• Nenhum resultado encontrado

A elaboração da terra na obra de arte

No documento renataangelopernisa (páginas 115-122)

CAPÍTULO 2: A VERDADE DO SER ENTREVISTA NA OBRA DE ARTE

2.2 A interpretação da origem da obra de arte

2.2.3 A elaboração da terra na obra de arte

A referência ao estabelecer da obra de arte aborda sua constituição a partir do mundo que nela insurge e nela se instala. A instalação do mundo na obra ocorre a partir de sua compreensão junto ao desencobrimento da terra. A compreensão pela qual uma obra é elaborada pertence à terra. Sua manifestação acontece não só na obra de arte. Antes de ser interpretada no pensamento da obra, a compreensão da terra nos é revelada naquilo em que ela mesma é desencoberta. O modo como acolhemos seu desencobrimento constitui o modo como vamos concebê-la na obra de arte. Isso significa que se ela se dá no desencobrimento da arte, como simples arte e não no sentido de obra, ela se mostra mais originariamente em abertura ao mundo que vem através dela se manifestar.

Os modos de estabelecimento da arte na obra de arte dificultam que ela se mostre em si mesma. Este estabelecimento acontece na falta de atenção ao acontecimento da verdade do ser que na obra está em ocorrência. Seu estabelecer-se ocorre no próprio “retraimento e esfacelamento de um mundo que indicam algo como um fechamento disso que uma vez insurge, estendendo-se, na obra de arte” (HERRMANN, 2001, pp. 192-93). O mundo, que na obra insurge, não encerra sua significação no fechamento de seu desencobrimento como aquele que surge e assim se estabelece como tal. Sua compreensão deve ocorrer a partir do fechamento da terra que se dá no recolhimento do mundo.

Assim, o mundo recua para revelar a terra que se desencobre nesse encobrimento. No entanto, se recuar ele se torna esquecido, ocorrendo, então, a consumação de seu aniquilamento. Ele se vincula a outra mediação e deixa de ser percebido na obra. Assim, é também a retração do mundo que torna a obra de arte um objeto utilizável. Ele apresenta sua

compreensão no desencobrimento de seu surgimento e funda sua verdade nesse desencobrimento. A objetividade da arte na obra surgida da retração do mundo não é o seu ser originário, mas uma consequência constitutiva de seu ser enquanto obra. O fato de buscarmos o ser da obra de arte na perspectiva da retração de mundo não nos faz desviar do mundo, ao contrário, nós nos aproximamos ainda mais dele.

A proposta de análise de um templo grego não representa a revivência do que aquele lugar viveu. Apesar disso, podemos acessá-lo no que sua presença artística traz como herança histórica que constitui o mundo em que a obra está inserida, o que não nos indica ser o caminho de uma historiografia da vida grega contida no templo. O pretendido é que através daquilo que é apresentado na descrição do templo, possamos alojar o pensamento em articulação com o que constituía aquele horizonte de sentido.

O templo não traz nenhuma imagem. Sendo apenas uma edificação, ele não imita nada, nem tem a aparência de algum elemento da natureza. Enquanto obra de arquitetura, ele apresenta um tipo de utilidade quando pensado como a edificação de um processo de criação. O rompimento de sua característica de construção nos leva ao fundo da obra. Ele deixa sua arte se mostrar livre de sua criação. O templo traz uma outra configuração que ultrapassa sua utilização como imóvel construído, criado

no seu estar-aí-de-pé, dá às coisas pela primeira vez o seu rosto, e aos homens dá pela primeira vez a perspectiva acerca de si mesmo. Esta vista permanece aberta enquanto a obra for uma obra, enquanto o deus não se estiver escapado dela. O mesmo acontece com a imagem do deus, que o vencedor, no torneio, lhe consagra. Não é uma cópia para que, por ela, mais facilmente se torne conhecimento do aspecto de deus, mas sim uma obra que deixa o próprio deus estar presente e, por isso, é o próprio deus. O mesmo vale para a obra linguística (HEIDEGGER, 1998a, p. 40).

Portanto, o que o templo deixa ressoar em sua edificação é o abrigo da verdade como

Lichtung. Nele se mostra consagrado a possibilidade da percepção da articulação entre mundo

e terra porque é vivaz em sua imponência a vivência do dar-se essencial dos gregos.

Através do templo percebemos o que compõe o mundo grego porque buscamos retomar nele a ambiência de suas vivências. Ali, lutas e batalhas, aventuras e desventuras estão presentes no mundo histórico-espiritual do povo grego sem que para isso se apresentem como realidade efetiva. O que não significa um voltar para tal mundo, mas podemos entrever o modo de ocorrência do dar-se de sua vivência.

