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A reforma da Cosip: a construção de uma legislação em defesa do documentário de

CAPÍTULO III – A relação entre o Estado e as políticas para o cinema e o audiovisual na

3.4 A reforma da Cosip: a construção de uma legislação em defesa do documentário de

Como vimos, os auxílios aos documentários audiovisuais tomam basicamente dois caminhos: o automático e o seletivo. O primeiro deles é destinado às produtoras que já possuam uma conta automática junto ao CNC, e cujo auxílio é calculado com base no número de horas difundido na televisão no ano anterior. Já o seletivo é concedido aos projetos específicos, após passarem pelo julgamento de uma comissão.

No entanto, esse sistema provocava, na visão de alguns atores do mercado, um desequilíbrio no que tange ao documentário de criação161. Diante deste cenário, o Ministério 161 A definição de documentário de criação é amplamente debatida e de modo algum ponto pacífico. Praticamente todos os estudos ressaltam a dificuldade de apreender bem sua natureza. Adotaremos aqui a definição proposta pelo relatório Le Documentaire Dans Tous Ses États: “um empreendimento artístico que estrutura uma representação do real”, que ainda precisa que deve se tratar de uma obra “perene”, ou seja, que possa interessar a públicos diferentes ao longo do tempo. É possível ver que na primeira definição há uma tentativa de excluir aquelas produções que não seriam artísticas (feitas em um formato pré-moldado, sem crítica ou reflexão sobre o narrar), e na precisão posterior, uma tentativa de excluir aquelas cuja temática é unicamente relevante por ser atual.

da Cultura encomendou no início de 2011 um estudo sobre o estado do documentário de criação (Le Documentaire Dans Tous Ses États162 – Pour une nouvelle vie du documentaire de création) e suas condições de produção, financiamento e difusão. O documento contribuiu para comprovar o desnível relatado pelos agentes do mercado. Como conta Anna Feillou163,

O que acontecia era que esses auxílios automáticos, durante muito tempo, iam sobretudo para documentários que se assemelhavam mais a reportagens do que a documentários – documentários que não eram exatamente documentários de criação. E o relatório encomendado pelo Ministério da Cultura afirmava que o documentário de criação tinha mais dificuldade de alcançar a televisão. Dizia, enfim, que o CNC tinha que tomar uma atitude para que o documentário realmente de criação fosse mais bem ajudado. (FEILLOU, 2017).

Com base nisso, em 2014, o CNC realizou uma profunda reforma em seu sistema de fomento ao documentário audiovisual, ou seja, o documentário que é realizado para ser difundido na televisão. Chamada de Reforma da Cosip, basicamente incidiu sobre o auxílio automático, de modo que os filmes a ele elegíveis164 passaram a se beneficiar de um novo sistema de ajuda.

Conforme já mencionado, o sistema anterior dependia unicamente do investimento do canal por hora de produção (ADHN): quanto maior este fosse, mais o filme receberia. Grosso modo, um filme com ADHN de 12 mil euros obteria cerca de 15 mil euros de auxílio automático, enquanto um ADHN de 160 mil euros receberia pouco mais de 32 mil euros.

A ideia da Reforma foi de criar um sistema adicional, de bonificações com respeito a 5 itens (escritura, montagem, música original, massa criativa, financiamento internacional), para aumentar o auxílio de base já recebido. Desse modo, cada item poderia aumentar o benefício com uma bonificação de 3 mil a 6 mil euros, sendo que o conjunto deles poderia conferir um bônus máximo de 15 mil euros. Essas bonificações visam beneficiar documentários de criação, contemplando elementos presentes neste tipo de produção. Por

162 A expressão “dans tous ses états” significa informalmente, em francês, em estado de agitação, nervoso; uma possível aproximação seria “O documentário fora de si”. No entanto, há também o sentido de “todos os estados do documentário”, que seriam contemplados na pesquisa. Para manter essa polissemia e não entrar no mérito de qual é a melhor tradução, citaremos o nome do relatório no original.

163 Anna Feillou é realizadora. Formada em economia, é atuante na defesa do documentário de criação fazendo parte de algumas associações como ATIS (Auteurs de l’Image et du Son en Aquitaine-Limousin-Poitou- Charentes) ADDOC (Association des cinéastes documentaristes); SRF (Société des Réalisateurs de Films) e da Boucle Documentaire. Atualmente faz parte da comissão de auxílio seletivo do CNC, e foi responsável, juntamente a Élisabeth Clément, pelo estudo “Production Documentaire: un regard hexagonal”.

