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A poesia hölderliana como caminho de uma experiência pensante sobre o sagrado

No documento renataangelopernisa (páginas 184-189)

CAPÍTULO 2: A VERDADE DO SER ENTREVISTA NA OBRA DE ARTE

3.3 A reflexão sobre o sagrado a partir da poesia de Hölderlin

3.3.1 A poesia hölderliana como caminho de uma experiência pensante sobre o sagrado

A imersão em uma experiência pensante da poesia de Hölderlin nos leva à ausculta de um dizer da linguagem que diz o sagrado. Assim, o encontro que se tonifica pela ausculta da palavra poética não se dá como um encontro que tem dia, hora e endereçamento previamente agendados. Ele denota, diante disso, ser um encontro no escuro. Entretanto, nem por isso estamos mergulhados na completa ausência de luminosidade. O encontro a que nos referimos, quando tratamos ser “às escuras”, é o encontro com o impensado. Ele ocorre na referência do claro ou do pensado. A região referencial entre claro e escuro, grito e silêncio dá àquele que vem ao encontro o alcance de uma dimensão em abertura. O desprendimento da abertura orienta o entremeio dos pares divergentes, reunindo-os, oferecendo condição ao ressoar do sagrado em abertura.

O horizonte da dimensão que reverbera o sagrado é essenciado pela Lichtung. Ela resguarda o entremeio que permite a ele ser desencoberto a partir de seu ser-encoberto, ou seja, por meio de uma modalidade de ser em abertura e não atrelado a definições concretas. Nesse sentido, a visitação ao sagrado pela experiência pensante da poesia hölderliana não reflete a presença de uma entidade. Antes, representa uma tonalidade, um sentir-se situado por uma atmosfera consagrada pela Lichtung. A anterioridade de sua tonalidade consiste na proximidade com a origem. Aí, nessa dimensão originária,

o sagrado, o único que constitui o espaço essencial da deidade, o único igualmente que outorga a dimensão para os deuses e o deus, só poderá vir a se manifestar antes disso e por meio de uma longa preparação o próprio ser tiver se iluminado, tiver sido experimentado em sua verdade (HEIDEGGER, 2008a, p. 352).

20A proximidade com o sagrado que buscamos vivenciar, por meio da poesia de Hölderlin, não contempla o seu

entendimento moldado por preceitos religiosos. Não refletimos a partir de uma determinada religião porque estamos buscando uma ambiência mais originária que anteceda a qualquer forma conceitual. Justamente por isso, ela nos permite vivenciar a atmosfera que abarca o modo de ser sagrado, e não aquilo que as religiões comumente denominam por sagrado. Sendo assim, o caminho que tomamos é o da ausência dos deuses no diálogo com a poesia. No texto Heidegger et l’hymne du sacré, Emilio Brito faz referência a essa questão, considerando-a como “uma das mais célebres declarações da obra heideggeriana tardia: ‘o pensamento sem-deus (das gott-lose Denken), que se sente forçado a abandonar o Deus dos filósofos, o Deus como Causa sui, é agora mais próximo do Deus divino’” (BRITO, E. Heidegger et l’hymne du sacré. Louvain: Presses Universitaires de Louvain – Peeters, 1999, p. 32). Logo, é nesse sentido que o pensamento sem Deus, aproxima-nos da vivência com o sagrado mais originariamente percebido, onde “a poesia de Hölderlin nos é o destino” (HEIDEGGER, M. Explicações da poesia de Hölderlin. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2013a, p. 11) e que podemos, então, buscar retomar o pensamento acerca da deidade.

Não resta dúvida quanto à importância da interrogação do sentido do ser para a busca do sagrado. É caminhando junto ao pensar que pensa o ser por ele mesmo que nós podemos acessar o sagrado, então poetizado como origem.