A interpretação do templo como manifestação do mundo grego ocorre trazendo à tona o desencobrimento de seu mundo pelo modo como o homem nele habitava, e não diretamente do seu habitar enquanto tal. Aqui, o mundo se revela não pela marcação de momentos históricos ou como conjunto de acontecimentos do passado. Na Origem da obra de arte, o

mundo grego vem à luz não só pelo conjunto de sua história, mas através da intensidade de um mundo historial. O mundo como horizonte de compreensão daquele povo, o que significa interpretar sua historicidade ocorrendo em precedência ao seu próprio Dasein.

O mundo que contempla o templo se mostra referido à terra. Na sua edificação, o mundo grego surge em um modo que “desde cedo, os gregos chamaram a este surgir e irromper, no seu todo, a Fu/sij. Ao mesmo tempo, clareia [lichten] aquilo sobre o qual e no qual o homem funda o seu habitar. Chamamos-lhe a terra” (HEIDEGGER, 1998a, p. 39). Ao trazermos o mundo em retraimento à compreensão, também trazemos à luz a matéria que constitui esse seu horizonte. É na firmeza do templo que a dureza de sua matéria se mostra.

A terra se desencobre na referência do templo como disposta ao fechamento que lhe é constitutivo, porque ela se desencobre em conjuntura aos demais entes, em conjuntura ao mundo. O próprio estabelecimento do templo na terra nos dá a condição de percebermos tudo que está a sua volta, a Fu/sij. Através dela, a natureza do ente é demonstrada na interpretação. Logo, no desencobrimento da Fu/sij, compreendemos a terra como aquilo em que todos os entes se desencobrem em referência ao mundo.

O habitar do homem na terra, no sentido de ser-no-mundo, o coloca em relação com os entes que com ele participam do mundo. Antes da construção do templo e da pintura do quadro, os entes já se encontravam no mundo, pois o fato deles se mostrarem através da obra não os torna dependentes dela para existir. A obra é uma possibilidade de eles virem à luz enquanto tal, demonstrados em uma modalidade de pensamento elaborado pela Lichtung. Em outras palavras, na obra de arte, a verdade do ente se mostra na referência com o seu ser e não como o ser.

Através do templo grego abordamos o acontecimento da verdade a partir do comum- pertencimento de terra e mundo. O modo como isso se desencobre em nossa interpretação é o caminho mesmo desse acontecimento. Nesse sentido, seguimos a compreensão daquilo que estamos em busca a partir da própria busca. A esse caminho Heidegger, “em Ser e Tempo, pensou metodologicamente como ‘saída’, ‘acesso’ e ‘atravessamento’ (Ausgang, Zugang,

Durchgang) e, nos Problemas fundamentais, como redução, construção e destruição”

(HERRMANN, 2001, p. 214). Ao interpretarmos a descrição do templo, fazemos uma “experiência ontológica tematizante” que através de uma análise estrutural podemos pensar em uma “redução fenomenológica”, acompanhada de uma “destruição fenomenológica” e uma sucessiva “construção fenomenológica”. Portanto, o que Herrmann indica aqui, é que o modo de interpretar heideggeriano inicia o acesso à obra em uma desconstrução de sua

perspectiva objetiva, ao retirar-lhe de sua instrumentalidade. Isso, ao mesmo tempo em que busca outra construção para instalação do ser da obra de arte.

A instalação de um mundo na obra de arte é um acontecimento ontológico. Se pensada onticamente, a instalação ocorre como uma fixação em que é afirmado o caráter de objeto criado da obra, sua instalação acontece em uma exposição pública ou em uma coleção artística. Também não devemos compreender a instalação como ocorrendo sistematicamente a partir do surgimento de mundo. Ela representa um modo de instalar no sentido de instauração. A instalação como instauração nos permite acessar o ser da obra de arte enquanto algo que se mostra ainda em acontecimento. Aqui, o mundo é instalado quando insurge e é fixado em uma “vigorosa permanência”.

Quando tratamos da instalação de mundo através do templo, no seu desencobrimento na obra, não o estamos tomando como um ente na totalidade de seu desencobrimento. Nesse sentido, ele não é um ente que ocorre determinado como os outros entes pela instrumentalidade. O mundo na obra não tem sentido fixado na utilidade. Sua interpretação ocorre em contínuo acontecimento, e não atada a uma definição. O mundo ir além do ente não significa que ele seja superior aos demais, porém, que ele excede aos demais, sendo o seu possibilitador. Ele é sua condição de possibilidade ao constituir a compreensão daquilo que se desencobre como ente. Assim, ao projetarmos um mundo, nos colocamos em relação com ele. Isso porque ele participa da constituição da compreensão que temos dele.

