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O sentido tradicional da verdade: o caminho à origem

No documento renataangelopernisa (páginas 55-58)

1.3 A verdade como a)lh/qeia a)lh/qeia a)lh/qeia a)lh/qeia

1.3.1 O sentido tradicional da verdade: o caminho à origem

Apesar de a a)lh/qeia permitir sua compreensão a partir da dúplice articulação entre desvelamento e velamento, o pensamento que dela se desenvolveu priorizou o desvelamento, formulando, a partir disso, o conceito tradicional de verdade como concordância e adequação, uma perspectiva que nos conduz, agora, à interpretação do ló/goj aristotélico e ao horizonte do desvelamento do enunciado. Diante disso, e de acordo com o pensamento de Heidegger, “Aristóteles, o pai da lógica, não só indicou o juízo como o lugar originário da verdade, como também colocou em voga a definição da verdade como ‘concordância’” (HEIDEGGER, 2002b, p. 282). Aí, o juízo não só funda a verdade como concordância, como também pode nos acenar à origem de sua definição. Apesar dos caminhos, a verdade da tradição seguiu somente a via da afirmação do anúncio do juízo. Agindo assim, deixou-se de indagar pela relação de acordo que faz do juízo um ajuizamento verdadeiro. Retomarmos a indagação sobre a referência do juízo implica abrirmos os caminhos que indicam a verdade compreendida de modo mais originário

A verdade, tradicionalmente interpretada, ocorre baseada em uma relação de concordância entre o intelecto e o objeto, em uma relação de conformidade que adéqua um ao outro. No entanto, o contexto que antecede essa relação de concordância não é levado em consideração. Ela deixa de pensar aquilo que a antecede, que está no fundamento do juízo

anunciado. Retrocedendo ao modo de ocorrência do ajuizamento, nos deparamos com o movimento de descoberta daquilo que está sendo ajuizado. Assim, para que o intelecto possa enunciar um juízo, ele tem que, antes, descobrir o ente que irá ser enunciado. Em Ser e

Tempo, Heidegger interpreta a questão da descoberta (Entdeckheit), tomando o Dasein como

o ser-descobridor da verdade porque ele, em sua existência ontológica, habita em abertura à sua verdade.

A descoberta, interpretada como fundamento ontológico, desencobre a verdade mais originária como desvelamento e velamento e orienta a interpretação do Dasein como seu ser- descobridor (entdckend-sein). Todavia, isso não lhe acentua o sentido de criador da verdade. Afinal, se assim interpretarmos a verdade, como criação do Dasein pelo seu descobrimento, permanecemos no horizonte da subjetividade, reafirmando a relação sujeito-objeto. Longe disso, aqui, ele somente pode tecer predicativos a respeito do ente por ele descoberto, porque antes de ele ser o ser-descobridor desse ente, a descoberta (Entdeckheit) já aconteceu.

A descoberta representa aquilo que abre o espaço relacional entre o Dasein e o ente. Nesse sentido, a compreensão da verdade se mostra em abertura (erschlossenheit). Ela permite ao ser-descobridor (entdckend-sein) do Dasein desvelar a verdade do ser em geral. No aberto em que desvelamos a verdade, descobrimos que

ser-verdadeiro enquanto ser-descobridor [entdckend-sein] é um modo de ser da pre- sença. O que possibilita esse descobrir em si mesmo deve ser necessariamente considerado ‘verdadeiro’, num sentido ainda mais originário. Os fundamentos ontológicos-existenciais do próprio descobrir é que mostram o fenômeno mais originário da verdade (HEIDEGGER, 2002b, p. 288).

A compreensão que temos do Dasein, através da unicidade de seus existenciais na cura e não reunido em um só ajuizamento nos revela que somos seres lançados em um horizonte que não é fruto de uma escolha própria. Ao mesmo tempo, ela nos revela que apesar de estabelecida tal situação, podemos ainda apostar na propriedade de nossa existência. Logo, a cura nos abre à possibilidade de nos compreendermos propriamente, disponibilizados à descoberta de nossa verdade como poder-ser. No modo de ser da verdade como poder-ser, a dinâmica de continuidade de realização de projetos permite à verdade se essenciar como abertura.