A condição para alcançarmos a ambiência originária nos é indicada pela experiência pensante da poesia de Hölderlin, “conforme o que Heidegger experimenta dele, é ele quem vai mais longe em direção ao futuro, pois faz perceber a verdade sob a forma do Sagrado, e isso à época da ausência de Deus” (BRITO, 1999, pp. 28-29). Logo, a poesia hölderliana abre um horizonte que ultrapassa o tempo da falta do Deus entificado. Ela não só diz a ausência de Deus, como também é a partir da ausência por ela poetizada que os deuses, outrora foragidos, podem se manifestar novamente. Nesse sentido, a ausência de Deus representa o retorno da presença dos deuses que se foram. Em outras palavras, o rompimento com o Deus entificado traz à proximidade os deuses, que no instante da tomada em totalidade do desencobrimento do unificado, escaparam pelo encobrimento.

No contexto da ausência, que também representa uma maneira de dar-se presença, a palavra poética, por sua carência, pode ser o caminho do encontro com o sagrado. A linguagem poética abriga uma carência que faz dela a portadora de uma originalidade essencial. Nela, uma pluralidade de facetas pode ser manifestada na articulação entre ter sentido e não ter sentido algum. A palavra poética não tem a obrigatoriedade de um serviço. Mesmo na concepção mais básica do fazer poético, não se poetiza com a intencionalidade de um “para que”. O que essencia a poesia é o dizer de sua verdade, o que não é somente a fala de uma representação, pois “a configuração rítmica do dizer é, portanto, determinada desde o início pela Grundstimmung, pela disposição fundamental da poesia que cria sua própria forma” (BRITO, 1999, p. 34). Portanto, na Grundstimmung, o poetizar se dá tonalizado pela verdade em abertura e desprovido de determinação.

A Grundstimmung é a região de fundação da poesia, uma fundação em disposição fundamental. No entanto, em sua fundação não há o assentamento de uma base de fundo. Ao se dar pela verdade como abertura historial, sua fundação ocorre desprovida de um fundo. O sem fundo que constitui a Grundstimmung é vazio, porém não um vazio como esgotamento de sentido. Ao contrário, é um vazio pleno de possibilidades. Ele é essenciado pelo poder-ser na projeção do que vem ao aberto da Grundstimmung. No poder-ser tudo e nada podem acontecer; não existe, portanto, uma razão ou interesse para esta ou aquela possibilidade se realizar, bem como de a poesia se efetivar. Eis aí o mistério que participa da abertura. Ele tonifica, resguardando-a no aberto ao que se mantém encoberto.

A palavra poética dialoga disposta na Grundstimmung, permitindo o ressoar de seu ser sem nenhuma determinação de ser. Na palavra poética de Hölderlin, o sagrado ressoa como “‘desinteressado’ (das Uneigennutzige). O desinteressado não é somente aqui o que sacrifica seu interesse próprio ao interesse comum, mas esse desinteresse que retira também ao interesse comum seu caráter interessado, isto é, sua finitude” (BRITO, 1999, p. 35). O ambiente ausente de interesse é também um modo de acesso ao sagrado. Enquanto situado no ambiente de mistério que participa da Lichtung, ele se revela como desinteressado por não ter razão para ser. Sua manifestação é, então, desinteressada de determinação e ocorre por mistério.

O caráter de ausência é aqui reivindicado para o dizer do sagrado como falta de interesse em se revelar em totalidade, o que torna claro, a cada vez, a primazia da palavra poética como palavra essenciada pela falta de palavra. É nesse sentido que ela diz o sagrado, dando-lhe voz na falta de palavra, dizendo-o indiretamente e de modo mais originário. A ausculta da lírica de Hölderlin traz-nos à experimentação um horizonte de proximidade com a origem, pois faz-nos perceber o sagrado ressoado na carência de sua palavra poética.

Em uma primeira referência à poesia hölderliana, ao “poeta do sagrado”, os versos “Não a eles, os bem-aventurados que apareceram/ em tempos idos,/ As imagens divinas no País antigo” (HEIDEGGER, 2004, p. 79)21 nos convocam ao pensar de uma negação. A negação contida no verso alude aos deuses antigos. Por meio da menção de sua não invocação somos convocados à sua disposição. Ao experimentarmos a palavra que nega os deuses antigos os tornamos presentes pela própria não invocação. A presença dos deuses antigos na negação do verso vem-nos na referência da ausência. Em outras palavras, “o não a eles” ocorre relacionado ao “sim a eles”.