O homem instaura e se relaciona com o mundo porque é um ser pensante. Sua constituição se dá como compreensão. Já os demais entes, distintos do homem, são privados de mundo enquanto contexto compreensivo. O mundo em que eles estão em relação é o próprio meio no qual estão inseridos objetivamente no modo do utilizável. Apesar disso, eles participam do mundo do homem através de sua interação como objeto para alguma coisa, compondo, assim, o ambiente que envolve mundo. Nesse sentido, os demais entes participam da rede de significados do mundo como constitutivos de sua manifestação. A questão não é se o ente intramundano tem ou não um mundo, mas o fato dele não manter relação com seu ser. Ele, diferentemente de nós, não pode projetar o seu ser porque sua essência ocorre em totalidade. Em contrapartida, nós somos projetos e nosso mundo ocorre a partir dessa constituição projetante.

No erigir do mundo a partir da compreensão de mundo há a acomodação de sua instauração. A instauração de mundo tem lugar que representa lugar nenhum. Em outras palavras, na introdução da tradução para a língua italiana do texto de Heidegger, L’arte e lo

O instaurar-se dos espaços que dá à escultura o caráter de um acontecimento da verdade do ser, não é a instituição infundada – decisiva – de dimensão, de medida, de ordem; é, ao invés, relação entre corpo e vazio, oscilação entre lugar e proximidade; não fundamento no sentido de contínuo fundamento do lugar contra a livre vastidão: “nem sempre é necessário que o verdadeiro tome corpo”; ele é, antes, presente, talvez, como fundo, e nisso, antes de mais nada, reside a sua privilegiada relação com a espacialidade (HEIDEGGER, 1998b, p. 12).

O texto de Heidegger se desenvolve a partir da pergunta: na escultura, “o corpo esculpido incorpora alguma coisa. O espaço?” (HEIDEGGER, 1998b, p. 17). Nele, a abordagem da espacialidade do mundo na obra de arte toma corpo sem se prender às categorias de espaço e tempo, mas seguem uma constituição em proximidade. No debate de Ser e Tempo, a espacialidade do mundo do utensílio intramundano ocorre entendida na perspectiva da vizinhança, distanciamento e acomodamento. A espacialidade do ente intramundano é dada através da sua serventia enquanto algo que está à mão, e com isso, algo próximo. Contudo, quanto mais próximo do ente mais distante do ser, mas é uma distância que mantém a proximidade da vizinhança. Ente e ser estão em proximidade e distanciamento porque estão imersos em uma mesma relação. Uma relação que os toma desencobertos e, ao mesmo tempo, encobertos pelo retraimento do ser.

A proximidade se mostra determinada por um direcionamento, em que

o posto de um utilizável se determina, a cada vez, a partir da sua conjuntura – aquele contentar-se, constitutivo pelo seu ser, preso a um outro utilizável pertencente a uma conexão de utensílios” (HERRMANN, 2001, p. 235).

Dito de outro modo, o lugar do utensílio é determinado a partir da proximidade do todo da conjuntura. Enquanto a espacialidade dos entes diversos do Dasein se dá a partir de seu ser como utilizável e em referência aos outros entes, a do Dasein é a partir de seu ser-no-mundo. Ele se dá como aquele que está no mundo, realizando uma determinada possibilidade, mas que pode, a qualquer momento, mudar em outra direção. Por isso, mesmo distanciado do ser por uma determinação, ainda assim ele está próximo dele.

Na espacialidade do Dasein, a proximidade ocorre direcionada com a realização de uma possibilidade, sem que essa se torne determinada como possibilidade única. O direcionamento que aproxima o acomoda no mundo de modo que ele assuma um projeto aberto a outros possíveis projetar. Distanciamento e direcionamento, ambos demonstram que o espacial e o espaço do Dasein são, respectivamente, abertura e instalação de espaços. No

Dasein como ser-em, ao trazer em distanciamento e em proximidade, há um direcionamento,

No insurgir de um mundo os entes intramundanos se colocam em proximidade e distanciamento espacial com ele. Diferentemente de em Ser e Tempo em que o tornar manifesto dos entes intramundanos acontece no espaço aberto do mundo, na Origem da obra

de arte mundo e entes acontecem mutuamente na abertura do próprio mundo, não ocorrendo a

partir da abertura do Dasein.

O conceder liberdade ao livre insurgir do mundo acontece aqui no contexto da obra de arte. O afirmar da instauração do mundo na obra é afirmar da instalação do espaço pertencente ao mundo juntamente com os entes. Também no texto sobre a escultura, a proximidade é o que constitui o espaço na arte. No texto, o espaço toma corpo e isso não significa que ele se estabeleça concretamente em um corpo físico, mas no sentido de “um por em obra incorporante dos lugares e com os quais um abrir da proximidade para um possível habitar dos homens, para um possível residir das coisas que os circundam e os resguardam” (HEIDEGGER, 1998b, p. 33).