164 Para ser elegível ao auxílio automático do CNC, o documentário deve respeitar as regras citadas no capítulo 3: mínimo de 30% de financiamento francês, mínimo de 25% de aporte do difusor, mínimo de 24% das despesas na França, máximo de 50% de financiamentos públicos.

exemplo, uma obra que apresente uma música original ou um tempo de montagem mais longo tem características que a tornam mais autoral, e portanto receberia mais verba.

O ponto mais polêmico desta reforma foi que, a fim de afastar do dispositivo de auxílio os filmes “mais formatados”, o CNC considerou as obras ‘que emprestavam dos códigos da reportagem ou do magazine’165 como inelegíveis às bonificações, uma decisão que cabia à comissão seletiva. Como consequência, cerca de metade das 2.500 horas de programação ajudadas em 2015 pelo auxílio automático foram excluídas dessas bonificações. Diante deste cenário, os atores do mercado que estavam descontentes com a reforma (produtoras próximas da televisão, que viram suas produções preteridas, além dos próprios canais) pressionaram o CNC, que em junho de 2016 encomendou a Yves Jeanneau166 uma “missão de reflexão sobre os documentários que emprestam dos códigos de magazine e reportagem”. O relatório foi publicado em cinco meses, e suas principais constatações mostram bem algumas consequências da reforma, bem como as disputas de interesse:

- Um número considerável de profissionais não conhecem bem o sistema, confundem as regras do automático, do seletivo, a noção de programas “auxiliados” e programas “bonificados”;

- Uma maioria considera que a noção de documentário “que empresta dos códigos de magazine e reportagem” não é pertinente, uma vez que exclui um certo número de filmes (de investigação) e sobretudo ela induz a uma relativa imprevisibilidade das decisões;

- Um certo número de programas de caráter documental são insuficientemente auxiliados, em particular programas ditos “híbridos”, misturando os gêneros documentário / ficção e ou animação; - Ao contrário, os produtores e difusores de formas não-bonificadas de programas “que emprestam…” reivindicam de maneira organizada um retorno aos auxílios não discriminatórios, a um respeito de suas próprias escolhas, de suas “dificuldades econômicas”.167

Os atores descontentes, reunidos em torno do sindicato da Imprensa Audiovisual, entraram na justiça para contestar a exclusão dos documentários de formato magazine e reportagem dos bônus. Em novembro de 2016 o Conselho de Estado julgou que essa noção de filmes que ‘ emprestavam dos códigos de reportagem ou de magazine’ não repousava sobre

165 Os documentários magazine e reportagem também são produções de difícil e controversa definição, mas cabe notar que em geral são contrapostos aos documentários de criação. Em relatório sobre eles, Jeanneau, embora discorde da classificação, esboça uma definição. Documentários reportagem “descrevem um evento frequentemente ligado a uma atualidade recente ou fatos sociais. Sua vocação é relatar os fatos com uma análise contextual mais ou menos crítica através de testemunhos colhidos em campo. […] É raramente exportável ou passível de reprise”. Já documentários magazine são “um quadro formal e editorial no qual são difundidos reportagens ou documentários. Pode ser ‘anunciado’ por um apresentador, ser composto por quadros que organizam debates ou simples entrevistas relacionados às reportagens transmitidas durante o programa.

166 Yves Jeanneau é fundador e comissário-geral do evento Sunny Side of the Doc desde 1989, co-fundador e diretor da produtora francesa Les Films d’ici de 1984 a 2000, além de produtor e teórico do documentário. Neste trabalho, ele voltará a ser mencionado no capítulo 5 por ocasião da análise do evento sob seu comando.

critérios objetivos e racionais e obrigou o CNC a anulá-la. Com essa decisão, toda e qualquer produção passaria a ter acesso às bonificações.

Diante do risco de um aumento brutal do custo do auxílio automático, que ameaçava desequilibrar todo o sistema de ajudas, o CNC convocou com urgência uma nova reunião para discutir o assunto. De dezembro de 2016 a março de 2017, o CNC, quatro organizações de produtores (USPA, SPI, SATEV e SPECT), com a Scam e a Boucle do documentaire168, reuniram-se quinzenalmente e chegaram a um novo sistema. As regras do apoio seletivo não mudaram, mas apenas as do apoio automático. Como antes, o sistema se organiza em torno de um auxílio de base e de bonificações169 que permitem aumentá-lo, mas operou-se uma grande mudança no sistema de acesso às bonificações. A partir de agora, para ser “bonificável” um documentário deveria ter pelo menos 3 itens dos citados acima. Desse modo um filme com apenas 1 ou 2 elementos (música original e financiamento internacional, por exemplo) deixa de ter acesso ao bônus. Das 5 bonificações criadas pela Reforma de 2014, dois foram modificadas (montagem e financiamento internacional), uma tornou o acesso mais difícil (música), uma foi reforçada e desenvolvida (escritura/desenvolvimento), uma foi suprimida (massa criativa – muito fácil de ser obtida, segundo o CNC) e substituída (diversidade do financiamento), e uma sexta bonificação, que toca diretamente aos realizadores, foi acrescentada.

