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O modo de ocorrência da abertura do ser

No documento renataangelopernisa (páginas 41-44)

O questionamento do ser enquanto tal, sem permanecermos na consumação da modalidade entificadora, é uma tarefa dificultada pela própria generalidade (Allgemenheit) que o termo ser nos apresenta em linguagem corrente. O próprio caráter constitutivo do ser a todas as coisas é uma condicionante para a via entificadora. Se pensarmos na concordância das coisas com suas ideias e destas últimas com a ideia suprema, temos uma noção do que representa pensar o ser como comum a todas as coisas, do mesmo modo como ocorre com a ideia suprema que reflete todas as outras. Entretanto, pensar nessa equivalência implica em dar ao ser, uma vez mais, o tônus de ente. A generalidade do ser não deve seguir por essa via comum, pois deve ser pensada a partir do ambiente relacional constituído por sua abertura.

O pensamento acerca do ser como sendo universal e pertencente a tudo nos dirige à sua concepção como o fundador e a causa primeira de todas as coisas. Diante disso, compreendemos que tudo o que é, é devido à sua fundamentação no ser. O distanciamento do contexto idealista é o caminho que buscamos percorrer para, então, podermos interpretar a

questão da generalidade do ser. Uma generalidade ocorrida mediante a participação do ser no acontecimento das coisas, no sentido de ser em geral (überhaupt), e não mais como ser geral que coloca em destaque o sentido de universalidade à participação do ser.

Essa proposta de pensar o ser do Dasein como sendo o ser em geral, iniciada em Ser e

Tempo, foi revista por Heidegger, algum tempo depois, pelo fato de a interpretação seguir o

caminho da interrogação do ser somente a partir do Dasein do homem e não do ser em geral a todas as coisas. Mediante essa observação, o Dasein passa a ser pensado em referência ao seu

Da- como abertura para o ser acontecer, e isso não só para o ser do homem. Agora, o ser da

interpretação passa a configurar como o ser em todas as coisas.

A abertura do Dasein é a condição para o ser em geral acontecer. Ao basearmos sua compreensão como sendo o ser apenas do existente que é o homem, permanecemos em ambiência metafísica onde o ente, que é o homem, volta a ser o fundador de sentido para as coisas. Logo, a dimensão de abertura relacional entre ser e ente se perde no fechamento do domínio do homem, aproximando-nos do contexto do pensamento kantiano. Nele, o homem é a condição de possibilidade de todo o conhecimento. Ele é o sujeito da experiência e mediante isso, sua compreensão das coisas e do mundo é instalada.

O fato de Kant ter percebido o sujeito como condição de possibilidade e não como o ditador da verdade fez com que ele chegasse perto de perceber a abertura do ser. No entanto, ao conceber as categorias a priori como advindas de um sujeito transcendental, ele fechou a dimensão de abertura disponibilizada pela condição de possibilidade. Permaneceu, assim, na ambiência da relação sujeito/objeto, cristalizada no tempo da constância de um fundamento único para as categorias. Para Heidegger, o que impediu Kant de entrar nessa questão da compreensão ambientada pela abertura foi,

em primeiro lugar, a falta da questão do ser e, em íntima conexão com isso, a falta de uma ontologia explícita da pre-sença ou, em terminologia kantiana, a falta de uma analítica prévia das estruturas que integram a subjetividade do sujeito. Ao invés disso, Kant aceita dogmaticamente a posição de Descartes, apesar de todos os progressos essenciais que fez. Ademais, a análise do tempo, embora tenha reconduzido o fenômeno para o sujeito, permanece orientada pela concepção vulgar do tempo, herdada da tradição. É o que, em ultima instância, impede Kant de elaborar o fenômeno de “uma determinação transcendental do tempo”, em sua própria estrutura e função. Devido a essa dupla influência da tradição, a conexão decisiva entre o “tempo” e o “eu penso” permaneceu envolta na mais completa escuridão, não chegando sequer uma vez a ser problematizada (HEIDEGGER, 2002b, pp. 52-53).

Apesar disso, podemos ainda nos aproximar dele quanto à questão da condição de possibilidade. Ela ambienta o modo relacional do ser com o ente e também do sujeito transcendental. Porém, enquanto na analítica transcendental ela ocorre a partir de um

horizonte em que o sujeito, dotado das faculdades de espaço e tempo, é a condição de possibilidade do conhecimento do homem se fundar a partir de suas experiências sensíveis, na analítica do Dasein, a condição de possibilidade acontece em uma ambiência existencial. Ela representa a relação de mútua referência entre ser e ente. O Dasein é um ente que é possibilitado pelo ser e, ao mesmo tempo, o ser é condicionado ao ente. Eles se dão em uma referência em que um transcende a si mesmo em doação ao outro, o que não fomenta uma relação de fundamentação, mas de condição de possibilidade. A partir da reciprocidade, o conhecimento do homem se constitui orientado por um horizonte em abertura, ocorrendo em permanente constituição, e não cristalizado pelo tempo da apreensão da experiência.

