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A ambiência da a)lh/qeia a)lh/qeia a)lh/qeia a)lh/qeia como Lichtung

No documento renataangelopernisa (páginas 85-88)

CAPÍTULO 2: A VERDADE DO SER ENTREVISTA NA OBRA DE ARTE

2.1 O entrelace do pensamento sobre a verdade do ser com a questão da obra de arte

2.1.1 A ambiência da a)lh/qeia a)lh/qeia a)lh/qeia a)lh/qeia como Lichtung

Refletir sobre a arte e sua origem nos leva em direção a uma ultrapassagem, indo além de sua configuração como objeto artístico. Isso significa rompermos com uma sequência de pensamentos que toma a obra, interpretando-a objetivamente como um utensílio que serve para representar uma determinada realidade. A proposta de seguirmos para além dessa interpretação estabelecida da obra de arte ocorre orientada pela própria passagem por sua objetividade. Em outras palavras, através do modo como a arte é representada, seguimos o caminho ao encontro daquilo que na obra está em obra: o acontecer da verdade do ser de modo mais originário.

Na interpretação da obra de arte, a proximidade com a verdade no sentido da a)lh/qeia se revela um tanto mais próxima de sua percepção como abertura. Em tal contexto, ela é indicada na perspectiva de uma Lichtung5 como clareira. Na Lichtung, o horizonte em abertura se manifesta de modo um tanto mais vivaz, pois na compreensão da clareira nos avizinhamos de um sentido mais originário. Sua interpretação segue, então, desenraizando-se da perspectiva essencializante, porque sua abertura se dá a partir do nada. O nada constitui seu aberto e isso não substancializa seu dar-se essencial. É nesse sentido que a interrogação deixa de pensar a verdade através do questionamento por uma essência tradicional. Aí, perguntarmos pela essência, mesmo no contexto de compreensão em abertura, pode restringir- nos o pensamento que ocorre aberto, conduzindo-nos à retomada de seu fechamento por uma estrutura essencializada. É nessa via que acontece a ultrapassagem: transpomos a essência

5O termo concede à verdade o sentido de um clarear que ocorre como o lampejo de um relâmpago. Na execução

do relâmpago ocorre uma fenda no céu, brotada a partir dele mesmo. É graças a isso que ele se mostra em um instante, abrindo-se como clareira e, imediatamente, volta a encobrir-se na vastidão do céu. Gadamer apresenta a seguinte explicação do temo: “Lichtung significa clareira na qual alguém entra quando procede incessantemente na escuridão do bosque e de improviso as árvores rareiam e deixam penetrar a luz do sol – até o momento em que a ultrapassa e a escuridão se fecha novamente em torno dele.” (GADAMER, H. G. I sentieri di Heidegger. Genova: Marietti, 1988, p. 20).

substancializada em recolha do dar-se essencial do pensamento acerca da verdade operada na obra da arte.

A compreensão não entificada da clareira não a retira de uma perspectiva constitutiva para a sua ocorrência. Porém, sua constituição não é decorrente de um processo fundamentador. A manifestação da verdade na obra se dá imerso no nada que ressoa em um modo de fundamentar em abertura de fundamento. Assim, o que na obra nos é aclarado não é consequência de nenhuma causa primeira.

A Lichtung, interpretada no texto sobre a obra de arte, revela uma compreensão um tanto diferenciada da compreensão de verdade interpretada em Ser e Tempo. Lá, ela ocorre como descoberta na abertura do Dasein, enquanto que no contexto da Origem da Obra de arte ela se mostra em um modo de acontecimento que se dá como e na clareira aberta no laborar da obra. Nessa outra interpretação estamos dispostos à possibilidade de compreendermos sua abertura acontecendo em um horizonte de compreensão, em que seu dizer não se dá pelo o que ela é, mas no como ela se manifesta na abertura da obra.

A abertura clareada pela Lichtung acontece em referência ao que nela se mantém escondido e não mais, como em Ser e Tempo, demarcado pela abertura do Dasein. Nem mesmo a obra de arte representa a delimitação de sua ocorrência. Aqui, Dasein, obra e abertura acontecem juntos, sem que um seja a medida e o fundamento para o outro, sendo que a obra de arte é o lugar onde nós podemos entrever o acontecimento dessa relação em referência.