Detalharemos os itens:

Financiamento internacional: caso o produtor ou distribuidor tenha feito a pré- venda de um documentário para 3 ou 4 países, bônus de 3 mil euros; acima de 5 países, bônus de 6 mil euros.

168 Conjunto de organizações nacionais e regionais em defesa do documentário de criação. São elas AARSE (Association des Auteurs Réalisateurs du Sud-Est – Provence-Alpes-Côte d’Azur); ACID (Association du Cinéma Indépendant pour sa Diffusion); ADDOC (Association des cinéastes documentaristes); ALRT (Association Ligérienne des Réalisateurs et Techniciens – Pays de la Loire);ARBRE (Auteurs Réalisateurs en Bretagne); ATIS (Auteurs de l’Image et du Son en Aquitaine-Limousin-Poitou-Charentes); APARR (Association des Professionnels Audiovisuel Rhin-Rhône – Bourgogne-Franche-Comté); Le Plateau (Association des cinéastes, auteurs et réalisateurs de l’image et du son en Auvergne); Les Petites Caméras (Association de Cinéastes en Bourgogne); REAL (Association des Réalisateurs, Expérimentateurs et Auteurs en Languedoc- Roussillon); SAFIRE (Société des Auteurs de Films Indépendants en Région Est); SAFIR Haut de France (Société des Auteurs de Films Indépendants en Région – Hauts-de-France); SFR-CGT (Syndicat Français des Réalisateurs) e SRF (Société des Réalisateurs de Films)

169 Os auxílios de base e as bonificações são calculados de acordo com um coeficiente que varia conforme a duração da obra audiovisual auxiliada. Para um documentário de 52 minutos, o coeficiente de 0,1 equivale a 2.964 euros. A fim de facilitar a compreensão desse complexo sistema, adotaremos nas descrições a seguir o valor aproximado de 3 mil euros para um coeficiente de 0,1, 6 mil euros para um coeficiente de 0,2, e assim por diante.

Diversidade do financiamento: bônus de 3 mil euros se o orçamento do programa provir de ao menos duas fontes. Isso vale para canais franceses, coletividades territoriais francesas ou europeias, ministérios, fundações e associações de utilidade pública franceses, ou instituições europeias.

Essas duas bonificações visam estimular os produtores a buscarem diversificar suas fontes de financiamento, tratando-se de bônus de ordem econômica. As próximas bonificações incidem sobre características de ordem mais artística.

Montagem: a bonificação é calculada com base no tempo de trabalho do montador-chefe. Para um documentário de 52 minutos, caso o tempo de trabalho seja de 25 a 35 dias, bônus de 3 mil euros; caso o tempo de trabalho seja superior a 35 dias, bônus de 6 mil euros.

Música: se o montante direcionado à música (cessão de direitos e salários) for superior a 3 mil euros por hora de programa, bônus de 3 mil euros.

Escritura e desenvolvimento: esta bonificação leva em conta os auxílios à escritura e ao desenvolvimento recebidos do CNC. Se a obra obteve um dos dois auxílios acima em valor superior a 3 mil euros, bônus de 3 mil. Se foi assinada uma coprodução com um canal difusor para um investimento de pelo menos 6 mil euros por hora de programa, bônus de 3 mil euros. Se a obra tiver obtido uma ajuda à escritura e uma ajuda ao desenvolvimento, ou duas ajudas à escritura, ou duas ajudas ao desenvolvimento, bônus de 6 mil euros.

Realizadores: Esta bonificação não tem um valor pré definido, e é acrescentada ao final do cálculo de todas as outras. Ela é baseada no número de dias de trabalho remunerados do realizador. Quanto maior o custo da produção (ADHN) mais dias de trabalho serão necessários para obter o bônus. Um ADHN de 20 mil euros exige 35 dias de trabalho; um ADHN de 100 mil euros exige 60 dias de trabalho.

Um último ponto da Reforma aumenta os coeficientes em 20% para documentários históricos, científicos e artísticos. Para ter acesso a ela, é necessário que: o ADHN seja superior a 100 mil euros; a obra tenha obtido ao menos 3 bonificações; utilize uma quantidade significativa de elementos de recontextualização (imagens de arquivo, ou animações, por exemplo)

Segundo Anne Feillou as reformas não devem parar por aí, uma vez que produtoras mais alinhadas com os interesses da televisão buscarão questionar a reforma por não a considerarem vantajosa.