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CAPÍTULO III – A relação entre o Estado e as políticas para o cinema e o audiovisual na

3.1 Um breve histórico

3.1.5 A exceção cultural e a resistência no século XXI

Na eleição presidencial de 1995, Jacques Chirac, ex-primeiro-ministro de Mitterrand e de Giscard d’Estaing, é eleito. Sua carreira remonta ainda ao governo de Georges Pompidou, de cuja gestão foi secretário dos Assuntos Sociais e de Estado. Ainda no segundo ano de seu governo, sua então ministra da cultura e da comunicação Catherine Trautmann sofre muitas críticas do setor cultural em função dos cortes orçamentários que a pasta sofreu. Em 1998, ela tenta passar um projeto de lei de reforma do audiovisual, mas sofre uma derrota. Em 2002 Jacques Chirac é reeleito. Em seus governos, surgirá um importante debate sobre a cultura, a globalização e as trocas comerciais entre os países.

Se voltarmos às origens, após a Segunda Guerra Mundial, mais de trinta países assinaram um Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), cujo objetivo era de relançar um mercado internacional que havia sido prejudicado com a guerra.

123 ROZAT, Pascal. “Histoire de la télévision. Une exception française?” 2010. Disponível em: <https://www.inaglobal.fr/television/article/histoire-de-la-television-une-exception-francaise>. Acesso em: mai/2018.

As teorias liberais do livre comércio ganham a adesão do “mundo livre”, o recuo protecionista das grandes nações após a crise dos anos 1930 tendo sido analisado como um erro econômico que teria favorecido a guerra. A fim de conseguir este resultado, os Estados se engajam em primeiro lugar a renunciar progressivamente às medidas que limitam as importações de produtos estrangeiros […]. Em segundo lugar, eles anunciam a decisão de pôr fim o mais rápido possível às práticas que distorcem a concorrência entre as empresas nacionais e estrangeiras (como as subvenções, empréstimos a taxa reduzida, etc).(GAUQUIÉ, 2012, pp. 57-58).

Essas nações realizam uma série de ciclos de negociação sob a égide do GATT, resultando em uma maior liberalização no comércio internacional de mercadorias. O último ciclo de negociações é a chamada Rodada Uruguai, que ocorreu de 1986 a 1994. Segundo Gauquié (2012), o objetivo desta rodada era de liberalizar os setores que os Estados Nações ainda protegiam, como os bens culturais. É a partir daí que se dá o intenso debate iniciado em 1993 relativo às produções cinematográficas e audiovisuais, principalmente entre os Estados Unidos e a França.

Durante esses anos de negociação é quando a França, apoiada por países europeus e Canadá, se recusa a aceitar as condições propostas pelo grupo liderado pelos Estados Unidos nas negociações sobre a liberalização do comércio de serviços. A defesa apresentada era que as obras audiovisuais não poderiam ser tratadas como uma mercadoria como as demais visto que são dotadas de sentido e identidade, e, portanto, não devem seguir as mesmas regras aplicadas ao comércio internacional. Defendia-se, assim, que o mercado cultural deveria representar uma exceção às normas comerciais; é a chamada exceção cultural. Gauquié (2012, p. 60) cita a obra Exception Culturelle et mondialisation, de Bernard Gournay, na qual o autor precisa que o voluntarismo político francês se inscreve dentro da crença de um valor da criação cinematográfica, onde se busca um pluralismo cultural a fim de combater os efeitos nefastos da comercialização da cultura. A negociação dessa questão cultural não foi pacífica. Em meio a essa polêmica, em 1993, os membros da delegação americana declararam:

Os governos têm o direito de subvencionar a grande música, a ópera, o teatro e a dança uma vez que são artes; ademais, é isso que faz o governo americano. Mas o cinema e a televisão não são de nenhuma forma arte: se trata de simples divertimento (entertainment), como os jogos de carta ou os passeios de bicicleta. (GAUQUIÉ, 2012, p. 61).

Tão exaltados foram os debates durante as discussões do GATT que o presidente da Motion Picture Association of America (MPAA), Jack Valenti, chegou a dizer aos

franceses: “Vocês fazem queijos maravilhosos. Continuem. E deixem-nos, sozinhos, fazer filmes”. No mesmo dia, ao ser questionado por um dos membros da delegação francesa que disse “Vocês já produzem 95% dos filmes do mundo ocidental, que vocês querem mais?”, respondeu “100%, é claro” (GAUQUIÉ, 2012, p. 61).

Os americanos tinham planos muito concretos para sua indústria e acabar com as legislações protecionistas era fundamental. Sua busca pelos mercados internacionais se dá pelo fato que desde os anos 1990 os seus produtos culturais representarem as principais exportações, ultrapassando inclusive setores com o automobilístico, e eles não poderiam deixar esse mercado ser barrado por leis protecionistas como as francesas. Por isso, a proposta deles nos acordos, no que diz respeito à cultura, era de, segundo Gauquié (2012, p. 61): ter livre acesso aos mercados (fim das cotas); terminar com a diferenciação de tratamento de produtos nacionais e estrangeiros (ou o fim das subvenções, ou o acesso de todos os países a elas); e por fim, conseguir que produtos importados recebessem o mesmo tratamento que os nacionais.