O desencobrimento da verdade na obra acontece como a abertura de uma região que pode ser compreendida tanto na obra de arte, quanto em outro ente. O que marca a diferença entre eles é o modo como o espaço do desencobrimento pode ser demonstrado através do rompimento com a entificação que o representa. Tal região, que configura o espaço para a apresentação do ente, não deve ser mais dita com o uso do verbo ser, indicada pelo “é”. No “é isso”, “é aquilo”, o ente se desencobre. Entretanto, na obra de arte, o “é” dessa presentificação pode ser traspassado e dito como sendo.

A extensão do pensamento na obra de arte alcança, no desvio do caminho essencializante, o encontro com a abertura da Lichtung, que ao se dar, abre espaço para o ser se mostrar. Um espaço que não é presentificado nem demarcado pelo “é” que limita uma região. A obra de arte apresenta e acolhe esse espaço. Nela, “o fazer-espaço é livre doação de lugar” (HEIDEGGER, 1998b, p. 25), porque seu ser pode ser pensado para além de sua objetualidade e instrumentalidade. É nesse sentido que a arte nos dispõe o espaço para podermos perceber o desdobramento da interpretação da verdade que também nos constitui.

A obra abre espaço, ao mesmo tempo em que mostra esse espaço; ela mostra a si mesma enquanto operante da verdade em abertura. Ao abrir espaço, ela resguarda o lugar da verdade sem que isso signifique uma localidade determinada, pois a

verdade quer dizer o acontecimento de um desvelamento: clareira, Lichtung. Mas essa clareira do desvelamento do ente não é cena uniformemente aberta: o desvelamento só é em sua relação preservada com o velamento (DUBOIS, 2004, pp. 172-73).

Logo, o espaço que constitui a Lichtung se mantém aberto na articulação entre o que vem desencoberto e o que permanece em encobrimento. Seu acontecimento se dá, portanto, norteado por essa ambiência vazia, indicada pelo desencobrimento do nada que a envolve, sem que seu desencobrimento se efetive em um nada entificado. Na obra de arte, o que visualizamos não é apenas um objeto artístico, mas também o lugar onde esse objeto pode se mostrar. E ele, ao se apresentar, não anula ou preenche o lugar que é livre, que reside na obra, e que não o fundamenta. Sua ambientação se dá no jogo entre o apresentar da obra e se mostrar como vazio. Por isso, sua constituição se dá como abismo que fundamenta a abertura do ser no nada como ausência de tudo o que é.

A compreensão da verdade como a)lh/qeia nos aponta para a possibilidade de um desdobramento da compreensão ocorrendo juntamente com a tradição, porque ela retoma a origem através da passagem pelo que nos é habitual. Na aproximação da origem, sua compreensão apontada como clareira nos coloca também próximos de sua passagem na obra de arte. A ambiência da Lichtung clareia a abertura do ser, interpretando-o a partir da reciprocidade entre seu desencobrimento (Unverborgenheit) e encobrimento (Verborgenheit). Em vista disso, a modalidade de pensamento que buscamos desenvolver acontece também no contexto dessa referência recíproca.

O homem é um ente que existe como os demais entes; no entanto, sua existência ocorre de modo diferente. Ele pode pensar. Sua capacidade de pensar não é uma propriedade que ele ativa quando se dispõe a pensar. Ela representa a sua constituição enquanto homem. A

Lichtung acolhe o acontecer do homem, bem como dos entes não humanos, em conjuntura

com aquilo em que ela também se constitui. É assim que ela traz ao aberto o pensamento da diferença ontológica quando ilumina, deixando-se clarear nessa iluminação, a relação de reciprocidade que ambienta o horizonte da diferença. Esse desdobramento do pensamento, apesar de não ter sido desenvolvido pelo pensamento tradicional, nos é constitutivo, restando esquecido.

A reflexão acerca da obra de arte como a elaboração da verdade do ser em um estado mais originário requer uma mudança no modo como estamos acostumados a conceber nosso

pensar cotidiano. Ela representa, então, nossa passagem a um contexto outro que se esquiva da tradição, porque não mais se fixa ao tradicional. O fato de não se dar vinculada à tradição não implica seu abandono. O caminho advém do que é estabelecido pela cotidianidade, sem que isso represente uma aderência total aos seus pressupostos. É uma via que se desenvolve aberta ao diferente que vem ao encontro da abertura de compreensão. É um modo de questionar que se desenvolve circularmente ao habitual, na espera do encontro com o diferente que surge quando ultrapassamos a barreira daquilo que é estabelecido comumente como nossa essência. A vivência de um pensar a partir da diferença ontológica pode ser vislumbrada na obra de arte, uma vez que esta é o lugar onde a Lichtung se manifesta.

No documento renataangelopernisa (páginas 85-88)

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