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CAPÍTULO I – Cinema, mercado e Estado no Brasil

1.1 Cinema e Estado no Brasil: uma breve retrospectiva histórica

1.1.7. A criação da Ancine

1.1.7.2. A Ancinav: uma tentativa de regulamentação

Havia um projeto de transformar a Ancine (Agência Nacional do Cinema) em Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual), visto que a TV havia ficado fora da medida provisória que criara a Agência. Neste item apresentaremos alguns aspectos dessa proposta, sem entrar em sua integralidade, visto que se trata de um projeto amplo.

O início do governo Lula, cercado de otimismo e perspectiva de mudanças políticas, associados à popularidade do novo presidente, se mostrava um momento adequado para apresentar uma proposta de regulamentação do setor, mesmo havendo o reconhecimento de que ela poderia causar forte polêmica. Nesse anteprojeto a Ancine seria transformada em Ancinav e a proposta era incluir a televisão em uma política conjunta com o cinema, reivindicação antiga do setor. Havia, no projeto, a intenção de regulamentar o audiovisual como um todo, e não especificamente o cinema.

Fazia parte fiscalizar e fomentar, estimular o setor audiovisual de forma mais abrangente, ampliando o apoio para os setores da exibição e distribuição. O anteprojeto foi elaborado com a participação ativa do ministro da Cultura, Gilberto Gil, do secretário do Audiovisual, Orlando Senna, do secretário-executivo, Juca Ferreira, do coordenador da assessoria, Sérgio Sá Leitão, assim como técnicos e membros do ministério.

O projeto foi discutido durante 14 meses, tendo sido objeto de uma consulta pública por dois meses e enviado ao Conselho Superior do Audiovisual numa primeira versão

em 2004. Após receber algumas críticas, foi alterado e depois novamente enviado ao CSA, passando por mais algumas instâncias de análise antes de ser enviado ao Congresso Nacional. Resumidamente, pode-se dizer que o anteprojeto da Ancinav tinha como objetivo fomentar e regular toda a cadeia audiovisual e não apenas o cinema, englobando a televisão, publicidade e serviços de telecomunicação.

Havia também no anteprojeto a iniciativa de criação de um Sistema de Informação e Monitoramento das Atividades do Audiovisual, que envolveria, por exemplo, a exigência de que os profissionais do setor efetuassem um registro na Agência a fim de realizarem suas atividades. Com essas e outras informações a Ancinav teria condições, por exemplo, de gerar futuras políticas mais direcionadas.

Segundo Fernandes (2014) outro aspecto previsto pela Ancinav no âmbito da televisão e que gerou polêmica, tendo de ser mudado ainda no anteprojeto, foi a proposta que exigia que os canais de televisão exibissem obras cinematográficas e videofonográficas nacionais de produção independente e regional. Dessa forma, a mudança resultou no seguinte artigo:

Art. 90 - As prestadoras de serviços de radiodifusão de sons e imagens e outras prestadoras de serviços de telecomunicações exploradoras de atividades audiovisuais que exibirem em sua programação regular uma percentagem anual mínima, não inferior a 20%, de obras cinematográficas e videofonográficas brasileiras de produção independente e de produção regional, de obras cinematográficas brasileiras de longa metragem de produção independente, farão jus a uma redução progressiva na Condecine prevista pelo inciso I do artigo 60 para suas produções próprias exibidas no próprio veículo, no ano subsequente, conforme regulamento. (FERNANDES, 2014, pp. 82-83).

Segundo dados de 2009 do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual42, o tempo destinado ao longa-metragem brasileiro na televisão aberta brasileira representa 0,7% da grade horária dos canais; já o reservado ao longa estrangeiro é de 5%; e os demais programas ocupam mais de 90%. Isso denota a quase inexistência de filmes nacionais na televisão aberta no Brasil.

A proposta da Ancinav foi veementemente criticada pela mídia em geral, especialmente pela Rede Globo, que se empenhou em desacreditá-la, com argumentos denunciando o autoritarismo da proposta, ataque à liberdade de expressão, e que o Estado

42 O Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA) é um espaço criado em 2008 pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) para publicar de maneira periódica e sistemática informações e análises técnicas sobre a atividade audiovisual no país.

buscava o controle sobre o conteúdo exibido à população. Qualquer tentativa de delimitar alguns campos ou obrigações na atuação da mídia brasileira tem sofrido sistemático combate e denunciado como censura de Estado. Mesmo no caso da TV, que é uma concessão pública, qualquer regulamentação proposta é imediatamente rechaçada como ataque ao direito de expressão e à liberdade de imprensa.

A televisão no Brasil é contrária a qualquer tentativa de regulação do setor, dificultando o acesso da produção independente, diversificada e regional. Quando projetos de lei tentam garantir direitos da produção independente e regional, os defensores da manutenção da não regulamentação logo associam essas reivindicações a palavras vinculadas à memória traumática do país, como ‘censura’ e ‘cerceamento à liberdade de expressão’ e, assim, proclamam a autorregulamentação do mercado. (HOLANDA, 2013 pp. 69-70).