O resultado foi positivo aos defensores “[…] uma vez que o princípio da defesa da soberania dos Estados em implementar políticas nacionais de apoio à produção de obras audiovisuais foi homologado durante o desfecho da Rodada do Uruguai, em 1994.” (PITOMBO, 2009, p. 39). Dessa forma, a França e seus aliados nessa batalha conseguiram aprovar a cláusula da exceção cultural nos termos de alguns acordos comerciais sobre o audiovisual. Todavia, esse resultado não encerrou a polêmica nem a ação do bloco liderado pelos Estados Unidos. “[…] O fato de que a exceção cultural não tem um estatuto jurídico autoriza seu questionamento em todas as negociações posteriores à vitória na Rodada do Uruguai.” (GAUQUIÉ, 2012, p. 64).

A vitória é percebida não apenas como um ganho econômico protecionista, mas como uma corroboração das políticas governamentais francesas de apoio ao cinema e ao audiovisual. Para Laurent Créton, a conquista da exceção cultural permitiu

“[…] evitar uma enxurrada de desregulamentações, que teriam afetado duramente as indústrias cinematográficas e audiovisuais europeias. O princípio da exceção cultural adotado repousa sobre a convicção de que é importante não misturar tudo em um vasto escambo internacional, o qual englobaria indiferentemente agricultura, indústria manufatureira, serviços e cultura. O sistema de auxílio, de apoio e de regulamentação que existe na França, e que desempenha um papel determinante, foi preservado.” (2009, p. 87).

Toda essa negociação culminou na criação da OMC (Organização Mundial do Comércio). O nascimento da nova instituição, que incorporou o GATT em sua estrutura, se deu mediante o acordo de Marrakech, assinado em 15 de abril de 1994 por 117 países. No entanto, em uma estratégia política da União Europeia, o termo exceção cultural será transformado em diversidade cultural. Há duas visões apresentas por Pitombo (2009, p. 40): Na perspectiva de Regourd, essa troca é motivada pela tentativa de obter maior consenso na União Europeia, visto que amplia sua gama de ação, pois exceção cultural remetia a uma demanda essencialmente francesa. Para Fajardo, foi uma maneira de diminuir a visão elitista sobre a expressão, assim como de ampliar a adesão de outros países à causa.

Nesse debate entre esses dois blocos e essas duas maneiras de enxergar a cultura, em 2001 a Conferência Geral aprova a Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural. Em uma nova etapa, agora passando do processo político para o jurídico, foi promulgado em 2005, na “33a Conferência Geral da Unesco, a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais foi adotada por 148 Estados-membros, recebendo dois votos contrários (Estados Unidos e Israel) e quatro abstenções (Honduras, Nicarágua, Austrália e Libéria).” (PITOMBO, 2009, p. 53). A origem disso tudo data de 1990 e de um longo processo de diálogo, numa busca da criação de uma legislação para uma regulamentação no campo da cultura, visto que esta vinha sendo tratada da mesma maneira que as demais mercadorias no mercado internacional.

A história da política cultural francesa é evocada em sua integralidade em um momento no qual a própria ideia da presença do Estado para proteger a diversidade cultural é posta em xeque, seja pelos atores internacionais, seja pela oposição interna. Nesse sentido, o artigo de 2003 do ex-ministro da Educação Nacional e Pesquisa Claude Allègre, lembrado por Gauquié (2012), recapitula todo esse passado para defender as políticas culturais francesas em defesa da produção cinematográfica e audiovisual diante de críticas que consideram a atuação do governo excessivamente intervencionista.

A exceção cultural deve ser defendida, no exterior face à ofensiva americana, no interior face à ofensiva liberal. No momento em que tudo parece ganho no plano internacional, tudo é com efeito questionado: tudo será bom para criticar e destruir o sistema francês. A ideia de que a cultura é, para um país como a França, um valor essencial que não pode deixar o Estado indiferente, ganhou seu prestígio graças a De Gaulle, que confiou a André Malraux a responsabilidade de pôr em prática essa ambição. Após um período de erosão, François Mitterrand retomou o bastão, ajudado pelo dinâmico Jack Lang. Dois períodos, dois impulsos, dois estilos, mas duas ações que contribuíram para fazer a França de hoje. […] No cinema, qual é o

único lugar de resistência ao rolo compressor hollywoodiano, senão a França e sua política de auxílios? Nós podemos comparar com países que escolheram a “via do mercado”. Cinema italiano, alemão ou brasileiro, o que vocês se tornaram? E vocês haviam, no entanto, encantado o mundo! […] A qualidade não se revela senão com o tempo. É por isso que a cultura não pode ser deixada unicamente ao mercado, reino do curto prazo.124

3.2 – O funcionamento do CNC e seus auxílios ao cinema e ao audiovisual