Buscarmos por um modo mais originário de interpretarmos a verdade não implica em abandonarmos a sua compreensão como concordância e menos ainda, que uma seja mais verdadeira que a outra. Na verdade, elas se copertencem, pois a verdade como concordância deriva da verdade no sentido da a)lh/qeia, sendo, por isso, o caminho para o mais originário. A verdade derivada é o desvelamento da essência da verdade que traz nesse desvelado o

ocultamento de sua essenciação original; consequentemente, o fechamento de sua abertura. É devido a esse fechamento desvelado, na perspectiva do desvelamento, que podemos chegar à abertura. Esse modo de se dar a verdade como desvelamento e velamento se mostra antes, no pensamento aristotélico, como ressalta Heidegger:

Aristóteles jamais defendeu a tese de que o “lugar” originário da verdade fosse o juízo. Ele diz, na verdade, que o ló/goj é o modo de ser da pre-sença, que pode ser descobridor [entdeckend] ou encobridor [verdeckend]. Essa dupla possibilidade é o que há de surpreendente no ser-verdadeiro do ló/goj, pois este é o comportamento que também pode encobrir [verdeckend]. E na medida em que nunca afirmou tal tese, Aristóteles não teria condições de “estender” o conceito de verdade do ló/goj para o puro noei=n. A “verdade” da ai)/sqhsij e da visão das “ideias” é o desencobrimento [entdecken] originário. E apenas porque a no/hsij primariamente descobre [entdeckt] é também o ló/goj enquanto dianoei=n pode ter a função de descoberta [Entdeckungsfunktion] (HEIDEGGER, 2002b, p. 295).

Sua compreensão do ló/goj como um tipo de discurso desencobridor faz ver aquilo do qual se diz alguma coisa, não anula aquilo que fica subjacente ao dito, uma vez que permanece a dimensão da recolha que guarda aquilo que não se desvela totalmente. No entanto, o fato de comunicar, e por isso fazer ver aquilo que é dito, o aprisionou em um modo de compreensão priorizado na visão do anúncio. O anúncio do juízo é, então, interpretado como o lugar da verdade.

A questão que devemos observar não é o fato de Aristóteles ter indicado o juízo como o lugar da verdade, mas o fato dessa indicação somente ter sido interpretada no campo do desvelamento da verdade, o que levou o pensamento tradicional a assimilar esse modo de compreensão como sendo o verdadeiro. Tendo isso em conta, “o juízo se torna o lugar da verdade” no contexto tradicional significa dizer que no juízo ocorre a totalidade do desvelamento da verdade. Isso acabou encobrindo o velamento da verdade mais originária que ocorre na concordância do juízo.

Na interpretação de Heidegger do ló/goj aristotélico ocorre a concessão de um sentido ontológico à linguagem, porque ele destaca seu jogo de desvelamento e velamento. Com isso, o ló/goj apofântico não só permite a descoberta da verdade através de sua anunciação, de seu descobrimento, como também preserva a sua constituição encobridora abrigada em recolhimento. Se pretendemos dizer que ela habita no ajuizamento do discurso, isso deve acontecer em um modo de compreensão que mantenha a verdade em um sentido aberto ao desvelamento e velamento, e não sendo totalizada pelo descobrimento da fala do juízo do ente.

A linguagem do ló/goj apofântico funciona como uma ponte que une o Dasein à compreensão de sua verdade e, por isso, ela não pode ser “a verdade” declarada no discurso. Ela é apenas um modo de dizê-la. A linguagem é um modo de o Dasein se articular no mundo. Através de sua fala, ele descobre mundo em um modo de descobrimento que se dá em abertura a outros possíveis descobrimentos. Sua relação com o mundo por meio da linguagem é ontológica e anterior a qualquer predicação, pois antes mesmo de qualquer ajuizamento já se deu a linguagem (Sprache). Ela participa como constitutiva do Dasein.

Quando o sentido ontológico da linguagem é absorvido por sua derivação como um anúncio declarativo, a verdade como concordância se estabelece, partindo de uma perspectiva que compreende o discurso apofântico mediado somente pela linguagem como fala. Atribuir tal tarefa a Aristóteles pode parecer, “no que respeita seu conteúdo, um desconhecimento da estrutura da verdade” (HEIDEGGER, 2002b, p. 295). Afinal, para ele, o discurso apofântico tinha o privilégio de poder fazer ver, através da linguagem, a descoberta (Entdeckheit) de mundo em um modo de descobrimento capaz de manifestar sua verdade mais originária. Este modo descobridor do discurso possibilita, então, a aproximação do ló/goj apofântico à compreensão da a)lh/qeia como desvelamento e velamento. O pensamento tradicional, por priorizar a característica desse discurso, de fazer ver aquilo que se mostra, não aprofunda o que torna possível o acontecer desse descobrimento.

Se pretendermos pensar o juízo como lugar da verdade, não devemos nos esquecer de que subjacente a ele está a verdade mais originária como descoberta (Entdeckheit). Assim, se Aristóteles foi capaz de conceber uma significação para a verdade, mesmo que essa tenha fincado raízes em uma perspectiva absoluta, ainda assim, ele se manteve à espreita da origem, pois tudo que é derivado o é em detrimento de uma fonte primordial.

No documento renataangelopernisa (páginas 55-58)

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