O que mantém o espaço aberto na obra ocorrendo como um acontecimento ontológico é a afirmação da terra. Portanto, ao manter-se aberta, mesmo se dando a partir de seu próprio desencobrimento, a terra não se deixa reduzir à perspectiva de sua produção. No utensílio o processo de criação desaparece na serventia, a exemplo do porquê da produção de uma cadeira, que ao se tornar uma cadeira, deixa de ser algo criado para e passa a ser um objeto utilizável. Já na obra de arte, a perspectiva da criação não desaparece porque ela faz insurgir mundo. Na obra o templo grego, vem à luz o mundo daquele povo, e no quadro, o mundo da camponesa. Assim, a obra de arte mantém o processo de criação, manifestando-se a cada outro que nela insurge.

Quando a obra deixa de ser pensada como objeto artístico, ela permite o insurgir de um mundo e elabora a terra. Esse mundo que na obra se eleva, uma vez instaurado, se retira e faz a elaboração da terra. Isso porque deixa vir à tona, através da obra de arte, a simplicidade da arte. A proximidade com o pensamento utilitarista, e mesmo estético, sobre a arte nos coloca no risco de um esquecimento. A saber, o esquecimento de que pertence à terra o desencobrir-se em referência a um encobrimento. No templo, a objetivação da terra prende sua compreensão àquilo que serve de representação da cultura grega. A experiência finalizada no desencobrimento da terra fecha a verdade como abertura e deixa de pensar o mundo. Essa limitação, no fechar da terra, concede à arte uma interpretação a partir daquilo que ela representa como cópia de alguma coisa. Nesse sentido, ela é vista somente como objeto que serve à apreciação. No entanto, a obra de arte, diferentemente dos utensílios, nos permite

entrever tanto o pensamento em fechamento da terra, quanto o pensamento em abertura à relação de terra e mundo.

A obra de arte não leva a terra a sua consumação. Ela não deixa a terra se esvair na utilidade porque mantém o seu desencobrimento se dando também como contração para revelar o seu mundo. Contudo, a terra, não se mostra somente na obra de arte. Ela, fora da arte, constitui a compreensão daquilo que articula nosso modo de pensar o mundo e as coisas e com isso, também participa do ser-utensílio do utensílio, na confiança de sua compreensão a partir de sua serventia. A terra constitui a verdade de nosso modo de conhecimento. Ela participa desse conhecimento, e isso não significa a consolidação de uma modalidade do conhecer repousado na terra como sua base fundante. Sua participação não se dá como fundamento tradicionalmente concebido. Ela se manifesta constituindo e sendo constituída no desencobrimento de sua manifestação. Na obra de arte, seu modo de revelar-se assim, sem repouso no desencobrimento, é passível de percepção porque nela a terra se contrai para o surgimento de mundo.

O mundo que vem a partir da obra se mostra diferente e, por isso, ocorre a elaboração da terra. Na elaboração da terra, o mundo que insurge é instaurado, revelando à terra a compreensão de sua constituição.

Mundo e terra são essencialmente distintos e, no entanto, nunca estão separados. O mundo funda-se na terra e a terra irrompe pelo mundo. Só que a relação entre mundo e terra não se reduz de maneira alguma à unidade vazia dos opostos que não têm nada que ver (um com o outro). O mundo aspira, no seu assentar sobre a terra, a fazê-la sobressair. Sendo aquilo que se abre, não suporta nada de encerrado. Contudo, a terra inclina-se, como aquilo que põe a coberto, a implicar e a reter em si o mundo (HEIDEGGER, 1998a, p. 47)

A instauração de mundo e a elaboração da terra acontecem como uma relação de recíproca articulação, em um modo de comum pertença que mantém ambos em manifestação, sem que um se renda ao outro, atuando no ser da obra de arte junto à sua compreensão de utensílio. A possibilidade de interpretação permitida pela obra de arte não se deve a um direcionamento sistemático, porém, ao permitir a interpretação acessar uma ambiência mais originária, possibilitando a ultrapassagem de sua compreensão habitual, ela se revela como caminho para o questionamento que busca pensar o ser por ele mesmo. A obra de arte representa o acesso à ambiência mais originária da verdade porque nela está a possibilidade do mundo e da terra se mostrarem naquilo que são, em liberdade das mediações que compreendem seu desencobrimento em absoluto. Diante disso, seu desencobrimento ocorre demonstrando-se em um desencobrir que se dá em referência ao que se encobre.

No documento renataangelopernisa (páginas 115-122)

Documentos relacionados