• Nenhum resultado encontrado

O surgimento de mundo através da obra de arte

No documento renataangelopernisa (páginas 111-115)

CAPÍTULO 2: A VERDADE DO SER ENTREVISTA NA OBRA DE ARTE

2.2 A interpretação da origem da obra de arte

2.2.2 O surgimento de mundo através da obra de arte

A obra de arte, ao nos trazer a possibilidade de entrever um ente que está além de sua instrumentalidade e de sua representação artística, nos indica outro que não está disponível à visibilidade habitual. Devido a isso, ela rompe com a rede de significados que compõe o seu

ser-utensílio e nos dispõe em outro horizonte de compreensão. Ao possibilitar tal rompimento, ela abre seu mundo, ao mesmo tempo em que deixa surgir outro. Esse outro que vem ao encontro acontece juntamente ao que da obra nos é dado de antemão habitualmente.

A obra de arte caracteriza-se para Heidegger pelo facto de ser “irredutível” ao mundo, caráter que os instrumentos não têm: o facto de o instrumento, pelo menos enquanto funciona bem, não atrair a atenção sobre si é sinal de que ele se resolve todo no uso, no contexto do mundo, ao qual pertence, pois, radicalmente. Pelo contrário, a obra de arte caracteriza-se, mesmo na experiência estética mais comum, pelo fato de se impor como digna de atenção enquanto tal. Que a obra de arte não se reduz, como o instrumento, ao mundo a que pertence é algo que está confirmado pela experiência que continuamente temos de fruição de obras de arte, mesmo do passado mais remoto (VATTIMO, 1987, pp. 114-115).

Na obra de arte está em obra um sentido de mundo que não é mais interpretado a partir de um horizonte em conjuntura com a rede de significados dos entes e o Dasein, como acontece no contexto de Ser e Tempo. Não podemos dizer que há uma diferença entre tais interpretações, como uma ruptura de um texto para outro. Todavia, com o decorrer do caminho desenvolvido pelo pensamento, ocorre também a abertura do sentido de mundo. Se no texto de 1927, o mundo se configura no emaranhado de significados remetidos à abertura do Dasein, agora, com a verdade do ser mais próxima de sua origem, o caráter de abertura não se restringe mais à verdade do descobrimento do Dasein. A proximidade com a origem ultrapassa o ser do Dasein do homem indo à abertura do ser em geral.

Na abertura, mundo, Dasein e entes intramundanos ocorrem em conjuntura de mundo. Nesse sentido, porque habitamos no mundo, podemos compreender o modo como ele acontece. Isso não significa dizer que devemos residir no mundo ôntico da camponesa para compreendê-lo. Ele nos é permitido porque sua compreensão nos é dada a partir do pensamento que se desdobra em abertura àquilo que se mostra encoberto na intimidade da obra.

A descrição dos sapatos da camponesa revela seu mundo sem que ele tenha sido desenhado no quadro. A conjuntura de tudo que é observado e dito sobre o quadro dá a proximidade do mundo da camponesa. Nesse sentido, o mundo se dá em referência com aquilo que o constitui. E o que constitui mundo, chamamos de terra. A obra de arte, ao deixar insurgir um mundo, também deixa aparecer a compreensão de sua constituição. Ela acolhe sua constituição em um modo de acolhimento que não significa um aglomerado de entes. Nesse recolhimento ela também se mostra. Portanto, mundo, terra e obra de arte se constituem na modalidade da conjuntura. E o modo como isso acontece é o que estamos buscando dizer na reflexão sobre o quadro de Van Gogh.

Na origem da obra de arte está em vigência o ser da arte e o ser do utensílio. Eles estão em constante referência em que um se mostra no desencobrimento do outro. É nesse sentido que ela, a obra de arte, deixa vir à tona um mundo e sua constituição. Ao mostrar-se na simplicidade da arte através do ser-coisa, ela apresenta um mundo. Logo, é por meio de nossa compreensão mais originária que nos é permitido o entendimento do mundo.

No mesmo evento, ao mostrar-se no seu caráter de deixar insurgir um mundo, a obra de arte apresenta a compreensão de seu surgimento. No norteamento da compreensão por essa interpretação mais originária podemos perceber o entendimento daquilo que constitui o mundo que ocorre na relação de mútua referência entre um e outro.

Assim, como no pensamento da diferença ontológica, o mundo, bem como aquilo que o constitui, não seguem um processo de identificação por estarem em relação. O mundo não é reduzido ao seu processo de compreensão, nem a terra a ele. No entanto, ocorre um retraimento em que um se esconde para que o outro possa vir a ser. A compreensão da terra revela mundo na sua referência em abertura. Do mesmo modo, quando sua constituição se mostra nesse horizonte aberto, o mundo se retrai e a terra se revela. O mundo em abertura se retira para expressar aquilo que constitui a compreensão da terra. Contudo, sua retirada não significa sair da abertura, mas se resguardar em encobrimento como manutenção da articulação entre terra e mundo, abertura e retraimento.