O aberto que estrutura o ser do Dasein não deve ser por nós apreendido em uma perspectiva temporal que fixa a experiência no agora de sua experimentação. Diferentemente, devemos compreendê-la no enquanto dessa experimentação, no desenrolar de sua ocorrência, portanto, em constante abertura. Esse modo dinâmico de compreensão, podemos interpretar através da cura. Como vimos anteriormente, ela nos permite colher as estruturas que constituem o ser do Dasein unificadas, sem que isso signifique uma compreensão fechada. Essa modalidade de compreensão em abertura se constitui por um contexto de negatividade, que vai além da negação como o fechamento do aberto. Ela constitui o nada que ambienta o

Da- e que configura “a cura totalmente impregnada do nada. A cura – o ser da pre-sença –

enquanto pro-jeto lançado diz, por conseguinte: o ser-fundamento (nulo) de um nada” (HEIDEGGER, 2005, p. 73). O nada a que Heidegger se refere, aqui, é o nada originário, cuja negatividade não tem o sentido de proibição. Ele é o não-ente, o vazio pleno que se dá no Da- do Dasein. No fundo da abertura do Dasein está esse vazio preenchido pelo nada. A percepção do ser nessa abertura somente pode ser possibilitada por uma concepção de tempo mais originária, e não como faz o pensamento metafísico desde Aristóteles.

Mesmo que Aristóteles tenha pensado o ser nas categorias de ato e potência, ao tomá- las ocorrendo cronologicamente, ele fechou a abertura, cristalizando-a em uma das etapas do tempo. De acordo com Franco Volpi, a tomada de Aristóteles da “nota de definição do tempo como ‘número do movimento segundo o primeiro e o em seguida’ (aritimos kineseos kata to

proteron kai hysteron, Phys. IV, 11, 219b 12) representa, para Heidegger, a primeira e mais

rigorosa conceituação da experiência comum do tempo” (VOLPI, 2002, p. 86). É essa concepção de tempo, calculado em uma escala numeral crescente, que pode ter impedido o pensamento aristotélico de perceber o ser em abertura, sendo o fundamento para o modo de pensar tradicional. Mais originalmente interpretado, o ser acontece na e em abertura, e isso não significa dizer que ele é e está presente no Da-, mas que ele está sendo nessa ambiência.

Sua essenciação enquanto poder ser lhe permite a capacidade de manter-se aberto àquilo que está por vir, trazendo junto o ter sido. Isso ocorre fundamentado em uma região não determinada como um fundamento único, pois diz respeito a um espaço livre, aberto.

Apesar de Heidegger buscar um pensamento que ultrapasse a questão do fundamento como desenvolvida pela tradição, em Ser e Tempo, o fato de o Dasein ser tomado somente como sendo o ser do homem o coloca, uma vez mais, como fundamento único para os demais entes. Em vista disso, ainda vinculado a uma visão subjetivista.

Nos anos 30 em diante surgiu uma transformação fundamental em Heidegger, desde a assim chamada crise de 29, em que o filósofo passa a perceber que a análise de Ser e Tempo poderia ainda estar viciada a uma espécie de perspectiva transcendental- horizontal. Por uma perspectiva que ainda se aproximaria da ideia da busca de um fundamento inconcusso. É justamente esta questão da busca desse fundamento último, que seria o caráter da filosofia da subjetividade da modernidade, isto é, o que Heidegger gostaria de superar em Ser e Tempo, na medida em que o Dasein poderia ser o substituto da subjetividade do sujeito (STEIN, 1993, p. 27).

No entanto, dizer que ele substitui o sujeito é reafirmarmos a perspectiva do fundamento. A análise hermenêutica ontológica que perfaz nosso caminho no dizer do ser em geral através do

Dasein como o ser do homem nos indica a trajetória tradicional. Sua orientação, a partir do

ser do homem, é dificultada pela própria linguagem que nos constitui e que pode nos aprisionar no solo subjetivista. Apesar disso, o caminho não é outro senão esse mesmo que confirma o ente, esquecendo-se de sua referência ao ser. O esquecimento dessa referência ocorrendo em abertura afirma o ente, apresentando-o como sendo o ser. A perspectiva do esquecimento é o que move nosso questionamento. Ele nos faz voltar em busca do que ficou esquecido na origem. Assim, ao retornarmos ao pensamento originário, nos colocamos no exercício de relembrar o que ficou impensado, por isso esquecido. A saber, a abertura que constitui o ser em geral.

No documento renataangelopernisa (páginas 41-44)

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