado. A partir da poesia Assim como em dia santo..., nos colocamos em via da reaproximação com o sagrado através do

hino considerado por Heidegger “a mais pura poesia da essência da poesia” (HWD, p.44). Essa pureza se origina da maneira como é poetizada a essência da poesia nesse que o filósofo situa como o primeiro hino elaborado por Hölderlin, pois, em primeiro lugar, nesse poema se anuncia com ênfase a relação do sagrado com o poeta, que surge aqui mediada em termos fundamentais pela natureza (WERLE, 2004, p. 116).

Na palavra poética da poesia auscultamos o dizer acerca do sagrado. Nela, ele toma voz como a natureza, se permitindo manifestar como origem. Em sua tarefa, “a nomeação poética diz o que invoca ela mesma, segundo sua essência, coloca o poeta na necessidade de dizer. Assim agradecido, Hölderlin nomeia a Natureza o Sagrado” (BRITO, 1999, pp. 52-53). Colocarmo- nos à disposição das palavras de Hölderlin na poesia implica na experimentação do dar-se

essencial de nós mesmos em uma proximidade originária em que o reencontro com o sagrado pode acontecer.

A interpretação que propomos da poesia como experiência pensante acontece no contexto de três palavras: natureza, palavra, mensagem25. Um caminho que buscamos junto à proposta heideggeriana:

a interpretação de Heidegger está, portanto, marcada por três etapas: a chegada do sagrado por intermédio da natureza, sua consolidação na palavra poética e, por fim, seu repasse como mensagem sagrada para o seio do povo. A essência da poesia se decide segundo esse percurso do dizer do sagrado (WERLE, 2004, p. 116).

Três momentos em que somos levados, junto ao pensador, à disponibilidade de uma experiência de reencontro com o sagrado como aquilo que, por natureza, nos é originariamente próximo. A realização da experimentação consuma a palavra poética de Hölderlin, sua missão como mensageira do sagrado aos homens.

Assim como em dia santo...:

Assim como em dia santo, para ver os campos,/ lavrador sai, pela manhã, quando/ da noite quente caíram os relâmpagos refrescantes/ todo esse tempo e o trovão ruge ainda longe,/ o rio regressa de novo ao seu leito,/ e fresco o solo verdeja,/ e da chuva alegre do céu/ goteja a videira, e resplendentes/ ao sol tranquilo se erguem as árvores do bosque:// Assim se erguem eles em tempo propício,/ aqueles, a quem nenhum mestre só, a quem maravilhosa/ e onipresente educa e cria em leve enlace/ a potente, a divinamente bela natureza./ Por isso, quando ela parece dormir em certas estações do ano/ no céu ou entre as plantas ou nos povos,/ se enche de luto também a face dos poetas,/ parecem estar sozinhos, mas eles pressentem sempre./ Pois, pressentindo, ela própria repousa também.// Agora, porém, rompe o dia! Eu esperava e via-o vir,/ e o que vi, o sagrado, seja o meu verbo./ pois ela, ela mesma, que é mais velha que os tempos/ e está acima dos deuses do Oeste e do Oriente,/ a Natureza acordou agora com ruído de armas,/ e do alto do Éter até ao fundo abismo/ segundo lei fixa, como outrora, saído do Caos sagrado,/ sente-se de novo o entusiasmo/ que tudo cria.// E como no olhar do homem brilha um fogo/ quando concebeu altas coisas, assim/ se incendeia de novo c’os sinais, c’os feitos do mundo agora,/ um fogo na alma dos poetas./ E o que outrora aconteceu, mas mal se sentiu,/ eis que só agora se revela,/ e as que a