Nesse sentido, a negação não implica em sua perda. Ela é o modo como o pensamento os concebe a partir da ausência e não se deixa perder somente na perspectiva da presença presente. Segundo Heidegger, “o ato de invocar é uma forma de resolver uma disputa entre a abertura da predisposição e a falta de preenchimento” (HEIDEGGER, 2004, p. 82). Esse modo de trazer ao pensamento pela não invocação implica um sofrimento. Sofrimento pela dificuldade em trazer à proximidade aquilo que somente pode ser percebido na distância como ausência e negação, “essa dor da invocação, este lamento, origina-se e vibra numa disposição

fundamental do luto” (HEIDEGGER, 2004, p. 82). É uma disposição desinteressada, é Grundstimmung, é o luto sagrado. Ela, a dor, representa, assim, um

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Os versos citados correspondem ao primeiro e segundo verso da poesia Germânia, HEIDEGGER, M. Hinos de Hölderlin. Lisboa: Instituto Piaget, 2004, p. 79.

luto original, é a superioridade lúcida da simples bondade de uma grande dor. Ela instaura, de modo essencial, uma abertura do ente em sua totalidade. Por isso, o luto é de natureza sagrada (die Trauer ist eine heilige). A disposição fundamental é inteiramente sagrada (BRITO, 1999, p. 35).

Tal dor não se dá por um sofrer determinado por nenhum sentimento. Sua ocorrência nos coloca em disposição àquilo que nos é mais essencial. Ela nos convoca ao que somos. O luto dito na poesia representa, nesse sentido, algo que é essencial e originário. É ele quem tonifica o horizonte que abriga a ausência e também a presença dos deuses que se foram.

O luto sagrado traz o apelo da divindade na renúncia dos deuses. O fato de pertencer aos deuses a possibilidade da fuga não elimina a divindade que também participa de sua essenciação. É em jogo com a renúncia que a divindade dos deuses é resguardada. A renúncia representa a força motora que movimenta a Grundstimmung, abrindo espaço para que os deuses possam se manifestar. A renúncia, desse modo, é reveladora e não simples negação dos deuses. Através dela nos abrimos ao encontro com o sagrado quando reencontramos os deuses fugidios.

Na afirmação do Deus metafísico ocorre não só a renúncia aos deuses antigos, mas também a renúncia ao próprio ser. A partir disso, o sagrado perde a tonalidade da

Grundstimmung e pensá-lo representa trazer para junto o pensamento do Deus unificado.

Contudo, junto à renúncia ocorre o desapego. No desapego está a condição da retomada. Quando desapegamos de alguma coisa, não abandonamos o que aí é desapegado. Ao desapegarmos da algo, deixamos de pensar esse algo. No deixar de pensar reside o esquecimento. Assim, não abandonamos os deuses e sua sacralidade originária, porém, o que nos atinge é a demora no esquecimento.

Na palavra poética, lamento e luto compartilham a terra. Sobre essa terra, habita poeticamente o pensamento vivente da experiência do lamento e do luto. Em outras palavras, ao nos dispormos à experiência pensante da poesia de Hölderlin, passamos à habitação de um horizonte que ressoa o sagrado na fuga dos deuses. A terra, vinda de um vasto horizonte, não tem mais o limite de uma área. É terra aberta, disponível à ocupação daquele que se distende ao seu lavorar. Habitar essa terra não significa nela descansar. Nossa morada sobre a terra não ocorre somente na calmaria que causa paralisia. Ela é laboriosa porque nela se conflitam descanso e trabalho, permanência e oscilação. Quem nessa terra habita, deve junto a ela lavorar.