Fernandes (2014) resgata uma matéria de 2004, divulgada na Revista Veja, cujo título permite sentir o tom de crítica que realizavam à Ancinav naquele momento: “Um desastre de lei: O projeto que cria a Ancinav é tão autoritário que não adianta tentar reformá- lo: o melhor mesmo é jogá-lo fora”. Em parte da matéria é dito: “O caso, então, não é discutir quais artigos do projeto descartar, e sim decidir se o correto seria picá-lo todo em pedacinhos ou guardá-lo no museu do entulho stalinista” (FERNANDES, 2014, pp. 101-102). Exemplos de publicações são inúmeros, colunistas de semanários, jornais, âncoras de TV falavam todos no mesmo tom, com os mesmos argumentos.

Elucidativa também é a coluna de Arnaldo Jabor no jornal O Globo, que diz:

Esse surto de leninismo que incendiou a alma simples dos petistas ultimamente, esse ataque recente à “democracia burguesa” que o governo de Lula lançou contra a sociedade, a fome dos “soviéticos” de Gil, embuçados e severos contra o cinema e a TV. (apud FERNANDES, 2014. p. 106).

Como faria a Globo caso a Ancinav tivesse sido aprovada? Ela, que realiza dentro de sua própria estrutura toda sua programação e está acostumada a somente exibir alguns poucos filmes nacionais que ela realizou via Globo Filmes com sua programação verticalizada? O crime cometido pela Ancinav foi ousar exigir que existisse uma cota para filmes nacionais na televisão aberta nacional, algo já instituído em países como a França. Inclusive, pela proposta da Ancinav, os canais poderiam escolher a programação que estivesse mais de acordo com sua grade de programação. A lei só proporia a cota, não haveria qualquer interferência sobre criação e suas opções conceituais ou direcionamento político dos

conteúdos. Buscava-se com a Ancinav um setor igualitário onde o monopólio não fosse uma regra.

Segundo o diretor e produtor José Joffily, nos países europeus o conteúdo exibido na televisão é comprado das produtoras de audiovisual, ou seja, a TV não produz sua programação, tornando-se parceira – a televisão é parceira de 90% dos filmes produzidos na Europa. Para ele, “[…] a questão aqui é mais grave porque, ao contrário dos outros países do mundo, a televisão não sofre qualquer legislação, e a produção não é terceirizada para produtores independentes. Na realidade, no Brasil, a própria emissora é, mais do que tudo, uma grande produtora” (apud BORGES, 2007, p. 82).

Para Fernandes (2014, p. 115) a discussão em torno da Ancinav também criou divisões em parte do setor. Um exemplo é o caso do CBC, que fez uma declaração pública de apoio ao anteprojeto da Ancinav – o documento contou com a assinatura de 344 pessoas e de 55 instituições e entidades – o que provocou a saída de algumas associações ligadas ao CBC, como por exemplo o Sindicato da Indústria Cinematográfica e Audiovisual do Rio de Janeiro (SICAV). Do outro lado, havia um conjunto de 17 associações, reunidas no Fórum do Cinema e Audiovisual (FAC), como a ABRACINE (Associação Brasileira de Cinemas) e ABRADI (Associação Brasileira de Distribuidores Independentes de Audiovisual) que eram contrários a aprovação.

Outro ponto de conflito na Ancinav era a taxação sobre a exploração de obras cinematográficas nas salas de exibição que aumentava de acordo com o número de cópias – ou seja, filmes com grande potencial comercial que estreavam simultaneamente em várias salas seriam taxados em maior porcentagem.

O conjunto de ações contrárias, unido à influência que o setor televisivo tem no Congresso Nacional, resultou no engavetamento do projeto em 2006. Com isso, postergou-se a tentativa de regular a televisão no país, o que poderia ter sido um importante aliado na construção de um mercado nacional do audiovisual, algo que, como no caso da França, possibilita que o cinema nacional seja viável economicamente. Para além das cotas e outros elementos que não detalhamos aqui sobre a Ancinav, esta propunha ampliar as condições de uma produção audiovisual, assim como a sua proteção, através de um equilíbrio de forças mais justo. A Ancinav não encontrou a força política para ser aprovada, principalmente pelo fato de o Brasil ser um país que traz historicamente a radiodifusão e, por extensão, a teledifusão como poderosos aliados das elites que governam o país, o que lhes concede, como

corolário, enormes poderes econômicos, políticos, e grande influência no tecido social. Famílias vinculadas à política detêm, em muitas regiões, o controle dos meios de comunicação.43 Além dessa dimensão política, o setor é dos que apresenta maior nível de concentração abrangendo não apenas rádio, TV’s, jornais, revistas, mas outras atividades econômicas ligadas ou não ao audiovisual.