O conhecimento do utensílio sapato não depende da sua utilização enquanto tal. Mesmo em repouso no quadro, o seu ser-utensílio continua vigorando, representado figurativamente, pois na obra permanece o pertencimento do utensílio ao mundo e sua constituição como terra. A interpretação de mundo se estabelece na fiabilidade (Verlä

blichkeit) da compreensão do horizonte ao qual somos participantes, “só nela

percebemos aquilo que o utensílio é verdadeiramente” (HEIDEGGER, 1998a, p. 30). Aí somos participantes do pensamento que confia na verdade como abertura de compreensão. A partir dele, interpretamos mundo em sua constituição e a terra como aquela que faz vir aos olhos o utensílio sapatos da camponesa. Ao fazê-lo, ela encobre o mundo, revelando-o e a si mesma. Assim, a relação de um com outro se mantém na reciprocidade. Logo, na realização dessa interpretação, o mundo se esconde para que a terra possa ser ela mesma. No mesmo evento, ao se mostrar, a terra deixa manifestar o mundo. Deixa-o encoberto na compreensão dessa articulação.

O mundo se encobre quando fazemos uso do utensílio, seu sentido fica encoberto na utilidade e, com isso, sua compreensão aparece. A utilidade nos dá o ser do utensílio. Contudo, é também no uso que nos perdemos do ser-utensílio do utensílio. Sua utilidade se

desgasta no próprio uso e entramos na habitualidade, voltamos ao ôntico. Na descrição dos sapatos da camponesa, usura e desgaste aparecem e demonstram a relação que esta tem com o utensílio e

não somente que o ser do instrumento repousa em sua utilidade [Dienlichkeit], mas que esta unidade repousa na segurança [Verlässichkeit], na confiança atribuída ao instrumento, que, no seio do uso, mantém a postos, assegura este uso, a relação com o ente no uso. E essa segurança, por sua vez, sobre o que repousa ela, ou o que ela assegura? Uma habitação do mundo (DUBOIS, 2004, p.169).

A compreensão utilitária de um utensílio ocorre na confiança de que seu ser é a sua serventia. Fazemos uso dele porque compreendemos que ele é àquilo para o que serve. O rompimento com essa compreensão com o ser-utensílio da obra faz com que outro modo de compreensão venha ao encontro.

Despida de sua utilidade, o que nos vem é o seu ser-coisa. A coisa na obra demonstra outro mundo de compreensão e para que isso ocorra é necessária a demonstração dessa compreensão, daquilo que a torna possível. Por isso, à compreensão pertence um fechamento para que o mundo possa se mostrar. Já ao mundo pertence o retraimento para que sua constituição possa se revelar. Enquanto retraído, o mundo permanece na dinâmica da verdade do ser na clareira da obra. Porém, sua constituição, por ser revelada no desencobrimento, requer um fechamento para que o mundo possa se mostrar em retração. Devido a esse fechamento devemos nos manter atentos para não fecharmos nossa interpretação junto dele. O fechar da terra ao mundo deve ser compreendido em uma ambiência anterior ao seu desencobrimento, “a obra descerra seu mundo apenas se ela se refugia ao seu fundamento de coisa. Aquilo que emerge neste refugiar-se da obra é a terra. A essência da obra é assim a exposição de um mundo e a produção da terra” (ARAÚJO, 2008, p. 65). O fechamento advindo da constituição da terra não implica na totalidade de um fechar. Ele se dá na referência recíproca com o aberto da abertura.

A análise do par de sapatos da camponesa representados no quadro revela a articulação do ser-utensílio e do ser-coisa habitando na obra de arte. Nesse caminho buscamos manter o pensamento oscilante, dialogando com tais modos do acontecimento da obra, sem demora em um ou noutro. Ele não se mostra aparentemente desencoberto enquanto tal, mas retraído, encoberto no evento do desencobrimento como encobrimento. Na busca pela origem da obra de arte, “esta falou. Na proximidade da obra, estivemos, subitamente, num lugar que não aquele em que habitualmente costumamos estar” (HEIDEGGER, 1998a, p. 30). Um lugar que nos retira da cotidianidade, mas que necessita dela para poder se mostrar. Esse modo de

compreensão que se mantém oscilante insurge disposto na obra, operando a partir da verdade como Lichtung.

O caminhar junto às interpretações tradicionais da coisa para colhermos a arte desarraigada dos pressupostos estabelecidos pela sua operação na obra trouxe-nos à proximidade de uma compreensão da arte livre de sua instrumentalidade. Através dela, outro mundo nos é revelado ao irmos além de sua efetivação como obra produto de uma criação. Contudo, a reflexão esbarra na problemática de como esse que vem ao encontro e se mostra assume uma compreensão não se vinculando novamente ao modo de entendimento comum sobre a obra de arte. É necessário ainda questionar o modo como isso pode ocorrer, sem que o mundo retorne ao esquecimento de sua constituição, tornando-se habitual.

No documento renataangelopernisa (páginas 111-115)

Documentos relacionados