25Nossa experiência do sagrado nesse hino, através das palavras – natureza, palavra e mensagem – não implica

na sua compreensão ocorrida em momentos separados. Diferente disso, buscaremos no dizer de cada palavra a sua reunião com as demais. É nesse sentido que Heidegger considera que “eis o que é nomeado na primeira estrofe, quase como se quisesse descrever um quadro. Seu último verso termina, porém, por dois pontos. A primeira estrofe desemboca na segunda. Ao “assim como” da primeira estrofe corresponde o “assim” com que começa a segunda. As expressões “assim como” e “assim” estão em uma relação comparativa que inclui a primeira estrofe junto com a segunda dentro da mesma chave, e talvez estabeleça uma unidade com todas as estrofes seguintes” (HEIDEGGER, M. Explicações da poesia de Hölderlin. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2013a, p. 64). Por vezes, tomaremos alguns versos de estrofes diferentes para o dizer da mesma abertura de compreensão que constitui o dar-se essencial do dito poético, movimento que nos é possibilitado pelo próprio vigor da palavra poética que se essencia na unidade dessa abertura.

sorrir nos lavraram o campo/ em figura de escravos, são-te agora conhecidas,/ as sempre vivas, as forças dos deuses.// Queres interrogá-los?: na canção sopra seu espírito,/ quando do sol do dia e da terra quente/ ela desperta, ou das trovoadas do ar, e de outras/ que, mais preparadas nas funduras do tempo/ e mais ricas de sentido e a nós mais distintas,/ vagueiam entre terra e céu e entre os povos./ Pensamentos do espírito comum são,/ que acabam calmos na alma do poeta,// tais que ela, ferida de repente, há muito já/ patente ao Infinito, treme de recordação,/ e, inflamada do raio sagrado, lhe é dado/ o fruto nascido em amor, obra dos deuses e homens,/ o canto, que a ambos dê testemunho./ Assim caiu, como os poetas contam, por ela desejar/ ver com os olhos o deus, o seu raio sobre a casa de Sêmele,/ e ela, ferida do deus, pariu,/ fruto da trovoada, o Baco sagrado.// E por isso bebem fogo celeste agora/ os filhos da terra sem perigo./ Mas a nós cabe, sob as trovoadas do deus,/ ó poetas! permanecer de cabeça descoberta,/ e com a própria mão agarrar o raio do pai,/ o próprio raio, e oculta na canção,/ oferecer ao povo a dádiva celeste./ Pois se nós formos puros de coração/ como crianças, e as nossas mãos sem culpa,// o raio do Pai, o puro, não o queimará,/ e, fundamente abalado, sofrendo do mais forte/ as dores, o coração eterno contudo fica firme (HEIDEGGER, 2013, pp. 61-63).

As três primeiras estrofes da poesia abordam o encontro da natureza com o sagrado. Sendo que na primeira estrofe, “quase como a descrição de um quadro” que retrata a cena do amanhecer de um dia no campo, o sagrado vem acenando através do dizer da natureza ali descrita. Nesse ambiente, a natureza nos é revelada em momentos e elementos que se conjuntam, reunidos como na ocorrência da quadratura. A segunda estrofe fala da natureza por sua onipresença, como “a potente, a divinamente bela natureza” (v. 13). Sua experimentação assim, através do dito poético, resulta, então, no entrever da natureza como algo que constitui horizonte.

A que sentido de natureza nos referimos, quando buscamos pensá-la junto ao sagrado? De imediato podemos dizer não se tratar daquilo que “significa a cada vez um âmbito particular do ente” (HEIDEGGER, 2013a, p. 68). Aqui, a natureza atende à evocação de sua origem. Nesse sentido, ela é como a

fu/sij, fu/ein, significa crescimento. Mas como os gregos compreendem o crescimento? Não como acréscimo quantitativo, nem como “evolução”, e menos ainda como a sucessão de um “devir”. fu/sij é o porvir e o rebentar, é o abrir-se que, ao rebentar ao mesmo tempo retorna para a proveniência e se encerra naquilo que concede a todo presente a sua presenciação (HEIDEGGER, 2013a, p. 69).

A condição de onipresença da natureza lhe dá a extensão de estar presente em todas as coisas, de estar em todo o real. Apesar da onipresença, ela não retira àquilo que individualiza cada um que compõe o real. Sua onipresença reúne os opostos, “aqui ressoa a a)rmoni/a heraclitiana que não anula a discordância dos opostos, mas os coloca e conecta como

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