No trabalho está a vibração da terra. Ele a mantém essencialmente aberta e fecunda. Sua ambiência é da Grundstimmung. Aí, ela é sagrada e “‘mãe de todas as coisas’, ela ‘porta o abismo’ (v. 76), o abismo onde desaparece a solidez e a particularidade de toda base e onde,

portanto, tudo se reencontra sem parada para a aurora de um novo tornar-se” (BRITO, 1999, p. 39). O lavorar da terra é também revelador de sua abertura abissal. É através dele que ela se torna fértil para semeia. No abismo da terra, o que dela brota não funda enraizamento. Seu desabrochar é ligeiro e passageiro, o que doa espaço à continuidade da semeia. Em função disso, o caminho ao qual dispomos a lavorar nessa terra é a experiência do pensamento, em ausculta ao sagrado poetizado por Hölderlin.

Na poesia que ressoa o sagrado pelo lamento de seu luto, os deuses antigos se revelam como fugitivos e isso também lhes dá o espaço para o anúncio dos que ainda estão por vir. Logo, sua manifestação na poesia é passageira. Sem demora, eles deixam o rasto para que outros possam vir. Na perspectiva da passagem, os passantes se mostram passando e o que os reúne, passados, passando e ainda por passar é a rememoração. Com ela não deixamos cair no esquecimento o caminho que vigora os viandantes que se propõem a embrenhar pela ausculta poética.

A palavra poética nos coloca em um espaço de possibilidade de acesso a um dizer originário e instaurador. Um dizer que se dá sobre a terra que também representa aquilo que nos essencia. Arrancarmos do esquecimento esse dizer originário não significa a dissolução do dizer do que somos, mas a insurgência de nossa origem. A instauração poética é, portanto, a insurgência da originalidade da Grundstimmung, situada na junção entre a renúncia e a espera, na mesma manifestação. Essa junção é “o que Hölderlin nomeia o Innigkeit (recolhimento)” (BRITO, 1999, p.40). O termo recolhimento ressoa uma proximidade ao pensar de Heráclito – no fragmento 50, onde o lo/goj é abordado nesse contexto. Para Heidegger,

o( Lo/goj: o legen, o de-por e pro-por, é o puro deixar dispor-se em conjunto o que, por si mesmo, assim se prosta. O Lo/goj vige, pois, no e como o puro legen, o puro de- por e pro-por, que colhe, escolhe e recolhe no recolhimento de uma concentração. O Lo/goj é assim recolhimento originário de uma colheita original a partir de uma postura inaugural. o( Lo/goj é postura recolhedora e nada mais (HEIDEGGER, 2006a, p. 190).

É esse recolhimento que harmoniza a renúncia e a espera como força autêntica do próprio ser na poesia. Harmonizadas, elas se juntam, mas não se anulam. Cada uma mantém sua energia harmonizada, junto, e com a energia da outra.

Na recolha da renúncia e da espera, a palavra poética abre passagem para o originário se manifestar. Diante disso, o dizer da poesia não é portador de um dizer melancólico que lamenta o luto pelos que se foram. Ele também nos concede um fio de esperança quando ressoa a disposição da espera pela passagem dos fugidios e dos novos. É nesse sentido que

a disposição não representa qualquer coisa, mas ela guia nosso Dasein em uma relação tonalizante aos deuses. Mas na medida onde os deuses reinam sob o Dasein histórico e o ente em sua totalidade, a Stimmung nos reinsere simultaneamente em relação à terra e à pátria. A abertura do mundo se torna na Grundstimmung. A força alargadora da disposição fundamental coloca o Dasein sobre suas bases e diante de seus abismos. Graças à potência da Grundstimmung, o Dasein do homem é por essência exposição (Ausgesetztheit) no sentido do ente manifesto em sua totalidade. A disposição fundamental é transposição (Versetzung) original no desligamento do ente e a profundeza do ser (BRITO, 1999, p. 42).

Mediante isso, para nós, a Grundstimmung não deve representar uma modalidade sentimental. Não estamos tratando de uma instância de envolvimento afetivo por algo que nos atinge externamente. Diferentemente, aqui somos assaltados pela Grundstimmung, por sua participação naquilo que nós somos. Assim, alcançamos tal tonalidade em atendimento à nossa essenciação. Situados nesse horizonte, reencontramos os deuses fugidios, bem como a manifestação do sagrado.

No documento renataangelopernisa (páginas 184-189)

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